2007/05/31

Teresa Torga

No centro a da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua.

A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela

Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala.

Dizem que se chama Teresa
Seu nome e Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga.

Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que a diga António Capela.

T'resa Torga T'resa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha.

José Afonso

Pingue-Pongue

Alguém devia explicar ao Rui Tavares e à Helena Matos que os leitores do Público estão-se nas tintas para as suas picardias diárias. Começam a roçar o insulto gratuito. Eu até aprecio a arte do insulto. Faço mesmo questão que a cultivar neste blog. E não gosto de discussões cordatas, em que todos se respeitam e escutam. Mas tudo o que é demais cansa. Às tantas, o Rui Tavares e a Helena Matos já não estão a discutir ideias ou argumentos. Estão apenas armados em parvos. Se querem andar à traulitada, vistam umas tangas, besuntem-se de lama e vão para um ringue qualquer da Brandoa.

Helena

A Helena Roseta apoiou o Manuel Alegre. O Manuel Alegre apoia, ainda que não formalmente, a Helena Roseta. Quando os oiço, na defesa um do outro, por mais que tente, não consigo separar as águas e neles distinguir a vida pública da vida privada. Porque quando se apoiam, quando sorriem, quando ela diz “o Manuel Alegre”, quando ele diz “a Helena Roseta”, há nos olhos deles um brilho que transborda para fora do ecran e me faz chegar o amor que viveram.

São Tomé

Caravaggio, 1602

2007/05/30

Pré-História

Resolvi ir a uma aula de Pré- História. Foi a primeira a que fui. O professor começou por falar da matéria do teste da próxima semana. Indignei-me. Teste? Depois, continuou, falando do homem acheulense e mostrando triedros, machados e seixos truncados. No final da aula resolvi socorrer-me de alguém. Bati nas costas do rapaz da frente, que me pareceu aplicado, atento. Fiz-lhe um sorriso encantador. E cruzei as pernas. Perguntei-lhe se me emprestava o programa e a bibliografia da cadeira. Ele corou. Muito branquinho, muito anafadinho, muito novinho, luzidio. Fez-me lembrar um carneiro. Daqueles lãzudos, que se passeiam, aos saltos, por pastos verdes, balindo méés atrás de méés. Perguntei-lhe o nome. Felipe. Olá Felipe. Eu sou a Ana. E pestanejei. Simpático, o Felipe. Emprestou-me cadernos e apontamentos. Resolvi aproveitar a sua boa vontade e perguntei-lhe pelas outras cadeiras que ia tentar fazer. Antiguidade Grega e Roma Antiga. Ele pôs-me ao corrente de tudo. Entretanto, outro colega, daqueles de olhar oblíquo, que nunca nos olham de frente, meteu-se na conversa e resolveu ajudar-me, também ele, em relação aos métodos de avaliação das disciplinas. Às tantas, começou a falar de um trabalho para outra cadeira qualquer. Foi então que o Felipe, o rapaz-ovelha, lustroso, exclamou “Ó Hugo, está calado que a senhora não vai fazer Métodos Quantitativos!”. Engoli em seco. Senhora? Senhora? Eu não sou ainda uma senhora. Senhora é a minha mãe. E a minha tia. E a D. Susy, a secretária da direcção que usa cinta. Foi nesse momento que percebi o que sou. Não tarda nada estou na meia-idade. Tenho cerca de vinte cabelos brancos. Tenho dois filhos, um dos quais já usa o mesmo número de sapatos que eu. Já me separei. Já me reconciliei. O que significa que já passei a fase do casamento e do nascimento dos filhos. Comovo-me como não me comovia. Pior, gosto de fumar cigarros e sentir-me miserável, junto dos cravos túnicos e dos morangueiros, noite fora, enquanto oiço o Charles Aznavour ou a Elis Regina. Em resumo, sou pré-histórica. Como os seixos truncados.

(Texto extraído de berloque já exterminado. O ano passado, imagine-se tamanho devaneio, resolvi voltar a estudar. Nem uma cadeira fiz. Desisti. Sou muitíssimo boa no corajoso acto da desistência.)

Io

“Imediatamente a minha forma e o meu espírito se desfiguraram, e, com cornos, como estais a ver, e, picada por um moscardo de ferrão agudo, em dança louca, me precipitei para o manancial de Cercneia de tão boa água e para a fonte de Lerna”, assim diz Io, a virgem-novilho que se cruza com o Prometeu agrilhoado. Chamam-lhe virgem-novilho. Eu chamar-lhe-ia virgem-vaca.

2007/05/29

La Saraghina

Fellini/8½

Malaguetas

Releio-me e, em surdina, digo todos os palavrões que conheço. Não são muitos. Mas são poderosos como o cheiro das malaguetas vermelhas. Embaraça-me ser depressiva. Os depressivos, os deprimidos, os asténicos, os cansados, os sempre tristes e sós, os suicidas (só os que efectivamente se conseguem finar merecem respeito), os lacrimosos, são tão estúpidos como os anorécticos. A depressão é doença de gente fútil e eu tenho horror à estupidez e à frivolidade. Devia existir um grupo de jovens voluntários, daqueles empenhados, sonhadores e gadelha hirsuta, que se organizasse em ongs e nos enchesse, aos depressivos e aos anorécticos, de pancadaria. Que nos esbofeteasse até ganharmos de novo um pingo de lucidez. Era um favor que faziam à sociedade.

