2007/02/28

Caetaninha

Do outro lado do mundo o meu pai pede as minhas medidas para comprar o sari branco que lhe pedi. Digo-lhe que tire as medidas pela Caetaninha, que, mais coisa, menos coisa, tem o meu corpo. Ele concorda. A esta hora, deve andar de volta dela a tirar-lhe as medidas do peito e do ventre. A Caetaninha é a empregada do meu pai. Lava, varre, cozinha, limpa. É silenciosa, e bonita, como uma sombra. Tem exactamente a minha idade. Aos quinze anos casou com um homem vinte anos mais velho. Teve dois filhos. Dizem as pessoas da aldeia que não é feliz. O marido bebe muito. No último dia pedi-lhe para tirar uma fotografia comigo. Ela acedeu e ajeitou a saia de ramagens verdes que trazia. No exacto momento em que o meu pai carregou no botão olhou para baixo. Perguntei-lhe por que não olhava de frente para a máquina. Respondeu-me, sem sorrir, com um ar grave de quem cumprira um dever, que as pessoas da sua casta olham sempre para o chão.

Yoga (3)

Às três da manhã acordei para tomar um comprimido para as dores. Enfiei na boca o primeiro analgésico que achei. Desperta, fui fumar um cigarro para perto do aquário. Fechei os olhos e as imagens sonhadas apareceram-me, nítidas, diante dos olhos: Alcântara feita de escombros e ruínas; uma igreja com telhados inclinados onde suínos anafados descansam; a escuridão num parque de estacionamento; um edifício antigo no meio de um arvoredo escuro, a tinta, cor de café, estalada, o estuque amarelecido pelo tempo, as janelas de carepa. Deitei-me. Voltei a sonhar. Sonhei que ateava, num dia limpo e quente, com um produto qualquer guardado num frasco lilás, um incêndio num apartamento contíguo ao meu. Tenho o assumido propósito de matar a mulher que lá mora. É a primeira vez que me sonho homicida. Não deixa de ser estranho que me sonhe homicida no dia em que experimentei o bem-estar de pechisbeque do yoga. Naturalmente, nunca mais lá ponho os pés. Corro o risco de me tornar numa onírica serial killer.

2007/02/27

Yoga (2)

Desconfio que desloquei um braço. E parece-me que tenho a mão direita ligeiramente inchada. Dói. Com tantos alongamentos e estiramentos (escrevo “estiramento” e, vá-se lá saber porquê, vem-me à cabeça a palavra “esquentamento”) devo ter feito uma luxação. Os disparates que uma pessoa faz….

Yoga (1)

A minha metade oriental quis experimental uma aula de ioga. A minha metade ocidental aquiesceu. Fez um esforço para não rir enquanto a metade oriental se alongava e equilibrava em posições patéticas. Mas, quando, no relaxamento, depois de pernas, braços, mãos, dedos, sei lá que mais, o professor pediu para relaxar o couro cabeludo, a minha parte ocidental não aguentou. Deu duas gargalhadas que pareciam petardos. Vociferou vernaculamente para dentro. A minha metade oriental encolheu-se, sorriu e saiu.

Tamarindeiro

Uma tarde, no balcão, com as crianças brincando aos nossos pés, a tia Maria disse que parecia que eu sempre vivera em Goa. O tapete amarelo de areca secava junto do portão e, ao longe, o tamarindeiro assomava com a sua copa de folhas pequeninas. Fingi que a não ouvi. A tia Maria - a preferida de Salazar, como lhe chamavam na escola -é uma dessas pessoas que tem a rara capacidade de dizer sempre o que os outros querem ouvir. Continuei a olhar para as crianças. As palavras da minha tia resvalaram na minha indiferença, ganharam asas e, como pássaros pequenos, fugiram para longe. Para a copa do tamarindeiro. É lá que se escondem todas as palavras-pássaro que saem da boca da minha tia. A verdade, porém, é que em Goa nunca me senti estranha. Nada me causou repulsa ou nojo ou agonia ou comiseração. Nem o clima, os mosquitos, a pobreza, a sujidade que muita gente, torcendo o nariz, em jeito de aviso, me assegurou grassar por toda a parte. Goa entrou dentro do meu corpo. Derramou-se em cores, com todos os seus excessos e encantos, na minha vida. Como se fosse uma pessoa.

