2006/07/31

México


Lucia Messeguer, 1982(?)

Agostinho

Uma mulher aproxima-se. Diz-se catequista. Tem ar de roedor, de chinchila ou de porquinho da índia. Havia de estar numa pradaria, a correr, a saltitar, a entrar dentro de tocas, rebolando pelo feno, soltando grunhidos felizes. Está muito transpirada. A sua insegurança é notória. Pergunta se me pode oferecer um livro sobre o sagrado coração, escrito por um padre do Porto. Assegura-me que depois de o ler me vou sentir muito melhor. Só tenho de rezar, todas as noites, as orações que vêm no final do livro. Agradeço-lhe. Antes de se ir embora pergunta-me se sou brasileira. Sou, sou, trabalho num bar, digo-lhe devagar, muito devagar, pronunciando as palavras num português claro, genuíno. Ela olha-me com simpatia e piedade. Toma-me por uma mulher perdida. Eu sou uma mulher perdida. Folheio o livro. Entre muitas outras coisas, descubro que o Santo Agostinho, antes de se converter ao sagrado coração e se tornar num grande pensador, era um pecador. Era um Agostinho dado a vícios, aos pecados da carne, à luxúria, indigno de uma padiola, quanto mais de um altar. Ai, o malandreco.

2006/07/27

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço.

Al Berto

(Fui ao teatro. Parole. Parole. Parole. Cheguei assim. Feita em nada. Feita de nada. Abri uma garrafa de Luis Pato que alguém guardou para uma ocasião especial. Às vezes, muitas vezes, vem-me uma vontade grande de morrer. Outras vezes, de amar.)

Agra

Tive um sonho erótico. Tenho que o anotar depressa sob pena de o esquecer. Fico triste quando me esqueço das pequenas imbecilidades que fazem a peculiaridade da minha pessoa. Sonhei com o Fernando Dacosta, o escritor. Aparecia, tal como é, feio, muito feio, com aqueles caracóis compridos, nariz adunco e óculos de aros escuros, integralmente nu, passeando-se de cá para lá à minha frente. Havia segurança no seu caminhar e, no entanto, era dotado de uma pila pequena, muito pequena, incrivelmente pequena. Um corpo de homem velho com uma pila de recém-nascido. Tal pila pequena despertava-me interesse. Não me causava qualquer sensação de prazer. Ou de desejo. Só curiosidade. Sonho estranho. Não me lembro de mais nada. Onde fui buscar o Fernando Dacosta? Bem vistas as coisas, não tive um sonho erótico, foi mais uma inquietação.
(O mundo desaba. Leio as notícias, os comentários, as opiniões. Às vezes, gostava de ter a simplicidade, a rudeza dos maniqueístas. Identificar os bons e os maus. Ser capaz de dizer, com vigor, “os israelitas são uns fascistas!” e acreditar nisso. Perco-me. Viro-me para um lado. Para o outro. Não sou capaz de opinar sobre o mundo, nem sobre as guerras que se fazem. Sou capaz, porém, de sonhar com o corpo macilento de um escritor velho e de me emocionar com a fotografia de uma revoada de pássaros brancos em Agra que descobri, ontem, perdida numa gaveta.)

2006/07/26

Mulher porto-riquenha

Diane Arbus, NY, 1965

2006/07/24

Bruxas

Perto, no meio dos arbustos, a fotografia de um homem jovem está presa num ramo. Tem um ar larvar. Sorri. Faltam-lhe vários dentes. Uma larva gorda. Devia estar protegido, dentro de um casulo. Estás lixado, penso, lixadíssimo. Uma mulher que recorre a feitiçarias para prender um homem-larva-desdentado é capaz de fazer coisas bem piores. As bruxas passaram por aqui. Não há dúvida que passaram. Devem ter vindo do Pragal, do Lazarim, da Sobreda, dessas terras feias que fazem a outra banda. As bruxas que aqui estiveram, desconfio, vieram da Cova da Piedade e deviam ser loiras oxigenadas ou madeixentas (tenho embirração, grande, por loiras de pechisbeque.) Mas, agora, já se foram embora. E a mata descansa. Sibila melodias simples. Só se ouve o vento nas copas das árvores e as gargalhadas dos meninos que, já longe de mim, correm pela mata. Aliviados por terem esvaziado as suas bexigas pequeninas. As cacarias das bruxas hão-de ser inundadas pelos riozinhos de mijo dos meninos e das meninas da sala da minha filha.