Dálias

Herdei da minha mãe o feminino deslumbre pelas jarras com arranjos barrocos, pelas plantas que crescem em vasos, pelos arbustos com cheiro de infância, pelas estufas, pelas floreiras com gerânios descarnados nas varandas, pelas árvores, pelos jardins, pelas mãos enterradas na terra. Gosto de ter a casa florida. Por isso, de quinze em quinze dias, vou ao cemitério dos Olivais comprar flores. A florista dá-me sempre um raminho de vivaz para compor as jarras dos cravos. Estranha que compre apenas um gladíolo e, também, o horror que tenho à maior parte das flores que vende. Margaridas, coroas imperiais, gerberas. Impacienta-se quando me queixo da ausência total de dálias nas floristas de Lisboa. Não há filha! As dálias não crescem em estufa!, explica enquanto ajeita as pequenas coroas de flores de plástico em forma de coração. Aquelas coroas de plástico, contou-me certa vez, têm muita saída. São mais baratas, resistem ao sol, à chuva e ao vento. Às vezes atravesso o portão. Passeio entre túmulos e campas. Espreito as fotografias em tom sépia dos defuntos. Leio os dizeres cheios de amor e eterna saudade dos familiares. É fácil amar os mortos.Os ciprestes que, se perfilam junto ao muro, guardam o silêncio do cemitério.

Bombay Shapire

Entra um homem novo no café. Veste um casaco de cabedal. Usa óculos escuros demasiado grandes para o seu rosto pequeno. Parece um insecto. Uma varejeira de olhos esverdeados. Tem um corte de cabelo moderno. Levemente comprido atrás. Espetado em cima. Pela conversa, percebo que conhece os empregados. Fala sobre o Benfica e sobre o euromihões. Espia-me pelo canto do olho. Ri. Pergunta a uma das empregadas quando é que ela se despacha a levar o frio. Diz que tem saudades do calor, da praia da Caparica, das miúdas de camisolas de alças. Sacode levemente o corpo. Dá uma gargalhada pequena. Está contente consigo próprio. A mulher também ri. Para esconder o riso feio levanta uma mão muito vermelha e tapa a boca. O homem insecto pede um café. Cala-se por breves instantes. Estranho-lhe o silêncio. É inesperado. Escuto. Bzzzz, bzzzz, bzzz, faz o silêncio do homem-insecto. Volta a olhar-me. Mexe num telemóvel prateado. Olho para o escaparate espelhado que está à minha frente. Vejo-me do outro lado do espelho. Ali estou eu. Aquela sou eu. Tenho o cabelo solto. Estou velha e feia. Vivo rodeada de semi-deuses, de gente que não confessa uma infâmia, nem sequer uma amargura, jamais a solidão (como é bom plagiar os poetas). Ao meu lado um insecto gigante sorve uma chávena de café. Somos ambos grotescos. Desvio o olhar. Fixo-o numa garrafa quadrangular que contém um líquido azulado. Bombay Shapire.

2007/05/28

Selma

Como diz a canção, tenho a vida partido em mil pedaços. Há uma cacaria de vidros espalhados pela casa-labirinto. Os meus pés ferem-se e sangram. Procuro pensar em coisas que me animem: a Dádá acha-me parecida com a Selma Hayek.

2007/05/26

Dalida

(Para a Maria Emília, que é feita de sol. Como gosto de si.)

2007/05/25

Guiomar (3)

Guiomar ri. Continua: Sabe, as horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Sabe porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não tenho de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho que estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho quase sempre os olhos enxutos.

Guiomar (2)

Guiomar cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Ou porque foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois, senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Eu deixei. Ficámos assim, imóveis, durante alguns minutos. O homem saiu, por fim, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só.

Guiomar (1)

Guiomar abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis e espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo até que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?

Homem-aranha

Também conheço um homem com nome de anjo que, amiúde, morre por amar. Cada vez que ama morre. É como a aranha macho que, quase sempre, morre depois do coito. Fecunda a fêmea tecelã. Esta, depois de o prender na sua teia, devora-o. O homem-aranha, o tal que conheço, ama com abnegação. É a pior forma de se amar. Inocente, espera sempre que os outros homens o amem da mesma maneira.

Evidência

Já o disse. Os homens dividem-se entre os que usam botões de punho e os que não usam botões de punho. As mulheres, por sua vez, dividem-se entre as que usam sapatos de cunha e as que não usam sapatos de cunha. A Bárbara Guimarães, apesar de tentar disfarçar com um toque de sofisticação amarela a sua ignorância, quase de certeza que gosta de sapatos de cunha.

2007/05/24

Nana

(j'adore cette femme.)

