2011/11/25

Anna

2011/11/20

Roda Viva



(há a rapariga do apito, a anã bem penteada, o menino que entretanto envelheceu, o homem de bigode preto e perna traçada.)

2011/11/17

Aninhas e a intimidade

Aninhas estranhava a facilidade com que as outras mulheres se tornavam íntimas. Pouco depois de se conheceram, trocavam beijinhos, tratavam-se por tu, contavam segredos de fêmea, partilhavam ralações domésticas enquanto comiam mini pratos de lulas recheadas sobre mesas de fórmica. Aninhas não tinha vocação para a comiseração do género e não apreciava a devassa, assim, em pedaços de névoa cheirando a gordura, da vida familiar. A intimidade que essas mulheres partilhavam não lhe interessava, parecia-lhe banal e ordinária; envergonhava-a. Na realidade, por arrogância, Aninhas não era íntima de ninguém. Não era sequer íntima dos homens com quem dormia. Despia-se à frente deles, com as janelas abertas, a luz do dia iluminando-lhe o corpo. Tirava a roupa devagar, numa lentidão de gestos propositada, primeiro a parte de cima, abrir os botões da blusa, um a um, depois os sapatos, as meias de licra, o ruído de fecho da saia mordendo o silêncio. Aninhas gostava de mostrar o corpo porque sentia que era a única coisa que tinha para dar. Fazia questão de o mostrar, imaculado, puro, virgem, pronto para o sacrifício. Dormia com esses homens sem nada lhes revelar, não dando nada, não esperando deles nada em troca. Nunca chegava a ser íntima dos homens com quem dormia. Na verdade, o sexo, que Aninhas apreciava moderadamente, tinha isso de bom: era tão desinteressante que dispensava a intimidade.

2011/11/16

Dentro



(fui de Lisboa a Tavira a escutá-lo; o bem que me fez.)

2011/11/15

Bonjour Tristesse



Uma vez por mês, esta a exacta periodicidade da sua visita, chega-me uma tristeza grande. Não traz desespero, nem pensamentos sombrios; há muito tempo que não imagino pulsos cortados, nem pés descalços sobre o parapeito de uma janela, nem o vento frio na plataforma de uma estação de comboios. A tristeza traz só tédio, escava um buraco no meu corpo, ali se aninha e descansa. Anda comigo durante dois ou três dias. Depois, como chega, vai-se embora.

Amanuenses

O rapaz das arcadas virou a cabeça para tentar identificar o livro que eu levava debaixo do braço. No edifício onde ambos trabalhamos há muitos leitores: leitores de jornais de distribuição gratuita, de jornais desportivos, leitores de revistas cor-de-rosa, leitores de biografias de rainhas, leitores de livros de auto-ajuda, leitores de romances escritos por apresentadores de televisão. Há certamente, no edifício onde trabalho, muitos outros leitores, gente que gosta de ler, que encontra na literatura uma companhia silenciosa e que define alguns critérios de exigência literária para escolher um livro. Porém, só eu e o rapaz das arcadas gostamos de mostrar os livros que lemos. Mostramo-los um ao outro, num jogo diário, absurdo e inconsequente, mas, sobretudo, mostramo-los aos outros funcionários do edifício, aos colegas de serviço, aos seguranças do átrio central, aos estagiários que fazem fila junto dos torniquetes da entrada. Queremos com esse gesto mostrar a inquietude que trazemos colada à pele, dizer-lhes que aquele não é o nosso mundo, que estamos ali por necessidade, é o destino truculento e zombeteiro que nos obriga ao cansaço do trabalho e ao aborrecimento da vida amanuense. É uma atitude tão parva que até enjoa.