Licor Beirão

No meio da mata, por baixo de um pinheiro, que imagino como o mais alto, deparo com um espectáculo bizarro. Fosse eu uma mulher de respeito, devota, e ter-me-ia, de imediato, benzido e fugido dali. Sobre a caruma e a areia, uma toalha vermelha. Um rectângulo cor de sangue. Duas ou três fitas de cetim vermelho esvoaçam por cima. As fitas são de um vermelho diferente. O vermelho, é sabido, é cor de imensos matizes. Não há cor como o vermelho. Assume mil tonalidades. Pode até ser exactamente o mesmo tom, mas consoante os objectos em que encorpa o vermelho torna-se diferente. O vermelho de uma rosa é naturalmente diferente do vermelho de um copo de plástico. O primeiro tem cheiro e é aveludado. O segundo é brilhante. Adiante. A toalha tem cor de sangue. Já as fitas de cetim são de um vermelho lupanar, daquelas que serpenteiam cuequinhas de renda baratas, daquelas que se enfiam no rego do rabo e despertam expressões boçais e endurecimentos imediatos. Por todo o lado há restos escaqueirados de garrafas. Deviam ser quatro. Pelo menos conto quatro gargalos. Uma delas é de licor beirão. As outras têm rótulos de letras miudinhas e são de vidro branco. Garrafas de aguardente. Uma vela roxa repousa no meio do festim, cansada de ter alumiado os rostos que proferiram palavras secretas, sacrílegas, antigas.

2006/07/21

Mirabilis

Sonhei com a Torra da Barbela do Ruben A. Não com a história. Não me apareceram os espectros nocturnos dos Barbelas, vindos dos quatro cantos do mundo, homens e mulheres de outras eras levantando-se das valas, dos ataúdes, passeando-se, vivendo como vivos no meu sonho. Sonhei com o livro. Com o objecto físico propriamente dito. Sonhei que o comprava no dia em que se anunciava o fim do mundo. Multidões pequeninas, calmas, fugiam para as ruas. As pessoas saíam dos prédios, das casas e sentavam-se nos jardins, nos largos e nas praças, esperando tranquilamente o fim do mundo. Eu, e os meus, também fugíamos para a rua. Antes, porém, cada um de nós procurava um objecto para o acompanhar. Eu não hesitei e levei esse livro. A Torre da Barbela. É estranho que tenha sido essa a minha escolha, uma vez que nunca o li. Andam eruditos os meus sonhos. Prefiro os outros sonhos, aqueles em que sou feliz e aqueles em que o meu corpo é feliz. Há que tempos que não tenho um sonho erótico. Já nem me lembro do último. Sinal evidente de que a minha frigidez se agrava. Já se instalou em mim. Já tomou conta dos meus sonhos, daquilo que sou por baixo do que sou. Triste sina.

