Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2012/12/24
Rafael
A
camioneta chegou a Pangim depois da hora da sesta, no preciso instante em que o sol começava a decair e a cidade se preparava para a frescura
do entardecer. O início da noite traz às cidades do oriente uma aceleração de
corpos e movimentos, luzes explodem por todos os cantos como fogos de
artifício, misturam-se as conversas das pessoas com as conversas da gralhas que
descansam nas copas das árvores enquanto debicam frutos maduros que pingam mel
para os passeios. O início da noite não marca o fim do dia. Na Índia sempre
tive a sensação de que o dia continua noite fora. Só termina quando fechamos os
olhos. Procurei, no meio da multidão do terminal, Rafael, o amigo do meu pai, a
convite de quem viera a Pangim. Não me deixou sozinha por muito tempo. Conheci
Rafael o ano passado, no crepúsculo nacarado de Curtorim. É um goês alto.
Tem a robustez de um herói grego. Usa o cabelo branco puxado para trás e óculos
de aros pretos a marcar-lhe pesadamente o rosto. É um gigante delicado. É assim
que o vejo. Corremos ao bairro das Fontainhas onde estava hospedado em casa de
um amigo. “Venha,
venha. O meu amigo vive rodeado de coisas preciosas.”, disse ao chegarmos a uma casa antiga cor de
vinho. Perante o meu olhar inquisidor esclareceu: “Antiguidades!” Percival
Noronha, o dono da casa, é mais velho do que Rafael, rondará os oitenta anos.
Traz o corpo frágil. Há-de ter os ossos porosos e rendilhados. Ofereceu-me
chá e um bolo escuro de frutas que vinha embrulhado em papel pardo. Caetano, o
empregado que nos serviu, tinha o rosto puído pelos anos. Olhando em redor
vislumbrei vestígios de uma Goa que desaparece com lentidão. Como um corpo que
se afunda devagar nas águas densas e movediças de um pântano. As paredes
esmaecidas com retratos de gente já morta. O mobiliário indo-português, cheio
de arabescos e floreados, a fazer lembrar contorcionistas de circo. Livros e
mapas espalhados por todo o lado. Loiças chinesas antigas, com desenhos de
pagodes e pinheiros mansos, dormitavam nas vitrinas dos louceiros. Percival
pediu desculpa pela desarrumação da sala e contou a sua história: os cargos públicos
exercidos na Índia de Salazar, o interesse pela história de Goa, os convites
das universidades portuguesas para leccionar, as recepções organizadas para os
presidentes Mário Soares e Cavaco Silva, a paixão pela astronomia. De repente,
interrompeu o seu relato e levantou-se, dizendo que estava na hora do
lançamento do livro. Era para isso, para o lançamento de um livro na Fundação
Oriente, que eu viera ao encontro de Rafael. Ao entrar no jardim da fundação,
que fica na rua onde Percival mora, reparei que as pessoas se movimentavam com
a cerimónia própria daquelas ocasiões. Avistei apenas dois brancos: um homem
cujo rosto me pareceu vagamente familiar e uma mulher que espantava pela
informalidade. O cabelo curto num desalinho. A ausência de pulseiras, brincos
ou anéis. A roupa larga e sem corte. Achei-a feia, demasiado pálida. Fumava. Esse gesto
pareceu-me insuportavelmente masculino e inadequado.
2012/12/12
Quimioterapia
- A Graça chorou tanto hoje de manhã.
- Tem passado muito!
- Custa-me vê-la assim.
- Uma mártir!
- Contou que o marido continua a fazer-lhe a
vida negra.
- A maldade está-lhe no sangue…
- Diz-lhe coisas horríveis.
- As tareias de morte que tem apanhado!
- Ela nunca me diz directamente que o marido lhe bate.
- Envergonha-se. Não quer aborrecer-te com os problemas dela.
- Mas devia.
- Mesmo assim, fraquinho da quimioterapia, continua a bater-lhe!
- Nojento.
- Era melhor que morresse….
- Não digas isso.
- Não digo isso? Acabava-se o martírio.
- É sempre horrível desejar a morte de alguém.
- Achas que ela, no fundo, bem lá no fundo, não deseja o mesmo?
- Acho que sim. Se ele morresse era um alívio.
- Claro que era! Os homens são todos uns cabrões, filha.
- Pois são, mãe.
2012/12/11
Sinos
Há dois sinos na minha vida. O sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima que toca ao meio-dia e o sino da igreja de Moscavide que repica quando saio da estação de comboios e atravesso o parque de estacionamento à procura do carro. São dois sinos mansos, obedientes, disciplinados. É preciso estar com atenção para os escutar no turbilhão da cidade.