2007/02/26

Vergílio

Murcon (2)

Hoje, falam sobre fetichismo ou, melhor dizendo, sobre feitiçismo. Homens que têm fixação, obsessão por determinadas partes do corpo ou por determinados objectos: luvas, sapatos, botas. Falam de parafilias, um palavrão totalmente desconhecido para mim. Falam de liberdade, ou melhor, da ausência de liberdade que ocorre nestas situações. Comentam o caso daquele homem que tinha uma fixação por mulheres amputadas. Daquele outro, filósofo de renome, que apenas atingia o clímax com mulheres vesgas (o Descartes, coitado!). Falam também do caso de um homem velho que, depois de ter atingido o melhor orgasmo da sua vida, enquanto se masturbava a mexer nas calcinhas sujas de uma sobrinha jovem, quase imberbe, nunca mais procurou a sua legítima mulher, velha como ele, provavelmente com carnes flácidas, varizes, rugas, pés-de-galinha, papada, as unhas dos pés amareladas, os cabelos do púbis ralos, raros e grisalhos. Deixo-me ficar a ouvi-los. Gosto de ouvir falar de orgasmos, infidelidades, calcinhas, erecção, vaginas, pénis, relações, masturbação, coitos, obsessões, estímulos sexuais e toda essa panóplia de gestos e actos que fazem o sexo, enquanto tricoto o cachecol verde da minha filha.
(cada vez que o oiço na antena 1, lembro este texto escrito, há tempo, noutro berloque.)

Murcon (1)

Enquanto tricoto o cachecol da M., vejo um dos poucos programas de televisão que procuro ver todas as semanas: “Estes Difíceis Amores”, com a Gabriela Moita e o Júlio Machado Vaz. Gosto mais dela do que dele. Primeiro porque é mulher e, nestas coisas do sexo, como noutras coisas, sou assumidamente preconceituosa. Desconfio sempre dos homens. Não lhes reconheço competência para determinados assuntos. Acho impossível que um homem, ainda que psicólogo, psiquiatra, sexólogo, compreenda os sentimentos das mulheres. Nunca na minha vida consultaria um psicólogo ou um psiquiatra homem. Muito menos, um sexólogo homem. Depois, irrita-me a maneira como ele, Júlio Machado Vaz, fala. Não é que o que ele tem para dizer não me interesse. O que eu não gosto é a forma como o homem se expressa. Gosto do conteúdo, não da forma. O corpo enterrado no sofá, os olhos semi-cerrados, as pálpebras a fecharem-se lentamente, sempre a fazer citações, a chamar à colação autores, escritores, cantores, pintores e o diabo a quatro. Não tolero aquele registo aparentemente despreocupado. O cabelinho grisalho, meio comprido, provoca-me arrepios. Um homem deve usar o cabelo curto e limpo. Sempre. E o pulover sem mangas da Lacoste? Não há pachorra para o invólucro daquilo que ele é. Deve ter um ego do tamanho do mundo. Nem o facto de ser um fã incondicional e assumido do Sérgio Godinho o salva.

2007/02/25

Água

Deepa Mehta, 2006

2007/02/23

Homem

O homem voltou ao solar do amigo
O homem queimou um cigarro na testa
O homem voltou calculando o destino
Andou mais um passo e não viu
Matava ele o tempo numa outra azinhaga
E a voz era fraca ninguém o ouvia
A larva estendia e o sol abrasava
A marcha do tempo parou.

Havia uma vala na rua comprida
E a porta travava ninguém o espera
O homem cavava uma cova na vida
Ali nem o céu se calou
Trazia uma ruga na cara comprida
Nao vinha pra nada nao vinha por nada?
E a rua era larga e a rua era fria
Andou mais um passo e tombou.

Havia uma hora que havia uma vida
Que o homem andava que o homem corria
E a porta travava e um tiro partia
A marcha do tempo parou
O homem voltou ao solar do amigo
E a casa era escura e a porta batia
O homem queimou um cigarro na testa
Andou mais um passo e tombou.

Na volta era a noite
Chupava-se a vida
Que há tempo e medida
Chupava-se a vida
O homem precisa é dum'outra cantiga
Agora que o frio voltou.

José Afonso

(o mais importante são as palavras.)

Zita

Ela: Desculpa lá, mas o José Sócrates é muito giro!
Eu: Gosto mais do Rui Rio ou do Pacheco Pereira.
Ela: Quem te viu e quem te vê!
Eu: É a vida.
Ela: Estás uma burguesa!
Eu: Pois estou.
(silêncio)
Ela: Já viste que te tornaste numa espécie de Zita Seabra?
Eu: Só que sou muito mais gira do que a Zita Seabra.

Teresa Torga

No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua.

A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala.

Dizem que se chama Teresa
Seu nome e Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que a diga António Capela.

Teresa Torga Teresa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha.