2011/11/14

Rodovalho

Abro o papelote de alumínio, arranco peles, solto os lombos triangulares, enfio os dedos por baixo dos opérculos, junto da cabeça, para retirar os pedaços mais brancos e saborosos. Com a ponta dos dedos, parto os lombos em porções mais pequenas, tacteando, esfarelo um pouco, à cata de espinhas, tem muito cuidado a arranjar o peixe do teu filho, se o menino fica com uma espinha atravessada é uma desgraça, nem sabes a quantidade de crianças que apareciam no hospital engasgadas, tossiam, tossiam, arranhavam a garganta, pareciam cãezinhos a rosnar, um, lembro-me bem, morreu asfixiado com uma espinha de bacalhau enterrada na garganta, ninguém a conseguiu de lá tirar, assim costuma dizer a minha tia com quem, por segurança e prazer, aprendi a arranjar o peixe com as mãos. Amachuco o papelote de alumínio cheio de espinhas, escamas, peles, gorduras ocres, embaciadas, cheio de lixo. Salvo, porém, a cabeça do peixe que coloco num prato. Não há no peixe parte mais saborosa do que a cabeça, aí se concentra, de forma espantosa, todo o sabor do mar. Sento-me com o prato à minha frente. Pego na cabeça com as duas mãos e, com um pequeno esforço, abro-a em duas metades. Estalam os ossos. Partem-se os ossos. Chupo mandíbulas, maxilas, bolbos inesperados de carne, tacteio a fileira de dentes cónicos e finos, enfio os dedos nos globos oculares para soltar os olhos que vêm numa bolsa gelatinosa e escura. Mastigo as bolsas e parecem de areia. Por fim, fico apenas com a couraça central do crânio que enfio na boca; presa nos molares, trinco-a. Abre-se esse centro de massa encefálica, é uma coisinha de nada, uma massa aguada, de um branco sujo, sabor intenso. Chupo a mioleira do peixe.

Assim sentada na cozinha, chupando uma cabeça de peixe, recordo um homem cuja insignificância – tamanha – fez com que dele me esquecesse durante muitos anos. Chamava-se Paulo Henrique e foi meu pretendente. Fomos colegas na universidade. Empregou-se, pouco depois, fruto de conhecimentos privilegiados, numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. Levava-me a almoçar. Também me levava a concertos na Gulbenkian e tamborilava os dedinhos. Levava-me a esses sítios com o propósito de me mostrar um certo estilo de vida, que me propunha, se me escolheres, parecia dizer, não tarda nada guiarás um audi, eu um bmw, seremos dois jovens adultos de sucesso, os nossos filhos poderão frequentar um colégio jesuíta, em meia dúzia de anos, se os juros se mantiverem baixos, podemos comprar uma casa de férias em Tróia.

Um dia, sabendo que eu gostava de peixe, levou-me a comer a um restaurante finório. Queria impressionar-me. O restaurante ficava ali para os lados de Entrecampos. Era um sítio de sombras, um luxo decadente de dourados oxidados e fetos artificiais. Um restaurante de adúlteros, de patrões e secretárias, de traições breves, repetidas, urgentes e essenciais. Cheirava aquele lugar ao sexo feito nos carros estacionados na escuridão junto ao rio, ao sexo feito nos quartos de hotéis baratos, pressentiam-se ali humidades, lingerie molhada, falos entumecidos, mamilos túrgidos sobre mesas postas com preceito, guardanapo de pano, copos de cristal, o pão colocado à esquerda, num pratinho com a faca da manteiga.

Veio o peixe, um rodovalho (não era sequer um linguado, não era um peixe fino, espalmado, era um peixe gordo, carnudo, mas uma pessoa, às vezes, tem de criar ocasiões para usar as palavras de que gosta muito), numa travessa de faiança branca, num carrinho de rodas que chiava, empurrado por um empregado de jaqueta branca. O empregado, muito sério, rigidez de empalamento no corpo, serviu-me um lombo que regou com um fiozinho de azeite, duas batatinhas oblongas e um raminho de grelos a acompanhar. O meu pretendente olhava-me e sorria com os olhos. Os seus olhos continuavam a falar. Se ficares comigo, diziam os seus olhos, ofereço-te a sofisticação que nunca tiveste, livras-te da tua avó de lenço preto à cabeça, da tenda de campismo do teu pai nas férias grandes, das roupas compradas em saldos pela tua mãe.