2006/07/20

Senhoras da limpeza

São as senhoras da limpeza. Dir-se-ia que esperaram na sacristia o momento em que as vozes esganiçadas se calassem. É que assim que se calam as do terço entram as da limpeza. Uma sincronia perfeita, uma precisão que nunca falha. Umas calam-se com os louvores ao senhor, as outras entram para lhe limpar o templo. São duas, as senhoras da limpeza. Velhas, redondas, de batas floridas. Fazem-me lembrar bichos pesados, daqueles que, em manadas, levantam nuvens de poeira ao passar. Chegam artilhadas de baldes, esfregonas, detergentes, um aspirador e uma enceradora. As devotas do terço já as conhecem. Depois de lhes acenarem com a cabeça fogem dali para fora, regaladinhas, ajeitando as mises e puxando as combinações para baixo, deixando deus lá dentro, sozinho e triste. As senhoras das batas floridas depois de expulsarem as senhoras do terço tornam-se donas do lugar. Falam alto como se aquele fosse um outro qualquer local de trabalho, uma fábrica, um edifício de escritórios, um centro comercial. As suas vozes ecoam pelo recinto. Aprecio-lhes a atitude, confesso. Geralmente, no fim, fico eu e elas. Eu, ímpia, impura, infiel, descrente, começo a encher-me outra vez do mundo de fora. Remoques de tristeza e abandono entram-me pelos poros, pelos orifícios pequeninos do meu corpo. Saio quando me dizem “Menina, são horas de fechar”.

Senhoras do terço

Todos os dias é igual. Um grupo de mulheres reza o terço lá à frente. Estão nisto que tempos. Ladainha atrás de ladainha. Balbuciam palavras de fé. Depois, quando terminam, cantam, esganiçadamente, uma canção que fala do céu. Só as oiço falar do céu. Céu, céu, céu, gritam elas, sempre em crescendo, amedrontando deus com tal desvario. Que importância terá para elas o céu? O que esperam elas do céu? Os outros, que morrem em nome de um outro deus qualquer, pelo menos esperam setenta virgens e rios de mel. Esperarão elas, as senhoras do terço, a imortalidade? Coisa aborrecida, a imortalidade. Eu, quando morrer, exijo, faço mesmo questão de ir para debaixo da terra e ser comida por bichos e bichinhos até me tornar em nada. Era o que mais faltava andar por aí, tempos infinitos, no jardim dos bem aventurados, feita parva, sem ter nada para fazer. Quando acabam de cantar, as senhoras do terço levantam-se rapidamente e trocam entre si cumprimentos. É então, nesse instante, nesse preciso instante, por uma das portas laterais junto do altar, que entram as outras senhoras.

2006/07/19

Benfica


(Se ele fosse português só poderia ser do Benfica.)

2006/07/18

Mil perdões

Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair

Chico Buarque, 1983

Gárgula

Conto os anjos do altar. São setenta e dois. Efebos alados. Uns têm feições masculinas, outros não. Anjos castrados, eunucos. O altar é feio. Parece ter sido revestido a película de alumínio dourada. Consiste numa estrutura de degraus. Por cima há sempre jarras com ramos de flores. Hoje são hortenses brancas. A semana passada eram gladíolos altos que, tombando, se assemelhavam a velhos curvados pelo peso dos anos. Gosto de gladíolos. E gosto da quietude das igrejas. Aborrece-me entrar numa igreja e descobrir que é hora da missa. Não preciso de intermediários que me ensinem a compreender o mundo. Dispenso-os. Tenho a pretensão e a triste arrogância dos que se julgam iluminados. Conheço bem esta igreja. Os veios nacarados da pedra escura que a reveste. Os vitrais laterais. Já contei as caixas de esmola. São muitas. Demasiadas. Sei onde se localizam os quatro confessionários, escuros e sombrios, preparados para receber os segredos, acolher a imundície de quem por lá passa. Que se dirá num confessionário? Na porta dos confessionários há um papelinho com o horário das confissões. Dois padres revezam-se em tal função. Um chama-se Henrique e outro Manuel Fernandes. Sento-me sempre no meio da igreja. Umas vezes penso. Nisto e naquilo. Outras vezes não penso em nada. Limito-me a estar. Deixo de ser. Esvazio-me completamente. É bom quando isso acontece. Hoje, que aqui estou, penso. A propósito de um livro que li ontem aos miúdos, penso em gárgulas, daquelas medievas, com corpo de criaturas monstruosas, medonhas, de bocarra aberta e orelhas pontiagudas. Há poucas nos edifícios desta cidade. Ou nenhumas. Paris é uma cidade de cheia de gárgulas. Lisboa não. É pena. Uma cidade com gárgulas tem outra pinta.