Irmã
Certa
vez instruí a minha irmã mais nova sobre o meu funeral. Uma mulher deve ser
previdente e cuidar de todos os seus assuntos, incluindo a morte. Se há coisa
que me aflige é imaginar-me enterrada num cemitério com vista para a cril ou
para a crel ou para a radial de Benfica. Junto a um retail park. Pedi-lhe que me enterrasse no cemitério da aldeia, perto dos nossos
avós, onde, mesmo morta, possa sentir o cheiro das figueiras e escutar o ronco
das motorizadas que, pela tarde, levam os velhos de volta para os montes. Que
tratasse de me arranjar uma campa rasa, com uma lápide branca, sem fotografias
ou epitáfios. Que me vestisse a saia antiga, rodada, de veludo cotelê, me
apanhasse o cabelo numa trança e colocasse nas orelhas as arrecadas incas que
nunca fui capaz de lhe oferecer. Se for tempo das dálias e dos cravos túnicos
que peça licença à vizinha Teresa e à Preciosa dos queijos, a que é belfa e usa
sempre um chapelinho de palha, para os apanhar dos canteiros e os coloque numa
jarrinha branca. Fi-la prometer que me enterraria sem a presença de estranhos.
Quero um funeral selecto. Com quem gosto. E preciso. Pai, mãe, tia, irmãos,
filhos, sobrinhos, as primas da aldeia. Mais ninguém. Pedi-lhe, ainda, que
cantasse o poema: Quando
eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar
chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro
ajaezado à Andaluza... A um morto nada se recusa. E eu quero por força ir de
burro. Ai dela que não me faça
as vontades! Pobre e querida maninha. Hei-de voltar, pior do que fui, um
espectro medonho e terrível, para lhe fazer a vida negra.
(A minha irmã anda triste, a precisar de amparo. É uma novidade. Sempre foi ela que cuidou de nós.)
2012/11/24
Luzia
Por
insistência do marido - mais do que a aliviar do trabalho queria mostrar que
tinha folga financeira para contratar uma empregada doméstica -, arranjou uma
rapariga para ajudar na limpeza da casa e na preparação do jantar de
aniversário. A princípio sentiu-se embaraçada por ter quem trabalhasse sob sua
ordenança e supervisão. Nunca mandara em ninguém. Descendia de uma cadeia de
antepassados assalariados, a miséria havia de vir de longe, uma genealogia de penúria,
sofrimento e trabalho mal pago. Como podia quebrar essa linhagem de obediência
e servilismo? Que autoridade tinha para se fazer obedecer? A estranheza foi passageira.
Quando a empregada tocou à campainha pela manhã, Flandres sentiu uma alegria
semelhante à de uma criança que se prepara para brincar ao faz de conta. Não
podia deixar de se sentir animada! Preparava-se pela primeira vez na vida para
mandar. Era excitante, essa possibilidade de submeter os outros à sua vontade,
até aos seus caprichos!Não estava,
porém, habituada à assertividade da linguagem das patroas. Desconhecia que,
para alcançar bons resultados, uma criada deve tratar-se com frieza, ignorando
sentimentos, mágoas e amuos, uma criada não é bem gente, apenas um corpo de
trabalho, deve ser varada com palavras ríspidas e repreendida com a firmeza de
uma chibata que estala no lombo de uma mula. Flandres era inepta no ralho,
inábil na orientação. Pior, não sabia dar ordens, a cada instante, as transformava em pedidos.
- A
Luzia não se importa, por favor, de começar a picar as cebolas e os alhos para
o bacalhau?- e, com a sua boca bem desenhada, cheia de meiguice, largava um
sorriso encantador.
Uma
ordem nunca pode ser dada com a cortesia de um pedido, muito menos com a
solicitude de uma súplica. Uma ordem bem dada não admite recusa ou hesitação, já
os pedidos são totalmente falhos de potestade, dependem da vontade do
interpelado, uma pessoa só os satisfaz se quiser. Luzia, a ajudanta daquele dia,
ligeiramente anémica, cheiro de suor e detergentes entranhado nas carnes
descoradas, rapidamente se deu conta da inexperiência de Flandres. Abusou da
sua amabilidade, foi mesmo muito calona, deixou o salão mal limpo, bolas de
cotão aos cantos, e, invocando uma repentina alergia, recusou-se limpar a casa
de banho com lixívia e amoníaco. Pediu um detergente neutro que não lhe ardesse
nas mãos. A princípio da tarde, depois de interpelada com tantos pedidos gentis,
Luzia estava completamente liberta: não se sentia obrigada ao respeito
subserviente que sempre se deve a uma patroa. Começou a dar palpites sobre a
ornamentação das travessas e, vendo Flandres olhar para dois serviços de loiça,
sem saber qual escolher, numa voz afectada e petulante, deu a sua opinião:
- Não
gosto nada desse serviço com o cavalinho! – explicou, apontando com um gesto de
desdém a loiça tradicional da fábrica de Sacavém. - a senhora use antes aquele com
a cercadurinha dourada que é mais moderno!