José Afonso

2007/02/22

Matrix

Sonhei com a guerra. Os maus eram padres, de batina preta e rosto igual ao do Salazar que dizem aparecer nos painéis de São Vicente. Andavam os maus, como é costume deles, sempre em bando. Davam gargalhadas terríveis que se assemelhavam a escarpas e fragas. Falavam como corvos. Tinham também super poderes. Dos seus dedos escapavam feixes mortíferos de luz amarela. E conseguiam voar tal e qual o Keanu Reeves no Matrix.

DN

No domingo comprei o DN. Descobri que a Marta Crowford tem agora uma coluna sobre sexo. Os leitores colocam as suas dúvidas. A Marta esclarece. A propósito de sexo oral, falava a Marta, em tom professoral, das “várias consistências e sabores do esperma”. Estranhei. Parecia que a Marta estava a falar de uma marca iogurte e não de esperma. Em muitos anos de existência só provei um esperma. E foi porque me apanharam desprevenida. De consistência duvidosa, uma espécie de ranho branco, sabendo a terra e ervas tenras esmagadas, não fiquei com vontade de voltar a experimentar. Sabe-se lá o que ando a perder. Esperma cremoso com sabor levemente mentolado. Ou então esperma adstringente com sabor ácido de frutos vermelhos. (E o DN que, não tarda nada, tem o João Marcelino à frente? As voltas que a vida dá.)

2007/02/21

Arlequim


Vou gabar um dos meus rebentos, coisa que, naturalmente, não tolero noutros progenitores: a minha filha é grande apreciadora de comedia del arte e para o ano vai aprender violino no conservatório. Coisa mais linda. (Nem todas as criancinhas têm de ser um poço de parolice. A M. tem a sua parolice - que se revela, de modo efusivo, quando entra numa loja chinesa - devidamente doseada e controlada.)

Guiomar

Guiomar abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis e espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo até que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?

Guiomar cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Eu deixei. Ficámos assim, imóveis, durante alguns segundos. O homem saiu, pouco depois, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só.

Guiomar ri. Continua: Sabe, as horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Sabe porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não preciso de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho de estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho quase sempre os olhos enxutos.

(copy/paste)

2007/02/19

Marilyn

Estou na caixa da loja de brinquedos. Pago a peruca loira que comprei para a Tintim e o chapéu com uma grande pluma vermelha que o João, queira ou não queira, terá de usar no dia da peça de teatro. Aproxima-se uma mulher. Traz o cabelo pingado da chuva. Veste de preto para disfarçar o corpo, rubicundo. É vesga. Posso dizer, sem exagero, que é um verdadeiro estafermo. Apontando para o catálogo, pergunta à empregada “Olhe, desculpe, já não tem este fato da Marilyn?”. Espreito o catálogo que as suas mãos sapudas seguram. Ela quer aquele vestido branco, rodado, muito decotado que esvoaça quando a Marilyn passa por cima de um respiradouro. Solto para dentro, que é para onde sempre se devem soltar os palavrões, um valente foda-se. Perante a confirmação da empregada, a vesga remata com um “Que chatice!”. Eu fico a olhar para ela.

Girafas

Ela: Como é que as girafas falam?
Eu: Não sei.
Ela: Nem eu.
(silêncio)
Ela: Acho que devem ser mudas…
Eu: Ai sim?
Ela: Sim. São como os gafanhotos.

D. Arabela

A gente percebe que a nossa empregada é como se fosse da nossa família quando já não se coíbe de gritar, discutir, fazer figuras tristes à sua frente. Espero que a dona arabela, como lhe chama o João, se assuste com a minha ira matinal e não me peça aumento este ano.

2007/02/18

Auto-Retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Natália Correia

2007/02/16

Retrato


Jean A. Dominique Ingres, 1859
(Quando for muito rica hei-de pagar a um pintor pobre e desesperado para que, imitando o traço de Ingres, me pinte o retrato. Não quero ser pintada como as odaliscas gordas que ele gostava de pintar. Quero um retrato sério, grave, mostrável. Hei-de usar um vestido igual ao de Madame Moitessier.)

Nazaré

Sonhei com o mar da Nazaré. Da praia, numa casa com paredes cobertas de retratos da minha mãe quando jovem, espreito o mar. É um mar de morte. As algas e os peixes que o habitam são melancólicos e silenciosos. Estou à janela e sei que o mar engoliu o meu pai, a minha irmã e os meus filhos. Isso não me entristece. Tenho uma couraça invisível que me protege do sofrimento. No areal o meu irmão esbraceja, aflito, como se o mundo tivesse acabado. (O sonho desta noite é um plágio descarado de um conto do Mishima que lá há pouco. Morte no Verão, é como se chama.)