Vivre sa vie


(Gosto deste filme. E desta mulher.)

2006/07/17

Carioca

Houve o sair de casa sem choros, nem dramas. Um beijinho repenicado na boca e um abraço fugidio do menino cigano. Houve o vestido novo, vermelho de ramagens cor-de-rosa, muito apreciado pela Maria Emília. Houve os galanteios do senhor director do teatro que retribui com simpatia. Houve o rinoceronte que atravessou a cidade, os homens que se metamorfosearam em paquidermes africanos, outros asiáticos, e o homem que ficou só no mundo. Houve o professor de filosofia, abanando-se com um leque sob as arcadas do teatro. Imaginei-o com um vestido vermelho e caracóis pretos, tal qual a Duquesa de Alba que Goya tanto gostava de pintar. Houve o crítico com ar tísico e dentes podres. Vestido com um blaser de poliéster branco que devia cheirar mal. No pescoço uma gargantilha de vidrinhos pretos. Ladrando opiniões como um caniche de colo. “Gostei, não digo que não, mas a personagem do Bérenger não devia ter este registo naif. Ele é o único homem lúcido.”, ladrava o caniche com corpo de homem. Eu a topá-lo. Houve a mulher de lábios carmim, simpática, de que me instou a participar numa comunidade leitores. “Venha!”, disse ela. “Vou”, prometi. Sou perita em não cumprir promessas. Foi, pois, um dia quase perfeito, não fosse o resto que a noite sempre traz. Mas o melhor, confesso, foi folhear um jornal de distribuição gratuita e descobrir que os concertos do Chico Buarque já estão agendados. 3,4,5 e 6 de Novembro. Liguei logo à mana. Parecíamos duas tontinhas adolescentes. Já está combinado. Vamos no primeiro e no último dia. Se nos der na real gana, é possível que dê, nos outros dias também.

2006/07/14

Subúrbio

Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral
Fala, Piedade

Casas sem cor
Ruas de pé, cidade
Que não se pinta
Que é sem vaidade
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança funk, o rock, forró, pagode
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Desbanca a outra
A tal que abusa
De ser tão maravilhosa
Lá não tem moças douradas
Expostas, adam nuas
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas.

Chico Buarque, Carioca

2006/07/13

Vizinho (2)

Sempre que me encontra fala-me, com genuíno entusiasmo, de escritores goeses e desafia-me a ir à Índia. Eu desculpo-me com os miúdos. E entristeço. Gosto dele. Tem a delicadeza e a beleza das porcelanas antigas. Uma beleza quase translúcida de tão fina. De há uns meses para cá, passou a visitar regularmente o meu pai. Sem aviso prévio, mete-se no elevador e desce do sétimo até ao terceiro andar. Traz uma taça de amendoins cozidos em água e sal. Sentam-se os dois nas poltronas da sala. Bebem uisquis cheios de gelo e água gaseificada. O meu pai fala, fala, fala, feliz por ter alguém que o oiça. Ele ouve-o e, com admirável paciência, tenta argumentar contra as delirantes teorias que o meu pai inventa para explicar o mundo. Estão nisto a noite toda. A minha mãe é que não gosta muito. Sente-se na obrigação de lhes fazer companhia. Chega-lhes a preparar chutney de coentros e a fritar paparis. Acompanha tudo com sorrisinhos falsos. Fica a ouvir dois goeses velhos a conversar sobre coisas que não lhe interessam. O que ela queria mesmo era sossego para ver os últimos episódios da telenovela. Hoje, quando lhe fui deixar a Madalena e me espantei por a ver ainda deitada, ela piscou os olhos pequeninos e gritou-me “O Dr. Estrócio saiu cá de casa eram quase três da manhã!”. E, enfiou, de novo, a cabeça dentro dos lençóis, furiosa com o meu pobre pai. Não percebe que a Índia faz parte de nós, do meu pai, de mim, dos meus filhos, dos meus irmãos, dela também. Tem permissão para entrar, quando quiser, como quiser, por onde quiser, nas nossas vidas. Através das imagens ferozes dos comboios que explodiram em Bombaim, mas também através do vizinho solitário que mora no sétimo andar.