Mal sabia ele que a sofisticação, depois de um período breve de apetecimento, começava naquele tempo a dar-me voltas ao estômago e que tenho da família uma visão assumidamente mafiosa, assente em muitos anos de discussões, gritos, reencontros. Dispenso os amigos, não cuido deles, mas se um dia me morre um irmão, um pai, um filho, morro também. Comi os lombos educadamente, fazendo um esforço para manter a boquinha fechada, limpando os beiços ao guardanapo de pano. No final, para tornar irrecusável o seu amor, o Paulo Henrique disse quanto ganhava. Era muito. Senti naquele momento uma vergonha muito grande por um homem assim me querer. Afinal que havia em mim que pudesse fazer aquele homem pensar que me podia ter? Olhei a cabeça do rodovalho defunto, o tal que não era, fugindo no carrinho que chiava, empurrado pelo empregado de jaqueta branca, e dei conta de um requisito essencial para escolher um homem. Precisava de encontrar alguém gostasse de me ver comer com as mãos.

2011/11/09

Verdes Anos

2011/11/06

Pripyat

No dia a seguir ao acidente, a cidade despertou na sua rotina, ignorando a dimensão da tragédia. Os jovens casais de cientistas, engenheiros, técnicos de manutenção, despediram-se com um beijinho. Um homem pediu à mulher que, se arranjasse beterrabas e repolho no mercado, lhe preparasse um borsch com natas azedas para o jantar; uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino e pães de ázimo; dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto de um bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas; uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a nostalgia aguda dos espaços vazios. Nessa manhã, a vida continuou como se nada fosse, porém, a radioactividade, bicho invisível, já se havia espalhado por toda a cidade, entrara nas casas, gotejara pelos algerozes, penetrara nos solos, espreitara pelas frinchas, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar.

2011/11/05

2011/11/04

Dr. Lucas

A minha tia trabalhou muitos anos no bloco operatório do Hospital de São José. À noite, quando se deitava - eu e a minha irmã Susana, muito quentinhas, encostadas ao seu corpo - falava sempre do dia de trabalho. Hoje chegou ao bloco um homem desfeito, politraumatizado, não levava cinto de segurança, o carro onde seguia foi para a sucata; a mulher que estava na cama 5 morreu depois do almoço, deixou marido e uma menina pequenina, coitadinha; um rapaz chegou do hospital de Beja, foi atropelado por um tractor, a noiva passa os dias a chorar na sala de espera, não come, não dorme, só chora. Havia nas histórias da minha tia um realismo tal, tão intenso e absurdo, que as tornava distantes, não nos tocava. Nesse recontar dos seus dias, deitada connosco, uma de cada lado, falava das colegas, a Gamito, a Domingas, a Conceição Anselmo, simpáticas, solteiras também, comunistas também, ofereciam-nos livros de fábulas, bonecas de trapo, tabletes de chocolate Regina. A minha tia falava também muito de um médico. Os seus olhos sorriam quando falava desse homem. Dr. Lucas, dizia ela e, instantaneamente, o rosto iluminava-se, uma felicidade absoluta fazia com que os músculos das extremidades da boca flectissem, sorria. O Dr. Lucas só me quer a mim no bloco operatório, repetia a minha tia; essa preferência trazia-lhe uma alegria breve que não conseguia disfarçar. Deitadas na cama, à espera que nos lesse mais um capítulo das Minas do Rei Salomão, percebíamos que não era por causa do brio profissional que a tia Dé ficava feliz por assistir o tal médico no bloco operatório. A minha tia amava o Dr. Lucas. Muitas vezes, tentei imaginar esse homem. Nunca consegui escolher para ele um rosto. Havia aquele nome, Lucas, que exigia certo exotismo de traços e havia o entusiasmo, a coragem de lidar com a morte, tudo aquilo requeria um rosto único, forte, marcante, o rosto de um herói grego. As minhas capacidades de inventar rostos para as pessoas, que, mais tarde, vim a apurar, eram naquela altura ainda muito limitadas. Cada vez que a minha tia falava do Dr. Lucas, eu colocava-lhe um rosto diferente, banal, incapaz de se recordar.