Biafra

Conheci, em tempos, uma mulher que morria por amor. É exactamente esta a palavra que quero empregar: morrer. Porque, assim como se pode morrer com uma crise aguda hemorroidal ou um ataque de flatulência, pode morrer-se por amor. É igualmente risível. Definhava a olhos vistos. Magérrima, chupada como uma criança do Biafra. Consumia-se por causa de um jeitoso que gostava de ópera, que lia Wittgenstein e, jantava, ao final do dia, em restaurantes de degustação. Um tédio de homem. Um homem-tédio. Os seus olhos tinham sempre uma névoa de tristeza que me desesperava e desamparava. Por osmose também eu, quando estava com ela, me sentia assim, a morrer devagar, a vasculhar nos cantos da minha vida razões para ser infeliz. Fazia terapia há 5 anos. Anunciava-o com alívio, assegurando que as sessões de terapia a ajudavam a enfrentar a vida, a estruturar-se como pessoa, a perceber as suas atitudes e opções. Eu achava aquela conversa estranha. Ainda acho. Como se aguenta um psicanalista durante cinco, dez, doze anos? A maior parte das relações não dura tanto tempo.

2007/05/23

Menina-balão

Na Índia, ao contrário de cá, os jornais não trazem mensagens eróticas. Shiva, sempre entretido em cabriolices eróticas com as suas consortes, de lingam erecto, não o permite. Em contrapartida, há em cada jornal uma longa secção de matrimonial. Trata-se, como o nome indica, de uma secção de anúncios de quem procura parceiro para casar. As mensagens são de uma especificidade impressionante. Nunca tinha visto nada igual. As brides e os grooms descrevem-se com rigor e exactidão. Num quadradinho de papel condensam a informação necessária para despertar o interesse de um potencial parceiro: idade, casta, religião, habilitações -desengane-se quem pensa que na Índia são todos uns desgraçadinhos analfabetos, na maior parte dos casos, principalmente nas cidades, o que está em causa é saber se se tem uma especialização ou um doutoramento -, região, profissão, salário e, claro, o tom da pele. Fiquei viciada na leitura daquela secção dos jornais indianos. Por isso, quando a tarde caía sobre a casa de Maina e os esquilos se escondiam nos ramos da mangueira, eu arrastava a cadeira de baloiço para a varanda e entretinha-me a ler os anúncios dos casamentos, tentando encontrar naquelas listas infindáveis correspondências que assegurassem aos noivos um casamento feliz para a vida. Um dia, a Ria, a menina-balão, veio sentar-se perto de mim. Espreitou o jornal e chamou, com a sua voz de trovão, as outras crianças da casa que, entretidas a chupar limas, correram para perto de nós. “Ana Clara is reading the matrimonial! She is looking for an indian groom!”. Ri-me do descaramento da menina-balão e belisquei-a. Depois, passámos o resto da tarde à procura de um noivo indiano para mim.
(Tenho saudades da Índia. Nunca mais chega o Natal para, por fim, voltar.)

2007/05/22

silvana mangano (flo sandon's)

Balzaquiana

Todas as manhãs, leio as mensagens eróticas do Público. É certo que as do Diário de Notícias e do Correio da Manhã, com grande oferta de travestis, são mais apelativas. Mas, enfim, sou de uma fidelidade canina ao Público. Habituei-me a ler as mensagens enquanto andava à procura de casa para alugar. Elas, as mensagens, estavam ali, mesmo ao lado dos apartamentos e escritórios para arrendar. Antes dos aborrecidos editais públicos dos tribunais. Leio-as à mesa do pequeno-almoço, no café, enquanto mordisco um pão com manteiga e uma meia de leite. De tailandesas a indianas, de brasileiras a africanas, de universitárias a executivas, de moreninhas de cara laroca a quarentonas de perna grossa, de éricas a natashas, de peludinhas a rapadinhas, de quase-quase-quase virgens a separadas, de mulheres sérias que procuram uma relação séria a gatas assanhadas, há lá de tudo um pouco. Porém, volta e meia, por entre o ambiente baço e ordinário, aparecem mensagens diferentes. No início desta semana apanhei uma de certa mulher balzaquiana que procurava cavalheiro distinto para relação séria. Havia uma solidão amargurada na mulher balzaquiana da mensagem do Público.

Santo Isidoro

A mãe da Rafaela trouxe-lhe um Santo Isidoro de Fátima. Ela está em pulgas, ansiando pelo final do dia para o ir buscar à Charneca da Caparica. Esta noite a Rafaela, de anágua branca, consoladinha, rezará pais-nossos em frente do Santo Isidoro de marmorite. Na sala, o marido, em tempos trocado por um talhante de Peso da Régua, sentirá um arrepio na espinha ao dar-se conta da devoção da mulher. E mais não digo. Calo-me. Amordaço a boca. Estrangulo os dedos. Parto as falanges, as falanginhas e as falangetas. Que, pela insistência com que aqui falo dela, pode começar a parecer que tenho uma fixação duvidosa pela minha colega da banda gástrica. Não tenho.

2007/05/21

Silvana Mangano


Nanni

Vinha eu a descer o Arco do Cego, feliz com a minha saia cintada, enfunada pelo vento, quando tive a revelação do sonho desta noite. Esta noite, até me custa dizê-lo, sonhei-me namorada do António Pires de Lima, o homem que usa sempre botões de punho. Simplesmente vergonhoso, ter um sonho destes. Podia, em vez, ter-me sonhado amiga do Nanni Moretti. Mi piace moltissimo la barba e il baffi di Nanni.