2007/02/15

Bíblia (3)

Levei a bíblia para dentro da igreja do cata-vento e estive a ler. Uma senhora lançou-me um olhar cheio de compaixão. Consoladinha, muito sonsa, baixei os olhos, aspirei o cheiro do chão encerado e das madeiras do altar, e continuei. Estive lá quinze ou vinte minutos. À saída, pisquei os olhos para cima. O céu ameaçava com nuvens pardas. Mal dei um passo pisei um cócó de cão. Um cócó que se espalhou pelos meus botins de 175 euros que, quase de certeza, não vou voltar a conseguir usar. Um cócó digno de um grand danois, aquele cão gigante que parece uma vaca. Um cocó que merece outro epíteto. Não era um simples cocó. Era um senhor cagalhão. O cheiro espalhou-se e eu, mal o senti, comecei a ter vómitos. Não é exagero. Quis sei lá quem que o meu nariz fosse grande, cyranesco, uma protuberância grotesca que dá nas vistas e assusta. A sua dimensão potencia, pois, os maus cheiros. Enquanto esfregava histericamente o pé num arbusto abri a bíblia que levava na mão e enfiei lá dentro o meu colossal nariz. Esperei, em vão, que o cheiro das sagradas páginas me aliviasse aquela agonia. Ma o sagrado livro não me salvou. E há três dias que estou com gases. Uma chatice. Agora, a falar a sério, não fui feita para ter fé. Sou muito corpo e pouca alma.

Bíblia (2)

No intervalo dos outros livros ando a ler a Bíblia. Não gosto de fixar o calendário que aqui tenho, mesmo à minha frente, observar o quadro do mês de Luglio, pintado por um dos pintores que mais gosto, ler-lhe o título, Riposo nella fuga in Egitto, e não saber quem fugiu do Egipto. Abraão? Moisés? É embaraçoso hesitar entre um e outro. Eu bem me tento desculpar, atirar as culpas para cima dos meus pais que, negligentes, nunca me levaram à catequese. Mas não vale a pena. Incomoda-me não conhecer o básico da sagrada escritura. Não conhecer Deus e os seus homens. Comecei, então, pelo início, que é por onde se deve sempre começar. A Bíblia é um livro que conta uma história. Conta-a sabiamente, de uma forma directa, simples. Sem artifícios ou berloques. Logo no início do Génesis descobri a longevidade dos primeiros homens. Desde Caim, Abel e Set (não sabia que Adão tinha tido um terceiro filho) a Abraão, todos vivevam entre trezentos a oitocentos anos. Não fazia ideia. Fiquei pasmada e maravilhada. A ideia de viver tanto tempo assusta-me. É muito tempo. Demasiado para se viver com o entorpecimento do corpo. Eu não gostava. Mas isso sou eu que não tenho um pingo de fé. Apesar de, volta e meia, a procurar não sei muito bem onde ou porquê.

Bíblia (1)

Riposo nella fuga in Egitto, Caravaggio

2007/02/14

Mel

Vou falar bem de uma figura pública, dessas que estão na berra, que é para não se pensar que sou feita de inveja e fel. Não sou. Cá vai: Gosto do Ricardo Araújo Pereira. É muitíssimo giro. É simpático (ele a interpelar a minha irmã no chiado, a chamar-lhe susaninha, a mostrar-lhe a fotografia da filha acabada de nascer, eu, incrédula, quando ele se foi embora, a beliscar-lhe o braço, a dizer-lhe ouve lá, ó minha cabra, tu conheces este tipo?, ela a sorrir e a dizer ó mana, não sejas histérica). É benfiquista. É inteligente. Tem muita piada. Basta ver a imitação do Marcelo, para confirmar que o Ricardo Araújo Pereira roça o genial. Perto dele, o Herman José faz lembrar o António Calvário. Gosto, pois, do Ricardo Araújo Pereira. Só é pena ser comunista.

Fel

Enquanto esperava pelo Horatio Caine, vi o eixo do mal sobre o pior português de sempre. Coisa insonsa. O painel de comentadores estava tristonho. Dir-se-ia que estavam todos a fazer um grande frete. Estava lá uma espanhuela, com cara de Maribel, que esteve sempre caladinha, mas que, no final, a propósito de coisa nenhuma, aconselhou os portugueses a ter mais ganas, mais garra. Olé. Estava lá também uma rapariga chamada Inês Menezes, uma donzela pálida, grande observadora de costumes, que tentava ter piada, falando da floribela, da floribela e da floribela. Com excepção do Pedro Mexia, não conheci nenhum dos homens que lá estavam. Mas devem ser pessoas importantes. Fiquei com uma dúvida. É impressão minha ou a Clara Ferreira Alves tem, ou quer mostrar ter, um fraquinho pelo Pedro Mexia? Cada vez que o dito diz qualquer coisa ela ri descontroladamente. Ora, é preciso usar com parcimónia o riso. Eu, sem querer ser má-língua, está-me cá a parecer que a Clara está a acautelar o seu futuro literário. Quando finalmente lançar o seu aguardado romance, o tal que tem a ver com Casablanca e está para sair há meia dúzia de anos, o Pedro Mexia, lembrando-se das suas efusivas gargalhadas, da sua inteligência acutilante, da sua superioridade intelectual, da sua arrogância pós-moderna, não terá alternativa a não ser fazer-lhe uma boa crítica.