Vizinho (1)

É vizinho dos meus pais. Um goês muito bonito, oftalmologista de profissão, de cabelos grisalhos. Casou com uma espanhola de Madrid, com quem teve dois filhos. Poucos anos depois, a espanhola fartou-se dele. Abalou, espavorida, como é próprio do seu povo, para Espanha, levando consigo a prole. Ficou sozinho, assistido por uma irmã, muito chata, especialista em intermináveis litanias sobre as agruras da vida e os padecimentos do corpo. Passei anos a vê-lo sozinho, saindo no seu fiat clio, em direcção a destinos incertos. Ao contrário do meu pai, afastou-se durante muito tempo da Índia. Só há meia dúzia de anos, voltou a casa. A Goa. E, então, deslumbrou-se. Como se tivesse descoberto a sua essência, uma parte de si que andava esquecida. Passou a ir todos os anos à Índia, geralmente, na mesma altura que os meus pais. Arrendou um apartamento, em Margão, que a minha mãe descreve com displicência. “Ai filha, para lá se entrar tem que se passar por um corredor escuro cheio de cães vadios! É um horror! Tu não eras capaz de passar por lá”. Ela sabe bem o pavor que tenho a canídeos. Quando lá está, vai visitar os meus pais a Maina. Espreguiça-se no alpendre da casa que viu nascer o meu pai, que o meu pai percorreu, menino descalço e feio. Olha o quintal e os campos verdes onde pastam as vacas e búfalos. Sente-se feliz.

2006/07/11

Barcelona Red

Concorri ao concurso do Rádio Clube Português para escrever o final de uma radionovela que, pouco ou nada, tem a ver com as histórias que gosto de ler e, menos ainda, com as que gosto de imaginar. Mais do que a palermice de publicar um livro com a chancela da rádio (parece que é o prémio), o que me seduzia no concurso era a possibilidade de escrever a próxima radionovela do RCP (a outra parte do prémio). Já a tinha na minha cabeça. Uma história almovadoresca, cheia de mulheres, lágrimas borradas de rímel, travestis e canções dos Bee-Gees. Ia ser um sucesso. Todos os dias vou ao site da rádio para saber se por lá há novidades. Nada. Só tenho o telefone ligado para a iminência dele tocar a dar-me a boa nova. Sei, porém, que ela nunca chegará. Excedi largamente o número de caracteres pedido. Mandei o manuscrito depois de o prazo ter terminado. Troquei o nome a algumas personagens. Escrevi o final da história de uma assentada, sem grandes cuidados, pouca imaginação, numa tarde em que me vi sem miúdos. Precisamente uma semana depois de ter engolido não sei quantos comprimidos e ter passado uma noite no hospital, a ser assistida por uma médica nova que, se deus quiser, ainda há-de cruzar-se no meu caminho para a mandar para a puta que a pariu. Escrever radionovelas era actividade que me assentava que nem uma luva. Custa muito, a rejeição. Até já tinha título para a primeira. Barcelona Red.