SG

Madalena, foi lindo! Gostaste? A mamã adorou! O Sérgio Godinho é lindo! E cantou a canção dos Amigos de Gaspar! Só para ti. É o homem mais lindo à face da terra! Ele, o Fausto e o Chico Buarque. A mamã ama-o! Ama-o, percebes? É um dos amores da vida da mãe!”, e vou vestindo-lhe o pijama vermelho às bolinhas. “Pensava que o amor da tua vida era o papá”, diz ela já deitada e fecha os olhos. Os disparates que as crianças dizem.

2007/05/18

Notas Soltas

1) O Sarkosy, para além de giro, é dotado de uma habilidade política inédita. Convidou para MNE o improvável e incorrecto Bernard Kouchner. Cala muita gente com este gesto de nítida provocação e ousadia.

2) Ontem, no jornal, vi finalmente a fotografia da namorada do Presidente do Banco Mundial. Feia, mas inteligente, empenhada, lúcida, um percurso brilhante, irrepreensível. Sempre a imaginei, vá-se lá saber porquê, uma loiraça de mamas gigantes e silicone nos lábios.

3) Ao que parece, o Luis Nobre Guedes será o candidato do CDS. Que dizer? Que o Paulo Portas, para além de ter mau gosto em relação a quem leva para a cama, tem também péssimo gosto para escolher candidatos?

4) O Wong Kar Way resolveu filmar uma lamechice qualquer com o Jude Law e a sonsinha da Norah Jones. Do elenco só se aproveita o Tim Roth. Aqui há uns anos tive um onírico orgasmo com este actor. Lembro-me dele, do orgasmo, com saudade.

5) A Laurinda Alves na sua chatíssima crónica de sexta-feira fala de um encontro qualquer de escritores em Gigon ou Tarragona. Pergunto eu, o que estava a Laurinda a fazer num encontro de escritores? Acaso é escritora? É?

6) O Carlos Magno, que hoje se fará ouvir na Antena 1, é um caso preocupante. Hão-de reparar que, durante uma hora de programa, ele se diz amigo de toda a gente, jornalistas, políticos, jogadores da bola, escritores, cantores. Conhece toda e gente, é amigo de toda a gente. É constrangedor ouvi-lo.

7) Vou ver o Sérgio Godinho com a estrelinha da tarde. É sacrilégio dizê-lo, eu sei, mas ando farta do SG. Este último disco não tem ponta por onde se lhe pegue. Os sacrifícios que uma pessoa faz por um filho.

8) Depois de anos de resistência, ando a tentar ler os livros do Corto Maltese. Não estou a gostar. Uma seca. Já não posso com os selvagens da Guiana Francesa. Prefiro, de longe, os romanos imbecis dos livros do Asterix.

9) A minha irmã tem razão: os homens dividem-se entre os que usam botões de punho e os que não usam botões de punho. O Pacheco Pereira não usa botões de punho. É uma das razões pelas quais gosto assim tanto dele, mesmo quando discordo frontalmente do que diz e defende.

8) Comprei uns brincos, de preço obsceno, feitos de resina, com tomatitos, malaguetas e folhas de espinafre, muito mediterrânicos, muito solarengos. Lindos. Sinto-me como nova.

Toada

Não sei o que fazer com a tristeza quando ela toma conta de mim. Não a convido. Não sei por que vem, derramando tentáculos de dor. Sinto-a fisicamente, como se fosse um bicho, um parasita. Petrifica-me. Torno-me num cristal baço. Numa mancha de bolor. Numa estátua grotesca. Repelente. Torno-me numa fêmea de jacaré ou caimão. Sou uma fêmea de caimão. Sei, com precisão, onde, no meu corpo, se aloja a tristeza. Sinto-a aninhada na traqueia, perto da laringe e da faringe. Nas imediações da glote. Provoca-me náuseas. Vontade de vomitar, também. Hoje, durante o almoço, transformou-se em lágrimas e escorreu sobre a sopa de agriões.

2007/05/17

Chico Buarque e Elis Regina

Nome (4)

Na altura, ficou furiosa e, tal como acontecia sempre que era contrariada, começou-lhe a tremer uma vista e a ter pequenos espasmos nervosos. Só mais tarde, um dos formadores explicou que a Ana Clara, a outra que morava nos Anjos, perto das putas e dos proxenetas, padecia de um qualquer distúrbio que a obrigava a acompanhamento psiquiátrico. Apesar da sua demência, tenho de confessar que não gostava dela. Não tinha pena dela. Nem um pinguinho. Não me comovia a sua tristeza e a sua solidão. Sobretudo incomodava-me que uma pessoa assim, com uma voz tão feia, com um ar tão apagado, uma chatarrona, sempre a comer papo-secos com manteiga, tão só, tão infeliz, pudesse transportar durante toda a vida o meu nome. Nunca mais conheci ninguém que tivesse o meu nome. Há uns dias atrás, porém, o meu ginecologista disse que a sua terceira filha, que nascerá ainda em Maio, se chamará Ana Clara. Portanto, para além da tal rapariga que morava na Rua dos Anjos e que gostava de animais, sei que, em Maio, nascerá uma menina que viverá nesta cidade e que transportará o meu nome.