Flandres
ouviu e acatou. Luzia era empregada, mas, de tanto ser mandada, aprendera a
usar uma voz autoritária, cheia de sujeição e disciplina.
2012/11/01
Maria Adelaide
O médico explicou-lhe. Tratava-se de um carcinoma hepatocelular, as metástases encontravam-se já espalhadas pelo corpo. Faria tudo o que estava ao seu alcance para lhe aliviar as dores. Iniciaria de imediato os tratamentos quimioterápicos para a destruição das células tumorais. Avisou-a dos efeitos colaterais: náuseas, vómitos, diarreias, anemia, alopecia. Marcou nova consulta para daí a quinze dias. Despediu-se do médico com um aperto de mão e um sorriso. Queria sentir tristeza e não conseguia. Sabia que devia chorar. Meteu a guia de tratamento dentro da mala e saiu do consultório. Fez o caminho mais longo para casa. Andou durante bastante tempo tentando perceber o que sentia. Sem rodeios ou dramatismos: tinha um cancro e morreria em breve. Entrou no prédio onde morava passava das oito horas. Chamou o elevador que chegou aos guinchos. Entrou na cabine e olhou-se ao espelho. Só quando viu o seu ar macilento, a cicatriz no lábio superior, o cabelo num desalinho, os olhos encovados, o aborrecimento de uma vida plasmado no rosto feio, percebeu o que sentia. Era frustração e vergonha. Nada mais. A sensação de que Deus a gozava. Novamente. Nascera para ser gozada. Carregou no botão do oitavo andar. Nessa breve viagem, pareceu-lhe que o tempo se alongava. Dentro do tempo havia mais tempo. Dentro das horas mais minutos. Dentro dos minutos mais segundos. A vida passou-lhe diante dos olhos. Como se fosse um filme.
Chamava-se Maria Adelaide. Fora sempre uma criança enfezada. Nascera com uma fenda leporina no maxilar superior. A mãe, uma doméstica muito crente, casada com um construtor civil de Fátima, chorou-lhe o nascimento como se do ventre lhe tivesse escorrido o ser mais infame à face da Terra. Aos dois anos foi operada para fechar a fissura que causava tanto embaraço nos passeios domingueiros. Ficou-lhe uma cicatriz grossa e vermelha, aos gomos, que parecia ter sido suturada por uma costureira inexperiente, com fio de estopa, a sangue frio, sem cuidado ou gentileza. Feiinha, de uma feiura quase comovente por causa da cicatriz que lhe ficara no rosto, sentia-se sempre posta de lado nas festas familiares. A mãe bem podia enfeitá-la de laçarotes e vesti-la de folhos que as primas Arlete e Gorete, as gémeas que viviam na Bobadela, robustas e sadias, sempre lhe mostravam que a beleza era requisito imprescindível para uma mulher ser feliz. Faziam questão de lhe mexer na cicatriz porque, como explicavam, parecia um bichinho de seda morto. Chegavam tios e tias, primos e primas para a celebração dos domingos pascais e para a ceia de natal. A vivenda que o pai mandara construir em Sacavém, mesmo à beira da estrada nacional, revestida de azulejos cor de caramelo, rebentava nesses dias de festa. Os homens sentavam-se nas poltronas de cabedal do salão a mastigar rodelas de chouriço assado e quadrados de queijo flamengo. As mulheres enfiavam-se na cozinha a admirar os novos conjuntos de taparuéres que a mãe adquiria compulsivamente. As crianças corriam para o quarto de Maria Adelaide onde havia uma estante só para as bonecas compradas em Badajoz. Em cima da colcha de renda branca, de pernas abertas, muito esticadas, uma sevilhana vestida de folhos vermelhos, travessa e mantilha, olhava-se, altiva, no espelho oval do pechiché. Maria Adelaide seguia o bando e metia a sevilhana a salvo, em cima do roupeiro, não fosse algum dos primos parti-la e a mãe apanhar um desgosto profundo. Um dia descobriram que Laidinha, era assim que a família a tratava, gostava do primo Renato, rapaz de uma beleza óbvia e ordinária. As primas fizeram uma algazarra. Correram a contar-lhe. O primo olhou-a de cima a baixo e deu uma gargalhada escarninha que ficou, para sempre, presa nas paredes do quarto. Foi a primeira vez que Maria Adelaide sentiu que Deus a gozava. Não voltou a brincar com os primos nas festas de família. Ficava sentada no salão, entre os homens, mordiscando azeitonas.