Valentim

Hoje, para além de ser o dia dos namorados, é também o dia europeu da disfunção eréctil. Gostava de saber se existe algum dia europeu da frigidez. Quase aposto que não há. A frigidez é assunto que, pura e simplesmente, não se discute. É frustração que não se assume. Abre-se as pernas. Recebe-se o esperma. Olha-se para o tecto. Ouve-se a respiração pesada do parceiro. Até se pode dizer qualquer coisa do tipo “anda, anda, vem, vem” que é para ele se entusiasmar e aquilo acabar depressa. E já está. É como se não existisse frigidez. Mas existe. Havia muito que dizer sobre a disfunção eréctil versus frigidez. Mas não tenho tempo, nem discernimento para o fazer. Estou aborrecida comigo mesmo. Gritei com a minha filha pela manhã, fi-la chorar e isso deixa-me de rastos.

2007/02/13

Raízes (2)

Só depois me lembro do resto. E o resto é muito. Tem o cheiro nauseabundo da miséria e da exploração. Tem o cheiro enjoativo da desigualdade. Tem o travo amargo de um futuro que não se conhece nem se adivinha. Tem o cheiro húmido, que se entranha na pele, dos bolores ancestrais. Mas tem, também, o cheiro da esperança. Na verdade, é complicado ser-se de toda a parte e não se ser de sítio nenhum. É difícil ter tantas raízes. Umas compridas, que atravessam países, mares, fronteiras para fundearem lá longe perto do rio Zuari, onde há quintais com cobras e a claridade do crepúsculo tem a cor da clara do ovo. Outras que se estendem além Tejo, por serranias de giestas habitadas por zorras e homens que matam a sede bebendo por caces de cortiça. Outras raízes que latejam memórias antigas, familiares, cheia de bichos: hipopótamos, jacarés, morcegos, leões, macacos, lagartas leitosas que vivem sob a minha pele. Outras ainda, imaginárias, que eu teço, que eu quero ter, que só por incompetência do destino não são minhas. São raízes que acrescento às reais, que atravessam o atlântico para se apaziguarem num lugar onde todos, ou quase todos, são como eu, mestiços.

Raízes (1)

As raízes são uma coisa estranha. Estão escondidas num mar baço de terra. As raízes são tentáculos de um polvo sedento de lembranças aquosas. São elas que alimentam, sustentam, estruturam. Umas crescem. Outras apodrecem. As raízes, as minhas, são invisíveis como as de toda a gente. Por vezes, porém, provocam-me reacções inexplicáveis. Como esta. Leio no Público uma entrevista a dois especialistas de política internacional que por cá andaram a convite da Fundação Oriente. Falam sobre as duas potências emergentes: a China e a Índia. Apontam as diferenças entre ambas. Explicam que a Índia é uma democracia há 60 anos. A maior do mundo, como a gaba o meu pai. Explicam também as diferenças entre ambas. Falam da capacidade intelectual e tecnológica da Índia. Leio e rejubilo. São as minhas raízes do levante que se agitam e se envaidecem. Fico insuflada, inchada de orgulho. Fecho o jornal, olho para quem passa com uma distância triunfal, como quem diz, tomem lá, seus palermas pálidos que é para aprenderem.

2007/02/12

Pai


Steve McCurry, Índia
Desconfio que o meu pai, do outro lado do mundo, me descobriu o blog. Paizinho, não te amofines com os disparates que aqui escrevo. Há muito folclore, muito exagero, muita mentirinha neste diário. Mas, de outra maneira, ninguém lê isto, percebes? Tu sabes que eu não sou assim. Sou um poço de virtude, bom senso, credibilidade e recato.

Ortiga...

…é o mesmo que urtiga. Basta consultar qualquer dicionário para constatar que se pode escreve das duas maneiras. (Confesso: lido mal com o reparo. E também gosto pouco, muito pouco, de ser contrariada ou corrigida. Tenho, como diz a minha mãe, um feitiozinho de merda.)