Uma manhã de sábado, luminosa, ao fugir da minha irmã, bati com o queixo na esquina do frigorífico. Abriu-se uma fenda grande e profunda, pingos muito vermelhos de bordos irregulares caíram no chão da cozinha forrado a linóleo. Os meus pais acudiram. Enfiaram-me no carro e levaram-me ao bloco operatório onde a minha tia estava de serviço. No banco de trás, o carro atravessando o Areeiro e a Almirante Reis, mão no queixo a empapar o sangue com uma compressa, as unhas roídas, ia consolada com a minha dor. Finamente teria oportunidade de conhecer o tal médico. Tenho esse dia muito presente. Levava um gancho azul da Heidi a prender-me o cabelo, um gancho metalizado, o que eu gostava do brilho desse gancho, tive um desgosto quando o perdi. Vestia uma saia de pregas e uma camisola de gola alta, em tons alaranjados, que me picava muito no pescoço. Tenho esta capacidade extraordinária de recordar minúcias, detalhes, fixar-me naquilo que é irrelevante. É uma capacidade que não tem préstimo nenhum, mas tanto que gosto de a ter. Nessa manhã, a gola da camisola a picar-me o pescoço, deitada numa maca que me sobrava, olhos postos nas luzes brilhantes do bloco operatório, pareciam óvnis, procurei por todo o lado o tal Dr. Lucas. Porém, porque não estava de serviço ou porque, estando, ninguém o chamou pelo nome, não o conheci. Na verdade, nunca cheguei a conhecer tal homem. Anos mais tarde, a minha tia deixou o bloco operatório de São José, foi para a maternidade Magalhães Coutinho e, com o tempo, deixou de falar desse homem que nunca ganhou um rosto.

(Lembro-me muito do Dr. Lucas. Talvez por ter agora a idade da minha tia quando o amou.)

2011/11/02

Gentia



(amo-o.)
(país de parolos que agora se esforça por gostar de fadistas boazonas.)

Translucidez

Aproximam-se dois miúdos. Chegam ruidosos, cabelo empastado de gel, ar trocista, vestidos de gangas barrocas, cheias de brilhos e tachas. A sua chegada provoca um frémito de desconforto. São ciganos. Vivem nos blocos de realojamento que a câmara construiu há pouco tempo. As famílias ciganas quebraram a paz do bairro. Trouxeram ruído, alguma violência. Há uma guerra não declarada entre os habitantes do bairro residencial e os que vivem nos blocos de habitação social. É uma guerra silenciosa, mas, como em todas as guerras, assenta num ódio que não conhece excepções. Odeiam-se todos os que estão do outro lado: homens, mulheres, velhos, deficientes, crianças como estas que se aproximam da fila do pão. Os dois rapazes observam os velhos com olhos de gavião. O esquema é sempre o mesmo. Precisam de encontrar o mais frágil, aquele que mais facilmente deixe entrar o medo, a vítima ideal que permita o pequeno furto, tão pequeno e irrelevante, que nem parece ser aquilo que é.

(O nº 3 da revista The Printed Blog sai esta semana. Saio com ela.)

2011/11/01

Sangue do meu sangue



(Digo-lhe, num suspiro, és a única pessoa com quem gosto de vir ao cinema. Não tira os olhos do ecrã. Márcia não sabe que sopa há-de fazer amanhã. É mentira, diz, és uma mulher muito mentirosa, também gostas de vir com o avô.)