A adolescência passou sem atropelos, entre a escola secundária de Sacavém e o grupo de jovens da paróquia. Continuava feia, apagada, triste. Não teve borbulhas e o período menstrual apareceu-lhe aos doze anos, num dia de muito calor enquanto dormitava em cima da colcha de renda ao lado da sevilhana dos folhos vermelhos. Quando acordou, reparou que um sangue vivo manchara a colcha branca e a mantilha da boneca. A mãe ralhou-lhe por não puxar a coberta para trás e mandou-a tomar banho. Depois correu para o tanque a esfregar com sabão de seda a vestimenta da espanhola. Por essa altura nasceu-lhe também um buço de pêlos escuros que acentuava a cicatriz por cima do lábio. A mãe correu a pedir ao construtor civil cinquenta contos para várias sessões de depilação eléctrica que salvassem a filha da vergonha do hirsutismo. Foram as duas a uma esteticista de Camarate, que também era conhecida por ser muito boa calista. Feita a primeira sessão, arrancados os primeiros pêlos, a cicatriz inchou, como se fosse um animal furioso. No dia seguinte, Adelaide acordou dorida, cheia de crostas. Explicou à mãe que não voltava a Camarate. Sentia que a cicatriz rebentava e um abismo de novo se abria no rosto. Achou que Deus a gozava pela segunda vez. A esteticista veio à vivenda dos azulejos cor de caramelo. Aplicou-lhe emplastros de vinagre na cicatriz e passou a oxigenar-lhe o buço de quinze em quinze dias. Também recomendou um calicida oriental muito bom para os joanetes da mãe que a aliviava muitíssimo das dores que sentia nos pés ao final do dia.
Não quis estudar apesar da insistência dos pais. As gémeas Arlete e Gorete entraram em Direito e tornaram-se mulheres emancipadas, de cigarro ao canto da boca e cabelos ripados, pintados de cores estranhas. Acaju. Ameixa. Adelaide tirou um curso profissional de contabilidade e casou aos vinte e cinco anos com um amigo do grupo de jovens. O namorado era mais velho e tinha uma fé que a todos espantava. Fazia retiros constantemente. Rezava com muito fervor. Namoraram pouco tempo. Eduardo José, assim se chamava o namorado, quis casar mal se empregou na Repartição de Finanças de Sacavém. As primas vieram ao casamento, cheias de écharpes esvoaçantes, pochetes refulgentes, sapatos forrados de cetim. O primo Renato também veio. Casara-se com uma enfermeira parturiente da margem sul. Pouco depois do casamento, Adelaide descobriu por que razão o marido lhe suportava a feiura da cicatriz e o resto: a flacidez precoce do corpo, a mãe tão espampanante e impositiva, as conversas aborrecidas do pai sobre como era difícil encontrar pessoal que dominasse a técnica do assentamento da cerâmica e do azulejo. O marido fugia-lhe do quarto e continuava a passar os fins-de-semana em retiros espirituais. Percebeu que se forçara ao casamento para disfarçar certas tendências quando o encontrou, numa madrugada de Dezembro, na casa de banho masturbando-se com várias revistas espalhadas pelo chão. Eram homens com homens nas páginas das revistas e o marido, com as calças do pijama de flanela para baixo, olhando-os como se estivesse possuído por mil demónios. Maria Adelaide definhou a olhos vistos. Deus gozava-a pela terceira vez.
Aconselhou-se com a mãe. Não tinha mais ninguém a quem recorrer. A mãe escutou-a na vivenda de azulejos cor de caramelo. Explicou-lhe com inesperada clareza a natureza instrumental do casamento: era apenas um meio para se alcançar um fim. Maria Adelaide encontrou certo conforto no conselho. Chegou-se ao marido e disse-lhe que podia suportar o resto desde que tivessem um filho. Foi mãe aos vinte e nove anos. A menina que nasceu era muito bonita. Maria Adelaide rejubilou. Achou que a beleza da filha vingava o seu passado de permanente gozo: o lábio leporino à nascença, a mãe assim como era, a gargalhada do primo Renato no quarto das bonecas, o despeito das primas, o marido olhando imagens de homens nus. As primas, Arlete e Gorete, estranhavam a extraordinária beleza da menina. Não percebiam como podia a Laidinha ter tido uma menina tão linda. Mais parecia filha da Broke Sheilds. Descobriu-se, pouco depois, que a menina sofria de atrasos graves. Mal falava e babava-se muito. As primas voltaram a visitá-la e a consolá-la. Conseguiam suportar a beleza da filha agora que a sabiam tolinha. Deus voltava a gozá-la. Pela quarta vez.