Âmbar

Fui à Gulbenkian ver o “Sentimento”, do Visconti. Não sei se gostei do filme ou não. Gostei? Há demasiada humilhação naquela mulher, demasiada estupidez e loucura. Tenho vontade de a esbofetear. O amor dela agonia-me. Mas há detalhes, palavras, planos que, de tão intensos, nos ferem e maravilham. Como, por exemplo, o plano que se vê depois de Lívia finalmente ceder à prosápia de Franz e lhe franquear a sua cama. É um plano sóbrio - porventura, dispensável -, que mostra apenas a luz de um candeeiro que se apaga. Nesse plano vi a noite tornar o amarelo e o âmbar em violeta e azul. Nunca a escuridão me assustou tanto.

D. Quixote

O Rui Santos diz hoje, no novo Público, que não se sente um D. Quixote, mas mais como um Francisco Louça do futebol. Ena. E eu que tinha o Rui Santos como um latoeiro, anti benfiquista, armado aos cucos e com muito mau gosto para escolher gravatas e se pentear (que caracóis são aqueles?). Afinal o homem tem decência. Tem o bom senso de recusar uma comparação com uma figura literária do calibre do D. Quixote, permitindo-se apenas comparar com um tele-evangelista, demagogo e intelectualmente desonesto.

2007/02/09

Julia Cota

Outra sugestão: Na Rua do Coliseu, logo no início, há uma loja de artesanato. Perfilando-se, altiva, naquele magnifico cortejo de figuras burlescas, destaca-se a figura de uma mulher gorda, baixa, muito feia, a fazer lembrar um sino vermelho. Tem um buço enorme, arrecadas douradas nas orelhas e as sobrancelhas carregadas como pássaros prestes a levantar voo. É uma peça da Júlia Cota. Custa 62 euros e eu quero-a.

Helena Andreevna

Ali, às portas de Santo Antão, comemos bacalhau com grão, temperado com cebola crua, salsa, e muitos dentes de alho. Ela, de unhas vermelhas (um vermelho da cor do licor de ginjas), picou os alhos com as mãos. Eu, também de unhas vermelhas (um vermelho da cor das framboesas), mais recatada, utilizei a faca e o garfo para os picar. Acabámos a refeição com um hálito, pesado, denso, que só deve passar daqui a uma semana. Ainda estou a arrotar a cebola. Estou até um bocadinho mal disposta. Tem razão a minha filha, quando, perante o meu inusitado desejo de ir viver para o outro lado do mundo, me pergunta se eu era capaz de viver longe da Maria Emília. Não era. Quem tem uma Helena Andreevna na vida não se pode dar ao luxo de a perder.

Velho

Todos os dias o filho vem trazê-lo. O homem ali fica, sentado sobre a laje fria, encostado a uma das colunas da entrada do edifício. Passa o dia inteiro, com a mão estendida, pedindo uma moeda para comer. Às vezes quando o frio esmorece, descobre a cabeça e deixa visível um enorme bocado de carne, uma bola mole, uma verruga gigante. Porventura quererá com esse gesto compadecer os transeuntes que passam ou, então, justificar a sua presença diária naquele sítio. A D. Bia, a gueixa ruiva da 5 de Outubro, enquanto remexe nas suas coisas, vai dizendo que é uma pouca vergonha, que o pobre do velho já deve ter o cu calejado, que anda uma pessoa a criar um filho para ter uma besta destas (refere-se ao filho do velho). Aprecio, sempre apreciei, a linguagem desta mulher. Gosto especialmente de a ouvir falar do filho, de uma feiura inenarrável, e do marido, levemente idiota. Durante o fim-de-semana, o velho não está ali. A cidade morre ao sábado e domingo. Em vez de o trazer para a avenida, o filho leva-o para as chegadas do aeroporto. Deixa-o estrategicamente sentado ao lado das máquinas do parque de estacionamento. Ao final do dia vai recolhê-lo. O velho segue-o, os olhos colados no chão, titubeante como a luz que uma vela que está prestes a apagar-se.

2007/02/08

Amanuense

Na tabacaria, depois de comprar vários maços de cigarros que fumarei noite fora para compensar o desmame abrupto dos anti depressivos a que me forcei, pedi uma chave do euromilhões. Parece que há um prémio qualquer. Desconfio que vou ganhar. A sério. Deixo logo de trabalhar. Livro-me de vez das providências cautelares no novo contencioso administrativo, arrenego a nulidade e a anulabilidade do acto administrativo, mando às ortigas os cadernos de justiça administrativa e o mais que se amontoa em cima desta secretária. No fundo, sou uma amanuense. Nada mais do que uma amanuense. Não quero ser amanuense a vida inteira.