Nome (3)

Mais tarde, contou que vivia nos Anjos, perto do Intendente. Queixava-se que se cruzava, todos os dias, com as mulheres que por ali se vendiam e com os homens que por ali as compravam e usavam. Isso causava-lhe um asco enorme, um nojo desmedido. Descobri também que tinha uma paranóia por animais. Adorava-os. Amava-os. Cada vez que encontrava um cão abandonado na rua, falava-lhe como se estivesse a falar para um bebé. Com uma voz melada, insuportavelmente cheia de amor e ternura, com se os animais fossem as únicas criaturas puras do universo. Sempre me enervaram as pessoas que falam com as crianças como se estas fossem atrasadas mentais. Por isso, ainda mais me incomodava e irritava ouvi-la falar assim com um animal. Certa vez, no campo de futebol, estavam os miúdos da Voz do Operário a ensaiar para as marchas populares, cheios de arquinhos, a cantar cantiguinhas antigas, chateámo-nos. Só porque lhe disse que não gostava de animais. Que nunca na vida teria um animal. Ela ficou horrorizada. Fitou-me com um ar muito sério e, com aquela voz horrível, disse-me que se eu não gostava de animais não podia gostar de pessoas. Mandei-a à merda. Porém, reconheço agora, que a tontinha dos Anjos tinha razão. Não gosto de animais e gosto de poucas pessoas.

Nome (2)

No quarto ano do curso de Direito, resolvi desistir da faculdade e tirar um curso profissional, daqueles que não servem para nada, na Voz do Operário. Era um curso, imagine-se, de Animação Cultural. Na primeira aula, lá tivemos que passar pelo suplício de nos apresentar. Dizer o nome, o que fazíamos, onde morávamos, a idade, as habilitações, etc... Estava eu, naquela moleza própria dos primeiros dias de aulas, à espera que chegasse a minha vez, quando, para meu espanto, uma rapariga que, nesse momento, se apresentava disse chamar-se Ana Clara. Despertei logo daquela sonolência. Como se atrevia alguém a ter o meu nome? Fixei nela os meus olhos. Com curiosidade, ódio e desprezo. Era míope, usava uns óculos grossos, demasiado grandes para o seu rosto. O cabelo escorrido, sem vida, tinha um tom indefinido. Uma mistura de castanho com cor de laranja. A sua pele era muito branca, nívea, salpicada por algumas sardas no rosto. Quem a visse, achava-a feia, por ter um ar demasiado sério, contido, nervoso. Acho que nunca a vi rir ou sorrir. Mas o pior era a voz, sumida, meio fanhosa, voz de uma verdadeira serial killer de rapariguinhas bonitas e felizes. Comia metade das letras de cada palavra, tornando quase imperceptível o que dizia.

Nome (1)

Para além de Ana, tenho um outro nome. Clara. Chamo-me Ana Clara. É um nome bonito, pouco comum, invulgar mesmo. Ana é como Maria. Combina bem com muitos outros nomes. No entanto, esta conjugação de Ana com Clara, apesar de bonita, não seduz muita gente. Conheço muitas Anas Ritas, muitas Anas Marias, muitas Anas Margaridas, uma infinidade de Anas Catarinas e de Anas Cristinas, algumas Anas Sofias, duas Anas Rosas, uma Ana Madalena, uma Ana Manuel e até uma Ana Miguel. Durante muito tempo, achei que este nome, Ana Clara, só a mim me pertencia. Tal como a minha voz, como a minha caligrafia, como o feitio das minhas mãos, como a mancha, enorme, cor de canela, com o recorte do mapa da Inglaterra, que tenho, desde nascença, na perna esquerda, também o meu nome só a mim me definia e se adequava. Até aos vinte anos vivi na ilusão de que era a única Ana Clara no mundo. Sabia que deviam existir outras pessoas no mundo com o meu nome, mas eu não as conhecia e, por isso, era como se não existissem. Até que aos vinte e um anos, finalmente, conheci uma pessoa com o mesmo, o mesmíssimo, nome que eu. E foi terrível. Eu conto.

2007/05/16

Palmatória

Nunca faço linques para outros blogues. É uma birra antiga que não merece explicações. Mas, na vida, de vez em quando, uma mulher tem de dar a mão à palmatória e ceder. Um homem que, em resposta à tolice do Pedro Mexia por conhecer sicrano e beltrano, lhe responde que, no saudoso verão de 2001, num quadro de inquestionável virilidade, cozinhou batatinhas cozidas e peixe para o David Suchet merece a minha pública homenagem. Gosto deste blog.

Rafaela


Lucian Freud

(Cá está a minha amiga Rafaela. Olhai para a pose dela, para o insuportável descanso nos ombros caídos. Julga-se a maior, apesar de ser um estafermo. E tem joanetes. Como não odiá-la?)

2007/05/15

Quatro

A mulher do lábio leporino viajou hoje no comboio das 9.20. Trazia no regaço o Correio da Manhã e a Nova Gente. Mal entrei na carruagem animei-me. Ouvi a sua voz gutural, depois, vi-lhe a carranca medonha, a boca sem caninos, as lentes de fundo de garrafa, o cabelo num desalinho. Falava com as suas companheiras de viagem sobre televisão. É sempre um bom tema de conversa. Elencava a mulher do lábio leporino, de forma sintética, os programas a que assistia na televisão. Na um, dizia ela, vejo o programa do Malato e os telejornais, na dois vejo as séries e alguns documentários, na três vejo o programa do Herman, na quatro, e fez-se um silêncio embaraçoso, na quatro não vejo nada... As companheiras, vindas como ela de Castanheira do Ribatejo, baixaram os olhos, recusando-lhe qualquer tipo de cumplicidade, de conforto. A estúpida, pensaram, esta tipa feiosa, a querer passar-se pelo que não é, a querer fazer-se diferente de nós, não vê a quatro, pois se ainda ontem foi desde Sacavém até Entrecampos a falar daquela moça do concurso que já foi miss! Concordo com as companheiras. Descarada, a mulher do lábio leporino, descarada e mentirosa. A Nova Gente com os vencedores do concurso beijando-se na capa e a mulher do lábio leporino olhando por cima das lentes os prédios de papelão e as faveiras das hortas, carregadas de vagens carnudas.