Desde essa altura, passou a pensar frequentemente na sua morte. Era uma suicida crónica, mas era uma suicida feliz. A ideia da morte aliviava-a sempre. Às vezes, durante a noite, quando estava triste, pensava no seu funeral e sentia-se logo melhor. Imaginava então o caixão descendo à terra, a laje branca, o primo Renato chegando com a enfermeira da margem sul. Via-se deitada, as mãos postas em cruz, uma renda cobrindo-lhe o rosto, tornando-o desfocado, disfarçando-lhe a cicatriz do lábio. Quase que ficava bonita assim, morta, vista através das rendas. As primas e as tias haviam de chegar-se perto e chorá-la com sinceridade. Sentia que a morte era um remédio para todos os seus males, mas também uma maneira de mostrar aos outros a sua força. Há tantos anos que pensava na morte que se acostumara a ela. A morte era a sua derradeira oportunidade de ser feliz. Que Deus lhe servisse agora, assim de repente, a morte, de bandeja, era coisa que não tolerava. Não queria que Deus lhe oferecesse um carcinoma hepatocelular, lhe tirasse o mérito da decisão, a espectacularidade do gesto trágico. Não aguentava que Deus a gozasse assim, tão descaradamente, como quando era pequena e soltara uma gargalhada no seu quarto. Por isso sentia vergonha e frustração.
Estremeceu quando o elevador chegou ao oitavo andar. Foi como se despertasse. Tomara uma decisão. Nessa noite, limpou a loiça do jantar, adormeceu a filha, telefonou à mãe que enviuvará há pouco e vivia ainda na vivenda revestida de azulejos cor de caramelo. Escutou o ronco do marido, aconchegou-lhe a roupa. Teve pena dele. Abriu a janela da sala, subiu para o parapeito e deixou-se cair. Nessa breve viagem, desde o momento em que os pés se soltaram da janela e o seu corpo tocou no chão da rua, Maria Adelaide voltou a sentir que o tempo se alongava. Dentro do tempo havia mais tempo. Dentro das horas mais minutos. Dentro dos minutos mais segundos. Uma eternidade.
2012/10/22
Felicidade
Trago ao pescoço um lenço de lã preto, velho,
que herdei da minha avó Felicidade. É um dos lenços que ela costumava usar na
cabeça. Aconchega-me o peito, esconde o decote. Gosto de o levar ao nariz e
procurar, em vão, resquícios mornos do cheiro dela. Toco no lenço e lembro que,
durante a adolescência, tive vergonha da minha avó, do seu ar provinciano, do
seu lenço de luto, sobretudo, das suas mãos. Mãos de bruxa, mãos em garra,
nodosas, ásperas, mãos de terra, de tanto e tanto que passou. Saber-me assim, ainda
que num passado distante, é coisa que dói. Queria, na altura, uma avó da
Avenida de Roma, igual às das minhas amigas, com cabelos armados pintados de
azul e cãezinhos de companhia no regaço. Não queria aquela. Que nunca lera um
livro. Nem uma revista. Que não sabia sequer escrever o seu nome. Hoje, não sei
porquê, veio-me uma saudade grande dela. Da avó que cantava canções que falavam
da lua, das giestas da serra, do alandroal. Da avó que contava histórias de
bandidos e animais fabulosos. Da avó que sabia jogar ao jangro, fazer flautas
de caninhas, chifres de lenços e bonecas de pano, esguias, muito feias e
imperfeitas.
2012/10/16
2012/10/15
Carrossel dos Esquisitos
O rapaz mais feio do meu curso casou com a rapariga mais feia do meu
curso. A feiura dos dois é coisa nunca vista. Excessiva num mundo onde a beleza
é quem mais ordena. Ele tem a pele muito seca, originada por uma qualquer
doença de pele, psoríase provavelmente. Volta e meia, as escamas da sua pele
soltam-se e deixam à descoberta manchas de um vermelho intenso e feio. Tem os dentes
salientes, a fazer lembrar um coelho gigante. Uma pessoa olha para ele e
espera, a qualquer momento, vê-lo cobrir-se de uma pelagem cinzenta e desatar a
saltitar, frenético, em busca de um prado verdinho. É juiz. Há alguns anos,
apanhei-o numa comarca do interior, muitíssimo sério, feioso dentro da sua
beca, cheia de cordões e pregas, a ditar despachos com uma voz fanhosa. Quis
atirar-me à cara a superioridade da sua casta. Deixei-o. Uma coisa é ser
magistrado. Outra é ser jurista de um instituto público.
Ela, a rapariga mais feia do meu curso,
sempre foi velha. Já o era na faculdade. Usava saias por cima do joelho e
calças vincadas. Tinha olhos pequeninos, a pele baça, o cabelo oleoso colado ao
rosto, sem vida, sem volume. Alta, movimentava-se com lentidão como se o corpo
lhe pesasse em demasia. Tinha, e tem, uns enormes pés voltados para fora, as
ancas largas, muito robustas, a maternidade entranhada nos ossos das bacia.