Lince da Malcata

Um dos argumentos que os defensores do “não” volta e meia avançam é o de que a liberalização da IVG potenciará o acelerado decréscimo da natalidade na Europa. Estão preocupados com a extinção da espécie, das estirpes, da raça caucasiana. Aterroriza-os que, daqui a uns anos, já não haja europeus. Temem que os asiáticos, indianos, chineses, os magrebinos, os africanos, tomem conta disto. Ui, que chatice. Eu acho que havia de se criar uma associação para a preservação do Europeu. Assim como há uma associação para a preservação do lince da Malcata. Uma das medidas passaria naturalmente por proibir a interrupção voluntária da gravidez em qualquer circunstância e obrigar as mulheres, feitas para parir, a ter pelo menos meia dúzia de filhos.

Parvati


(Chamaram-me puta. Não me chateava se me chamassem puta se o fosse. Mas não sou. Sou uma consorte. Como Parvati.)

2007/02/07

Kamasutra lésbico

Perdi o comboio do costume. Para fazer tempo desci até à livraria da estação. Na prateleira dos livros de sexologia, dei de caras com um Kamasutra lésbico, um livrinho de capa vermelha, a anunciar pecados e devassidão. Não resisti e comecei logo a desfolhá-lo. Uma desilusão. Um logro. De uma pobreza franciscana. Não é sequer escrito por uma mulher. É escrito por um homem, insignificante (como quase todos os homens), cujo nome não recordo, que foi jornalista da TVI, que escreve actualmente na Flash, que foi responsável pelo Magazine do Big Brother e, como não podia deixar de ser, num país de literatos como é este, se assume como escritor. Ora, basta a gente ler o currículo da criatura e olhar-lhe para o trombil para perceber que o tipo é uma daquelas bichas irritantes, cheias de meneios femininos e voz nasalada. Mas como é que um homem, que é bicha, que não percebe um corno sobre mulheres, se atreve a escrever um kamasutra lésbico? Até eu, que não sou assumidamente lésbica, escreveria melhor sobre tal assunto. Irritada, atirei com o kamasutra lésbico para o fundo da prateleira. Para me acalmar trouxe um kamasutra clássico, ilustrado, cheio de mulheres contorcionistas, lingams erectos e vaginas que se assemelham a flores de lótus. Logo a abrir uma ilustração maravilhosa dos jogos amorosos de Shiva e Parvati.

2007/02/06

Pinguelinho (3)

Já sei o que é o pinguelinho. Uma alma caridosa teve a bondade de mo explicar. Afinal não tem nada a ver com pingue. É o clitóris. Tenho a cabeça a andar à roda. A falta que o xanax me faz…

Pinguelinho (2)

Fui almoçar com o pinguelinho. Eu a comer a lasagna de atum e o pinguelinho por ali, incógnito, desconhecido. Eu a beber o café ao balcão, e a maldita palavra a pairar em cima da minha cabeça, tomando a forma de um enorme ponte de interrogação. Cheguei ao gabinete com a cabeça a andar à roda. Logo hoje que me esqueci de tomar o xanax. Procurei em vão no dicionário. Como era esperado, nada, nadinha. A palavra pinguelinho faz lembrar uma outra que já caiu em desuso e que encontro amiúde nos romances do século dezanove: pingalim. Terá o pinguelinho origem no pingalim? Não. O pingalim, em vez de açoitar as bestas, pode, é certo, ser utilizado como acessório sado-masoquista. Desconfio, porém, que pinguelinho há-de ter mais a ver com outra palavra: pingue.

Pinguelinho

Durante a leitura diária dos anúncios eróticos do Público, descubro uma palavra nova: pinguelinho. Duas tipas anunciam ter um pinguelinho grandíssimo. Assim mesmo. Fiquei curiosa. O que será um pinguelinho? E, por oposição, haverá pinguelinhos pequeninos? Imagino que não seja nada bom ter um pinguelinho pequenino.

Hrithik Roshan

Mas, entendamo-nos, apesar de gostarem dos livros que lhes leio - o que, confesso, quase me faz ter por boa mãe -, ele gosta incomparavelmente mais do Mantorras do que do Ulisses e ela gosta muito mais da Priyanka Chopra do que da Penélope. Eu gosto mais do Hrithik Roshan.

Odisseia

Mais do que o terrível Polifemo, mais do que a bela Calipso, mais do que a mágica Circe, mais do que as melopeias das Sereias, mais do que o reconhecimento de Argos (tão esperto, o cãozinho!, diz a Dindim, batendo palmas), eles gostam é do final: Ulisses, depois de vinte anos de ausência, reencontra Penélope. São uns românticos. Têm a quem sair. Parecemos três parvos, embevecidos, a olhar para aquele abraço.