Ana Mulher

Voltei a ter o sonho de sempre. Estou no ciclo preparatório, mas não sou a Ana Menina, sou a Ana Mulher. Sou uma Ana Mulher que frequenta o ciclo preparatório com meninos da idade do João. O terceiro período já começou. Há na sala de aula, que tem vidraças largas, um frenesim de vozes, uma agitação de corpos. Só eu estou quieta. Sei que vou chumbar por faltas a Matemática e Português. O chumbo, esse chumbo eminente, provoca em mim uma humilhação sem fim. Há anos que, com ligeiras variações, tenho este sonho. Há anos que, na escuridão do quarto, acordo aliviada por perceber que se acabaram as aulas, os testes, os exames. É um alívio breve, esgota-se quando volto a adormecer. O meu irmão contou-me certa vez que costuma ter exactamente o mesmo sonho. Tanta gente com os mesmos sonhos.

2007/05/14

Rafaela

Podiam ter apedrejado a Rafaela da banda gástrica. Gorda como é ninguém falhava o alvo. (não se brinca com coisas destas, eu sei.)

Dua Khalil Aswad

No público, a imagem terrível da lapidação de uma mulher. Um corpo bonito e jovem. Nele existe a ondulação do mar e o breu das florestas nocturnas. Olho para aquele corpo, torcendo-se, como a mecha de uma candeia, e vejo um corpo de mãe, um corpo-cabaça, um corpo-casa. Dua Khalil Aswad tinha 17 anos. Era curda e foi apedrejada até à morte por uma multidão de mil homens, entre eles, irmãos e tios. Foi morta por querer casar com um muçulmano. O seu apedrejamento foi filmado e fotografado pela chusma viril que atirou pedras, que insultou, que gritou. Depois, como um troféu que se exibe, colocaram a sua morte no youtube. Lembrar-nos-emos, talvez, desta mulher durante alguns dias, condoídos com a sua dor e humilhação. Alguns, falarão com revolta, carregarão o cenho, exigirão mudanças, garantias, que nunca mais volte a acontecer. Depois a imagem de Dua Khalil tornar-se-á difusa. Acabaremos por esquecê-la. Acabamos sempre por nos esquecer.

2007/05/13

2007/05/11

Abuxarda

Entrei. Fiz um esforço para cumprimentar o senhor doutor e a senhora enfermeira que, rubescente do sol de Maio, parecia uma santola. Não sei porquê, por instantes, imaginei-a a viver na Abuxarda e a passar férias em Albufeira num T2 mobilado de pinho. Despi-me. Olhei para as minhas pernas, tristes, tão tristes, as pernas mais tristes do mundo, cheias de pêlos encravados e de marcas de picadas de mosquitos. Deitei-me na marquesa. O médico apalpou-me por dentro e por fora. Tomei consciência do meu interior. Estranho, o nosso avesso. Veio-me à cabeça uma palavra inusitada: excrementício e também uns versos de um poema da Yvette Centeno que fala de crianças mordiscando romãs. Respondi-lhe por monossílabos. Sim. Não. Nunca. Às vezes. No final mandaram-me vestir. O médico atirou com as luvas de latex para dentro de um contentor. As minhas luvas juntaram-se às luvas que durante a manhã tocaram outras mulheres. Corrimentos, mucos, outros líquidos vaginais misturando-se. A minha fluidez misturando-se com a de outras mulheres. O médico lavou as mãos com um líquido azul. Um cheiro de hospital espalhou-se pelo gabinete. Depois fez as perguntas da praxe. Perguntou-me pela pílula. Se continuava a tomá-la. Disse-lhe que não. Perguntou-me porquê. Expliquei-lhe. Ele soltou um ahaaa! levemente prolongado e rematou, dizendo, entre dentes, que eu não tinha vida sexual activa. Escrevinhou isso mesmo numa folhinha verde. Anui. Quis ser outra pessoa qualquer. Explicar-lhe que não era bem assim, que a vida, quase sempre, é mais complicada do que parece. Não disse nada. Fiquei calada. À saída, a enfermeira da Abuxarda sorriu-me com complacência e tocou-me, piedosa, no ombro.

Zeus

Há dias assim. Tristes. O problema da tristeza é o pavor que provoca. Hoje nada me anima. Nem a história de Ganímedes, tão lindo, possuído em pleno voo por Zeus feito águia. Ainda por cima a mulher do lábio leporino não viajou no comboio das nove. Por onde andará?