Deve ter seguido o notariado. Assentos, certidões, averbamentos, procurações, testamentos,
tudo ela há-de tratar com eficiência e sisudez, disfarçando o fastio que o
cheiro a papel velho lhe provoca. Eram ambos alunos aplicados. Não faltavam às
aulas, não frequentavam o bar, não fumavam, não bebiam, tinham notas medianas.
Eu desprezava-os porque eles simbolizavam tudo o que eu não queria da vida:
ordem, conformismo, rotina, previsibilidade.
Ultimamente, andava eu já tão esquecida dos
tristes anos em que andei na faculdade de direito, voltei a cruzar-me com eles.
Devem viver no meu bairro. Encontro-os no talho a pedir carne picada para fazer
almôndegas e na mercearia a comprar duzentos gramas de fiambre de peru. Andam
sempre juntos, de mãos dadas. Ele olha-a com amor. Ela deixa-se envolver pelo
amor dele que é como uma gaze diáfana, muito leve e delicada. São, de uma forma
quase escabrosa, felizes por se terem. Olho-os com uma pontinha de emoção e
muita vontade de chorar.
2012/10/12
Azeite
1ª parte
O homem abre o armário. Tira uma garrafa de vidro escuro. Explica: é
preciso que compreendas a divindade deste líquido, sagrado como o chão de um
cemitério; cheira a aloés, agaves, zambujos, alperceiros e laranjais, recorda a
rigidez láctea das rochas calcárias, nele se aninha o sopro do oceano e a doce
barbárie das figueiras da índia; tem moléculas antigas, leves e aristocratas,
também polifenóis, tocoferóis e carotenos, andam à solta, em carnavais de
concertina e gaita de beiço, dão-lhe um travo picante, acidez que mal se nota.
2ª parte
A mulher pensa: tudo o que é divino é aborrecido e a maja desnuda continua,
em estático convite, pendurada no prado, já nada acontece quando por ela passo;
morri há muito tempo, mas esqueci-me de me levar a enterrar, mesmo morta deixo
entrar filetes de lava, gumes de faca, às vezes, touros solitários que
resfolegam uma bravura que cheira a urina. Entram e saem. Saem e entram. O
movimento é perpétuo, nunca termina. Deixa marcas de ripos e malhos. Esgaça-me
os panais.
3º parte
A mulher pega na garrafa. Olha-a. O homem acredita, por breves instantes,
que comunga da divina unção, falará talvez da purificação dos leprosos, dos
votos dos nazireus, de açafates de coscorões de ázimo e obreias de mel. A
mulher deixa cair a garrafa. Caminha sobre os vidros. Sabes, explica, por fim, sou
parecida com este líquido, livraram-me do ranço, rasparam-me o verdete, mas fico
sempre a boiar na bordadura dos corpos.
2012/09/28
2012/09/27
Foice e martelo
Voltei ao Porto. Trouxe da loja do Rui Carlos vários livros de uma tal Luísa Teles,
conhecida professora, que morreu há coisa de dois anos, sozinha num apartamento
de tectos estucados. Ao que parece era uma velha com muito mau feitio,
autêntico camafeu, deu-lhe uma convulsão, espumou da boca, arranhou o rosto com
as unhas azuladas e finou-se num instantinho.
Entre outras coisas, trouxe uma edição
muito bonita e sóbria - título e nome do autor emoldurados a vermelho e
cor-de-laranja - de “Uma abelha na chuva”. É um consolo olhar para um livro
assim. Também trouxe uma colectânea de poesia árabe. Não sou apreciadora
de poesia tal como não sou apreciadora de bacalhau ou de bebidas brancas. Sei
que é uma falha grave para quem alardeia o gosto da leitura. Vai daí, lá de vez em
quando, faço um esforço. Ainda este Verão, a Mila, enquanto molhávamos os pés
na água fria, me falou com emoção de um poema da Natália Correia. Fui à procura
dele, li-o e nada, nem ai, nem ui, palavras bonitinhas, coceguentas, pouco
mais. A poesia não me aquece, nem me arrefece, dá-me sonolência e um
aborrecimento de frígida. Trouxe mais quatro ou cinco livros de escritores
portugueses que são os que mais gosto de ler. Mas o grosso da escolha recaiu sobre vários livros da Agustina Bessa-Luís, antigas edições da Guimarães, que as
novas, as azuis, da defunta Babel dão-me calafrios, pretensiosas, feias, tão
canastronas.
O Rui Carlos, antes de me entregar os livros,
passou-os a pente fino, tirou bilhetes, contas, folhas, flores, vários esboços
de desenhos, duas cartas em papel translúcido, caligrafia inclinada, maiúsculas
dramáticas, de golpe acentuado. Perante o meu protesto, explicou que prometera
aos filhos da tal Luísa Teles preservar a intimidade da mãe. Fiz beicinho a ver
se o demovia. Sou um homem de palavra, Aninhas, escusas de fazer essa carinha
laroca, espetar o rabo nessa saia justa e bater as pálpebras, que não me
convences. Ficou um montinho de papéis em cima do tampo de mármore, o último
era um cartão de militante do PCP, bem vi a foice e o martelo; eu, aguada, a
olhar.