2007/02/05

Nana Kleinfrankenheim

Já tenho programa para o dia do referendo. Fujo dos debates, dos comentários, da Joana Amaral Dias e da Laurinda Alves, tão empenhadas em coisa nenhuma. Às vezes penso que, se calhar, no fundo, bem lá no fundo, sou lésbica tal é a atracção, o amor que tenho a esta mulher (mana, aviso-te que o poster deste filme constitui prenda de aniversário garantidamente querida.)

Ribadouro

Entardece. Subo a avenida. Mexo na dupata amarela que trouxe de um dos labirintos de Bombaim. As vozes de Mister Deluxe e de Austin ecoam ainda nos meus ouvidos. Hei-de ler, penso, com urgência, de supetão, com sofreguidão (é como se deve ler), o romance do Dinis Machado. Perto da cervejaria Ribadouro um homem-sombra atravessa-se no meu caminho. Pergunta-me se não quero fazer amor com ele. Assim mesmo. Não estranho que o homem-sombra se meta comigo. Deve meter-se com todas as mulheres que, sozinhas, pelo crepúsculo, encontra subindo a avenida. Estranho, isso sim, a inadequação das palavras que utiliza. As pessoas fodem, fornicam, copulam. Não fazem amor.

Blanche Dubois

No sábado, depois de ver “um eléctrico chamado desejo”deitei-me com a Blanche Dubois. Enquanto enterrava o rosto no braço do R. percebi que era com ela que também ele se deitava. Não comigo. Pela manhã, deixámo-la sossegada na nossa cama. O desespero e a solidão aninhados nos nossos lençóis. Saímos de mansinho para a não acordar.

2007/02/02

Ganges

Voltei ao ginásio. No balneário vi-me rodeada de rabos cheios de celulite enfiados em cuecas fio dental. Compadeci-me daqueles pobres rabos agrilhoados. Há o rabo descaído da jurista sénior que tem focinho de doninha. Há o rabo da histérica, apreciadora de pratos de tofu, que faz os exercícios todos, os esquemas todos, as séries de abdominais todas, que nunca se engana em nenhum passo. Há o rabo empinado, lisinho e bonito da professora. Conheço bem estes rabos. Já quase consigo encará-los sem fazer um esgar de nojo profundo. Hoje, porém, ia morrendo. Estava eu a vestir-me, calmamente, e a topar os movimentos das outras mulheres quando saiu do chuveiro uma rapariga que também frequenta a minha aula de ginástica. É uma rapariga cujos traços anunciam uma castidade genuína. Tudo nela é virginal. A pele leitosa. O sorriso beato. O cabelo claro e ondulado. Os pelos púbicos ralos. Os mamilos feios. Eu olho para ela e tenho a certeza de que tem filhos, pertenceu, quando nova, ao grupo de jovens da paróquia, é fiel e feliz com um marido calvo e magrinho. Estava eu a olhar para ela e a compadecer-me do seu rabo, cheiinho de celulite, uma autêntica gigantesca casca de laranja, quando a vejo puxar de umas cuecas pretas. Estranhei, confesso, o preto. Ela vestiu as cuecas e passou ao sutian. Para meu espanto, em vez de as esconder, deixou as horríveis nalgas, cheias de buuraquinhos, à mostra. Descri. Pensei, juro que imaginei, que ela tinha umas cuecas normais e só que, por descuido, as deixara enfiadas no rego do rabo. Mas não. Percebi que ela estava a usar um fio dental quando lhe olhei para o rosto e vi o ar satisfeito que tinha. Quando uma mulher assim, uma mulher que sabe o acto de contrição, cede à ordinária tentação de usar uma cueca fio dental é sinal evidente de que o mundo está perdido. Saí desanimada do balneário. Com vontade de mergulhar nas águas sujas do Ganges para me livrar desta imundície.

Sari

Ó filha tem juizinho! Diz a minha tia quando, no dia seguinte, me ouve, pelo telefone, pedir ao meu pai para me trazer do mercado de Margão um sari branco, em algodão. Para que queres tu, um sari?! O teu pai sabe lá comprar isso! Deve trazer uma coisa linda! Aproveita mas é os saldos para comprar um fatinho…E continua a resmungar. Fico a pensar no fatinho que a tia Dé gostaria que eu comprasse e em mim instala-se a certeza de que alguns dos que estão próximos gostariam que eu fosse levemente diferente, normalizada, assim como as maças que se vendem no continente.