Il faut savoir

Il faut savoir encore sourire
Quand le meilleur s'est retiré
Et qu'il ne reste que le pire
Dans une vie bête à pleurer

Il faut savoir, coûte que coûte
Garder toute sa dignité
Et malgré ce qu'il nous en coûte
S'en aller sans se retourner

Face au destin qui nous désarme
Et devant le bonheur perdu
Il faut savoir cacher ses larmes
Mais moi, mon cœur, je n'ai pas su

Il faut savoir quitter la table
Lorsque l'amour est desservi
Sans s'accrocher l'air pitoyable
Mais partir sans faire de bruit

Il faut savoir cacher sa peine
Sous le masque de tous les jours
Et retenir les cris de haine
Qui sont les derniers mots d'amour

Il faut savoir rester de glace
Et taire un cœur qui meurt déjà
Il faut savoir garder la face
Mais moi, mon cœur, je t'aime trop

Mais moi, je ne peux pas
Il faut savoir mais moi
Je ne sais pas...

Charles Aznavour

2007/05/10

Medusa

Caravaggio, Auto-Retrato

Sempre confundi a Medusa com a Hidra de Lerna. São ambas monstros medonhos, o corpo coberto de escamas, cabeças de cobra, cabelos emaranhados de serpentes. Só ontem percebi que Perseu, filho de Zeus e Danae, matou a Medusa e Hércules, filho de Zeus e Alcmena, a Hidra. Confesso: também gosto, assim, de raspão, como quem não quer a coisa, de derramar erudição, conhecimento neste berloque. Fica sempre bem.

CML

Os melhores candidatos à presidência da CML são mulheres: Manuela Ferreira Leite, Helena Roseta e Maria José Nogueira Pinto. É quase certo, porém, que nenhuma destas candidaturas se concretizará. Infelizmente. O mundo é das mulheres. O resto é conversa. (O mesmo não digo acerca da eventual candidatura da Paula Teixeira da Cruz. A dita é casada com o Paulo Teixeira Pinto, o poderoso homem de lábios finos que nunca sorri. Formam um casal deveras sinistro. Assustador.)

2007/05/09

Xabregas

Há blogs que cheiram a cholé. É um fedor que não se pode. Cheiram a pés enfiados em sapatos baratos comprados na Bheska do Forum Montijo. Por falar em Bheska, acidentalmente, descobri por lá umas sandálias douradas que não me saem da cabeça. Mas, depois de comprar um par de sapatos italianos, custa-me andar de cavalo para burro, ou melhor dizendo, de égua para mula, e comprar sapatos feitos na Roménia, na Índia, ou na Turquia. Eu cá não pactuo com a globalização! Nem com a miséria doutros povos. Nem pensar. Era o que mais faltava. Adiante. Voltando aos blogs, outros há que cheiram a partes íntimas mal lavadas e suor. Um horror de podridão. Um cheiro nauseabundo. Outros cheiram a bafio, a mofo, a bolor. Outros cheiram a nádegas. A rabo. É lá, nos blogs-nalgas, que habitam as bichas solitárias, tão modernas, comendo sushi e sashimi com sofreguidão, derramando erudição e tricotando, com lãs amarelas e rosa ciclame, a solidão das suas vidas. Credo. Outros não têm cheiro. São assépticos, inodoros, incolores, inexistentes. Outros são transparentes que é coisa diferente. É bom ser transparente. Como a água que se bebe. Outros cheiram a sarcófago, a caixão, a ataúde de pinho envernizado. Quando encontro os blogs-ataúdes benzo-me e aspirjo-me com qualquer sucedâneo de água santa, que a morte desperta em mim um niquinho de fé e devoção. Outros blogs, são poucos, quase nenhuns, cheiram bem. Cheiram a azul, a mar e a embondeiros. A espirais nocturnas de fumo, chão encerado e cerveja preta. A sabonete de alcatrão. O meu blog cheira a Xabregas. Cheira a patchouli. Tem um cheiro encorpado, enjoativo, a princípio gosta-se, depois rejeita-se. Havia de cheirar a folhas frescas de lúcia-lima ou, então, à madeira molhada, chiando, no fogo.

Groselha

Um dos sabores da minha infância é o dos refrescos de groselha. Eu não gostava particularmente daquele sabor estranho, mas, todos os meses, durante as compras mensais na cooperativa Abril, ali perto da igreja dos Anjos, obrigava a minha mãe a comprar xarope de groselha. Gostava do recorte da garrafa, o rótulo preenchido com letras pretas, muito direitas, a fazer lembrar coisas antigas, esquecidas em sótãos abandonados. Gostava de ver os copos preenchidos por aquele líquido cor-de-rosa muito escuro. Quando me via a olhar para o copo ainda cheio, a minha mãe, trocista, perguntava-me Então, não bebes? Não gostas? Gosto, respondia-lhe, e engolia, em goles grandes, o copo de refresco. A minha tinha razão na sua troça. Eu não gostava do sabor da groselha. Só gostava da sua cor intensa e forte, cor de bosque, de lupanar. Era a cor do refresco de groselha, e não o seu sabor, que eu bebia em goles grandes, sem respirar, para não lhe sentir o gosto a remédio. (Pintei as unhas de groselha. O meu filho odeia. Os homens, mesmo os pequeninos, não percebem nada de estética, coitados.)