2006/07/10

Migrant Mother

Dorothea Lange, 1936

5 heures du matin

A Madalena foi comigo ao teatro. Aguentou – estoicamente, pobrezinha - uma hora e meia de uma peça falada em francês. Comeu muitas gomas. Escandalizou-se com uma bailarina nua. Arregalou os olhos, muito, muito, e espetando o dedo, disse “Achas que tem algum jeito uma mulher nua no meio desta gente toda?”. Claro que não tem, minha filha. Que queres que te diga? Os artistas têm destas liberdades. Durante a noite, acordou, chamando-me. Era tarde. Cinco da manhã. Quando lá cheguei, tonta de sono, abraçou-me e deu-me um beijo na boca, um beijo molhado, madrugador, muito pouco próprio para mães e filhas. Por fim, disse que eu era a melhor mãe do mundo. Tais palavras não me confortaram. Perderam-se na noite.

2006/07/07

Cigarras

Se calhar o que, pela manhã, ouvi não foram grilos. Foram cigarras. Cigarras boémias, hedonistas, fadistas, bêbadas de desejo de acasalar, de copular. Sempre gostei de cigarras, apesar de terem a feiúra própria e repelente dos insectos. Vem-me a simpatia por tais bichos da velha história da cigarra e da formiga. No entanto, em miúda, não era simpatia o que sentia pela personagem da cigarra. Era inveja por ela ser precisamente o contrário daquilo que eu era, uma formiguinha ajuizada, estudiosa, elogiada, em rasgos exagerados, por progenitores e educadores. Um exemplo de virtude e aborrecimento. Mas se calhar também não eram cigarras. Fossem cigarras, grilos, qualquer outra espécie de besouros citadinos, o certo é que espalhavam pela estação um ruído monótono, um frémito inusitado. Tornaram quente, quase abrasiva, de insuportável, a mornidão da minha manhã.

Grilos

Na estação, com os olhos ainda empapados de sono, faço uma descoberta. Para além do ruído dos comboios, das obras, das conversas dos passageiros, dos carros, do piar dos pardais e dos pombos, há um outro barulho que se ouve. São grilos. Ouvem-se grilos nesta estação de subúrbio. O ruído, que parece um crocitar de chamas, não lhes sai pela boca. É sabido. Tal ruído é provocado pela vibração dos corpos dos machos durante a altura do acasalamento para atrair as fêmeas. Explicou-me o meu pai que sabe tudo sobre bichos. Onde se escondem os grilos machos nesta estação? Não os vejo e, no entanto, o cri-cri que eles fazem diz-me que eles estão por perto. E por onde andam as fêmeas? Ora, aqui está um assunto que verdadeiramente me interessa. Mais, muito mais, que os outros que fazem as capas dos jornais. Não me interessam os mísseis provocatórios que a Coreia lançou sobre o mar. Nem sequer o impasse eleitoral no México. Ando cansada do mundo e o mundo, sei-o, anda cansado de mim. Concentro-me, pois, nos grilos e no som que fazem. Parece uma sinfonia minimalista, moderna e desinteressante. Os grilos só podem estar por baixo das pedras que preenchem os carris. É de lá, das profundezas da estação, que vem o som. Deve haver centenas de grilos nesta estação. Acasalando. O meu comboio chega. Uma anaconda gigante. A maior do mundo. Engole-me de um só trago.

2006/07/06

Stepanova


Alexander Rodchenko, 1924

2006/07/05

Santas (7)

Abandono as santas, que me fazem sentir pecadora. Mundana. Deixo a Maria Gorete ao lado da Santa Clara. Fica em boa companhia. De que falarão elas, ali, na montra da loja suja, enquanto olham os transeuntes que passam sem as olhar? Desconfio, todavia, que, com o nome que tem, a Maria Gorete esconde qualquer coisa por baixo daquelas vestes. Esconde, esconde. Aposto em como por baixo do casto manto usa uns sapatos de plataforma, em verniz preto e plástico transparente, iguaizinhos aos que vi na sapataria do lado. E que nas noites quentes de verão se desfaz do manto verde e se põe a cabriolar, a dançar, insinuante, semi nua, na vitrine da loja. Para gáudio dos santos, dos santinhos, dos milagreiros e dos beatos, que, babosos e velhinhos, aplaudem. Ela não me engana com aquele ar de sonsa.