2012/09/21
Mata-moscas
Tivemos uma discussão medonha (detesto esta palavra, medonho, medonha, mas não sou capaz de encontrar sucedânea), ao final da tarde, na cozinha, os vizinhos escutando a nossa vida. Pela primeira vez na vida, não senti medo - tenho tanta vergonha do meu medo - , estranhei a minha segurança e certeza. Quando saiu, andei a confortar os miúdos, lambi-lhes as lágrimas, contei histórias, li em voz alta para o João adormecer. Depois, pus-me a ler a Agustina e descobri isto: "Era uma coisa maravilhosa esse abismo na vida de duas pessoas, com os seus tempos separados, de desejo, procriação e de trabalho. O amor era talvez uma longa rebelião absorvida pela paz de cada um". ´Refeita, fui buscar um mata-moscas e andei a matar meia dúzia de palavras-arremesso que insistiam em voar pela cozinha. Ficaram os seus corpos de queratina presos às paredes de azulejos azuis. Larguei o mata-moscas a um canto e senti fome. Fui buscar uma carcaça. Molhei o miolo no molho da carne assada. Comi pedaços grandes, cheios de gordura coalhada e cebola.
2012/09/18
Cedofeita
Sempre que vou ao Porto almoço com
o Rui Carlos que tem os dentes muito amarelos, usa boina e parece tão velho quanto
é. Hoje, enquanto almoçávamos na Chicana, estraçalhava eu uma pescada frita, ao
espiar a vigília de ontem, perguntei-lhe o que achava da privatização da RTP. Palitou
os dentes, aborrecido com a pergunta. Ó doutora, ó minha rica doutorinha, foi
dizendo com uma soberba que me irritou, querem instruir o povo, quando o que
povo quer ver é nádegas cheias e a desgraça dos outros para se sentir menos miserável.
Há que respeitar o povo e para o respeitar não é preciso pagar uma televisão pública. É
um engano pensar que os pobres e os remediados têm uma vocação latente para a erudição. E
continuou a palitar os dentes. És um bruto e já não tens idade para usar a fralda da camisa por fora, respondi-lhe, mas não
fui eu que falei. Foi a Nel. Não sou nada e toca a despachar a marmota, já
não temos muito tempo para ir ver o casario da Cedofeita. Lá fora, no silêncio da Avenida Rodrigues de Freitas, uma grávida desdentada pôs-se a gritar com duas crianças ramelosas.
2012/09/17
Nana
A
meio da tarde, quando lhe telefonei para lhe pedir o carro para ir fazer amanhã
um julgamento ao Porto - é a gasóleo, sempre ganho mais meia dúzia de tostões -
o meu pai goês, bruto, tantas vezes, mau, escutava a minha canção, lia as
minhas palavras e olhava Nana, a mais bela mulher. Como não amá-lo?
Austeridade
Nanda
continuou a frequentar a igreja. Refez a sua vida: passou a gastar a pensão de
aposentação em restaurantes que serviam comida de inspiração italiana, lia os
suplementos de fim-de-semana dos jornais, comprava guias gastronómicos, fazia
listas, passava a semana a salivar; ao sábado, vestia umas calças escuras de
cintura alta, um bolero de tricot azul com gola de rebuço, escolhia uma pochete
de vidrinhos brilhantes, arrebicava o rosto com um blushe cor de pêssego e
passava um baton forte pelos lábios. Sentava-se sozinha em restaurantes de
ambiente elegante e descontraído, frequentados por homens de barba aparada,
ligeiramente adamados, mulheres emancipadas que deixavam a prole com babás
ucranianas. Os comensais habituais, limpavam os cantos da boca a guardanapos de
pano, beberricavam roses frutados, tintos robustos e brancos frisantes,
mantinham a conversa acesa, acordavam na essencialidade da austeridade, alongavam-se
em análises profundas sobre a crise, desfiando, como se fossem seus, argumentos
lidos em colunas de opinião; arrumada a situação económica do país, passavam a
temas mundanos, falavam de férias em resorts turísticos, de mensalidades de
colégios privados e peças de mobiliário vintage, compradas em lojas da Baixa.
De viés, sem conseguir esconder o incómodo, olhavam Nanda, estranhando a
presença daquela sexagenária solitária, o bolero de tricot sem requinte
informal, as calças de cintura alta demasiado justas a acentuar a adiposidade
do corpo velho; metia-lhes nojo ver os arrabaldes intrometerem-se na
descontraída sofisticação das suas vidas.