2007/05/08

Concertina

Há decerto em mim o deleite prolongado de olhar o rio, imenso e cinzento, prestes a chegar à foz, os troncos boiando nas águas como cadáveres de mendigos que ninguém reclama ou chora, os cardumes de tainhas roçagando as margens, alimentando-se de lixo e de limos com as suas bocas de ventosa. Há a outra margem, lugar da fuga, que a minha fuga há-de sempre rumar ao sul. Assomam-se do outro lado, entre as gruas, casas feias que nascem como flores de pedra nos campos amargos de papoilas e macelas. Numa dessas casas, sei-o, um homem velho toca concertina para uma mulher que, deitada há muito numa cama, espera que o rio morra no mar.

2007/05/07

Egipto

Fouad Elkoury, Egypt 1985-1998

Margarida

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
-Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria a tua mãe?
- (Ela conhece-me a fundo.)
Que ha muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
-Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
-Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

Álvaro de Campos

2007/05/04

Cornélias

A mana contou-me que a nossa prima Cornélia (ela não se chama Cornélia, mas tem, também, nome de matrona romana), juíza, brilhante aluna do centro de estudos judiciários, comunista, adepta da neve, de sapatos timberland e casacos burburry, leitora assídua, única e exclusivamente, do camarada José Saramago, aquando do seu principesco matrimónio, adoptou, não um, mas dois nomes do seu insignificante esposo, um batráquio mudo, nem um coaxo se lhe ouve, muito franzino, que se senta na beirinha das cadeiras e rói as unhas. Fiquei boquiaberta. Aqui está uma prova de como, para além da Bárbara Guimarães, há outras mulheres imbecis no mundo. São mulheres que, em razão da sua estupidez, deviam ser homens e não mulheres. A imbecilidade nasce-lhes nas vísceras, trepa-lhes corpo acima, instalando-se depois nos miolos. Nunca na vida adoptaria o apelido de outra pessoa. Muito menos de um homem. Nem mesmo que me fosse oferecido o apelido Buarque de Hollanda.

(às mulheres que conheço que adoptaram o nome dos cônjuges: minhas senhoras, não tomeis esta opinião como grave insulto. Não é. É apenas um insultozinho, uma coisinha de nada.)

Seguro

Se o António José Seguro vier a ser eleito presidente da Câmara de Lisboa, pego na prole e fujo para a Índia. Tenho-lhe uma embirração antiga, genuína, intensa, uma embirração absolutamente justificável que acalento e alimento como um bicho de estimação. Cada vez que o antigo presidente da JS enche o ecrã uma náusea toma conta do meu corpo e um vómito assoma-se na garganta. É superior às minhas forças. A dita embirração só é superada pela que tenho à Bárbara Guimarães.

Portaló

Uma pessoa passa uma vida inteira sem nunca ter ouvido determinada palavra. Desconhece-a por completo. De repente, por artes mágicas, essa palavra aparece em toda a parte. Nos livros que lê, na televisão, nos sonhos, na voz do homem da rádio que todas as manhãs desenrola o novelo do mundo.

2007/05/03

Barso Re

(a Aishwarya Rai é a mulher mais bonita do mundo.)

Dói-dói

Ontem, na estação de Entrecampos, duas mulheres beijavam-se na primeira plataforma, perto da livraria, à vista da multidão que regressava a casa. Uma mulher beijava. A outra era beijada. A mulher que beijava era baixa e gorda. Usava um casaco largo que pingava chuva e uma mochila às costas. Beijava com o corpo todo, não só com a boca, beijava com as mamas, os braços, as pernas, enroscando-se como uma trepadeira no corpo da outra mulher. Estava alheia a tudo, mergulhada num frenesim sexual dificilmente controlável. O seu corpo tremia de excitação. Se tivesse um pénis, a mulher que beijava tê-lo-ia erecto, estupidamente óbvio, como é costume dos pénis, feito pedra, feito mármore, veias azuis irisando-lhe a pele. A mulher beijada era feminina. O cabelo pintado de ameixa, com as pontas viradas para fora, marginava um rosto feio, mas maquilhado com sobriedade. Vestia um fato castanho de calças e casaco. Mal se mexia. Deixava-se beijar pela mulher trepadeira. Foi a primeira vez que encontrei um par de mulheres osculando-se assim, com descaramento e intensidade, num espaço público. Não é pois de estranhar que, absorta naquele beijo, tentando fotografá-lo com os olhos, tenha batido com a cabeça na coluna de ferro maciço que naquele preciso momento se atravessou à minha frente. Ainda dói.

2007/05/02

Orfã


Delacroix, 1824

França

Já o disse. Gostaria que a Ségoléne ganhasse as eleições em França. Pelo simples facto de ser mulher. Não me incomodo com o vazio de ideias que os comentadores políticos lhe atribuem. Antes o vazio, mil vezes o vazio, do que a certeza de um Ministério para a Imigração e Identidade Nacional. Sou de uma família de mulheres fortes e homens fracos (paizinho, não te amofines, escuta, naturalmente tu és a excepção que confirma a regra). Porventura, por isso, defendo como uma amazona, o meu género.

Israel

Em Israel, até ver, na sequência do relatório do Comité Winograd, sobre a guerra do Líbano, ainda só saiu um tal Eytan Cabel, ministro sem pasta. Confesso, intrigam-me os ministros sem pasta. O que faz um ministro sem pasta?