Santa Clara (6)

A Maria Gorete - recuso-me a chamar-lhe santa! - está ao lado da Santa Clara que é a minha santa preferida. Não só por ter o meu nome, mas também por ter amado Francisco. Eu compreendo-lhe o amor. Também me apaixonei por ele aos quinze anos. Francisco e Clara num campo de papoilas. Ao longe, as torres de Assis vigiam-nos. Aliás, por causa dele é que, durante a minha adolescência, quis ser freira. Não fui. Deveria ter sido. Era só procurar um bocadinho de fé, de crença, de vocação dentro de mim e teria dado uma óptima freira. De preferência, uma daquelas carmelitas-não-sei-das-quantas, de buço imenso e óculos de há cinquenta anos, que fazem voto de castidade, de silêncio, de tudo e mais alguma coisa e que morrem para o mundo e vivem em êxtase, numa espécie de divinal e infinito orgasmo, amando e louvando Deus. Decididamente, deveria ter sido freira. Pelo menos, tinha um orgasmo decente na vida.

Maria Gorete (5)

S. Pancrácio. S. André. S. Onofre. S. Jorge. S. João de Brito, Maria Auxiliadora. São muitos os santos que aqui moram. Tantos. Até há um Menino de Praga, um anão gigante e feio, com uma coroa imensa na cabeça. Que raio é um Menino de Praga? Às tantas dou de caras com uma santa cujo nome me surpreende. Santa Maria Gorete. Maria Gorete? Que diabo, Maria Gorete não é nome de santa. Luzia é nome de santa. Maria também. Clara, que é o meu, também é nome de santa. Agora Gorete não. Muito menos Maria Gorete. Gorete é nome de puta velha. E não é sequer nome de puta nova, que essas têm nomes como Patrícia, Carla, Paula, Marina, Vanessa e Sandra. Gorete é nome daquelas putas de cabelo oxigenado e barris na barriga que estão em vias de extinção. Como é que uma santa se pode chamar Maria Gorete? Não pode. É coisa que não percebo. E não aceito. Olho-a. Para minha surpresa é a santa mais bonita que vive nesta montra. Tem um ar triste. Tez nívea. Cabelo claro, de cobre. Veste um panejamento verde cor de jade e nas mãos segura um ramo de flores brancas. Narcisos ou orquídeas. Não sei. Muito casta. Muito pura. Sem nunca ter provado o sabor do pecado. Devota a Deus, Nosso Senhor, criador do mundo e de toda a podridão que o habita.

2006/07/04

Havaneza (4)

Viro na Rua de São Domingos. É das que mais gosto em Lisboa. Apesar de ser uma ruazinha sem graça, cheia de pensões podres e casas de dormidas. Nela, movimentam-se pessoas feias. Eu sinto-me bem no meio dos feios, dos estranhos, dos dispensáveis. A montra de uma loja prende a minha atenção. Está repleta de figuras de santos, santas, santinhos, beatos, milagreiros. Olho para cima. Leio. Havaneza de São Domingos. Números quinze e dezassete. A elegância do nome da loja ter-se-á adequado ao que ela foi há muito tempo atrás. Agora é um buraco sujo, com a tinta estalada, de vitrines partidas e madeiras putrefactas. É uma loja feita de escombros. Ruínas. Olho lá para dentro. Vejo um homem que deve ter cerca de 60 anos. Perto do balcão, ajeita o escaparate dos postais. Tem um bigode branco e uns óculos encavalitados na ponta de nariz. Estranho-lhe a limpeza. Volto a fixar a montra. Leio o nome de todos os santos. Começo na prateleira de cima e vou por aí abaixo. Com vagar, com muito vagar, que ninguém me espera e a frescura da igreja não foge.

Demónios (3)

Há uns sapatos que prendem a minha atenção. Têm uma plataforma gigante, de 15 a 20 centímetros. São feitos em plástico transparente e verniz preto. Uma espécie de armadura sado-masoquista sobe, depois, pela perna acima. Fazem lembrar uma prótese ou um cinto. São grotescos. Terrivelmente feios. Como as tatuagens, os piercings e as fibras sintéticas que guardam o odor axilar. Há qualquer coisa de não humano nestes sapatos. Quem os calça torna-se num demónio, numa qualquer figura horrenda e proscrita. Não sei muito bem. Deixo os sapatos prostibulares em paz. Não foi para vê-los que vim à Baixa.

Sapatos (2)

Do outro lado da rua há uma sapataria cuja montra espreito sempre que venho para estes lados da cidade. Não lhe resisto. A gente espreita lá para dentro e vê um arrazoado de sapatos, mais ou menos clássicos, mais ou menos ordinários, quase todos feios. Mas, depois, se focarmos os olhos e procurarmos na escuridão da montra, verificamos que lá atrás, na penumbra, empinados em suportes metálicos, há outro tipos de sapatos. Variam nas cores, nos materiais e nos feitios. Só não variam na exuberância e no exagero. Sapatos prostibulares. À falta de melhor designação, é assim que lhes chamo. São aqueles sapatos que as stripers usam enquanto cabriolam à volta do varão. E que usam as putas e os travestis brasileiros da Luciano Cordeiro, que também são putas, ou sucedâneo de putas (coisa triste de se ser, sucedâneo de qualquer coisa).

Martim Moniz (1)

A estação tem um cheiro familiar. Açafrão, cominhos, pimenta, coco, coentro moído. Do chão da praça nascem repuxos e sombras. É um espelho feio de claridade e água. Uma mulher, de chapéu, alta, com ar de estrangeira, mergulha os pés descalços num dos lagos maiores. Ao seu lado brincam duas crianças pequenas e nuas. Da última vez que por ali andei, e não foi há muito, topei com o cadáver de um rato a boiar entre as águas. Ainda lá deve estar. A roçar nos pés pequeninos dos meninos. Atravesso a rua. Espreito a loja dos animais que fica por baixo de um hotel. Há pombos, rolas, periquitos, canários, pardais de java, bicos de lacre e coelhos anões. Observo com atenção os coelhos. Sei que, mais dia menos dia, cederei aos lacrimosos pedidos da minha filha para ter uma criatura de estimação.

2006/07/03

Manara

A livraria do costume está a fazer uma promoção de livros de banda desenhada. Eu não leio banda desenhada. Não gosto. Mas gosto de promoções. É o sangue indiano que me corre nas veias. Por isso fui espreitar as pilhas de livros que se amontoavam num canto. Estavam lá aqueles nomes todos que os entendidos em BD apreciam: Moebius, Pratt, Tardi, Miguelanxo Prado e outros que desconheço em absoluto. Estava quase a ir-me embora quando dei de caras com uma resma de álbuns do Milo Manara. Há já algum tempo que tenho curiosidade em conhecer os desenhos do dito Manara, provocatórios, pornográficos, indecentes. Decidi trazer um álbum que se chama a Metamorfose de Lucius, uma adaptação do Asno de Ouro que Apuleio escreveu no século terceiro. Sempre é uma coisa mais elevada, quase literária. Ontem à noite resolvi lê-lo. Mais coisa menos coisa, relata as cópulas entre uma mulher voluptuosa e um asno dotado de um enorme poder de sedução. Dotado também de um pénis gingante, capaz de provocar um êxtase prolongado e miríades de orgasmos. Quase me faltou o ar. Até deixei de bocejar, eu que, à conta dos medicamentos que tomo, passo o dia a bocejar. Aquilo é uma pouca vergonha. Das grandes. Hoje vou comprar os outros que para lá há, os Kamasutras, os Clics 1, 2 e3. Só tenho que os esconder bem para o João, e os amigos do João, que volta e meia viram a casa do avesso, não darem com eles.