2012/09/13
Vivre sa vie
Fumo
enquanto ela fuma. Aprendi com ela a olhar em volta, a observar os outros sem
medo ou embaraço. Amo-a desde a primeira vez que a vi, aos dezoito anos,
sozinha, em casa; a oral de direito romano era no dia a seguir e eu,
tristemente cumpridora, a filha das boas notas, esqueci-a. Não revi a Lei das
doze tábuas e durante o exame, as mãos velhas do Padre Samuel nas minhas pernas
ainda tenras, lembrei-me dela. Um dia, convencida da singularidade de um homem,
por sinal, jurista, convidei-o para ir vê-la. Passava o filme na Cinemateca e
eu nunca o vira em tela grande, numa sala escura. Desculpou-se o tal jurista já
não sei com o quê e recusou. Fui sozinha e não me senti só. A vida, alguém o
disse, é uma enorme repetição.
2012/09/09
Kanchanganga Bldg.
A primeira vez que fui a Bombaim fiquei em
casa da minha prima Melinda. Vive na parte ocidental de Andheri, num
apartamento pequeno com o marido e duas filhas. Uma das meninas chama-se Elaine
e será, como já expliquei ao meu filho João, a minha futura nora. Os prédios em
Bombaim têm nomes e aquele onde a Melinda vive chama-se Kanchanganga Bldg. Por
ser tão alto e ter gradeamentos nas janelas - todos diferentes, todos
ferrugentos, cada um ao gosto do seu proprietário - fez-me lembrar, ao primeiro
olhar, uma torre medieval fortificada. Olhando para cima, vislumbrei, nesse
primeiro dia, silhuetas de águias, gralhas, abutres. São aos milhares nos céus
de Bombaim. Rondam os pássaros soturnos as torres de apartamentos no intuito de
comer os desperdícios dos seus habitantes. São, simultaneamente, sinistros e
belos. O Kanchanganga Bldg. tem um porteiro sorridente que assegura que a torre
não é invadida pela amálgama de miseráveis que vive nos passeios da cidade. Usa
uma farda puída e um boné que deve ter herdado do seu antecessor. Fica-lhe
demasiado largo. Pela manhã abre as portas aos moradores que saem para os seus
empregos e aos meninos que vão para a escola. Esvazia-se depois a torre. Ficam
apenas algumas mulheres e as crianças mais jovens. Em cada piso os apartamentos
desembocam num átrio circular que não serve apenas de passagem para a rua. O
átrio é uma parte comum e funciona como prolongamento dos apartamentos. É aí,
no átrio, que os habitantes deixam os sapatos antes de entrar nas suas casas e
as mulheres conversam sobre assuntos domésticos. As portas dos apartamentos não
são maciças. Têm uma espécie de portinhola que, se abrindo pela manhã, deixa
antever o miolo dos apartamentos e os movimentos dos seus habitantes. A torre é
habitada por católicos, hindus e muçulmanos. No átrio misturam-se os odores
intensos das suas cozinhas. Ao lado das portas há pequenos oratórios com
imagens de cristo, placas com luas crescentes e altares coloridos às divindades
hindus. É uma miscelânea de deuses e de fés, convivendo de forma
inesperadamente harmoniosa. Quando chega a tarde as mulheres dormitam e as
crianças, sentadas no chão, sonham em ser iguais aos meninos prodígio que
aparecem nos concursos televisivos. O porteiro aproveita o sossego da tarde.
Sentado junto das caixas do correio olha gulosamente uma revista onde as
actrizes da cidade aparecem seminuas. Na Índia, as mulheres vestem com
decência, não usam decotes, não mostram as pernas, banham-se no mar vestidas.
Ao anoitecer, quando a cidade fervilha em todo o seu esplendor, o porteiro
volta a abrir as portas aos habitantes do prédio que regressam. Lá fora, os
vendedores de tabaco e areca desmontam as suas bancas. Chegarão então os
habitantes dos passeios, os corpos-sombra, quase invisíveis, quase mortos, os
intocáveis que nascem, vivem e morrem na rua. O porteiro observa-os através dos
vidros da entrada do Kanchanganga Bldg e agradece aos deuses a sua sorte.
(Setembro/2008)
2012/09/08
2012/09/05
Pai
Estou tão feliz por regressar. Gostava de ir e nunca mais voltar. Ficar para sempre com o meu pai. Eu e ele. Mais ninguém. Há quem ache que o meu pai não merece o amor ancilar que lhe tenho. É sinal de fraqueza, pueril ingenuidade, a fonte de todos os meus problemas, inércia, frigidez, tristeza. É o que dizem os entendidos e há tantos entendidos na vida. Amar os santos é fácil e aborrecido; difícil é amar os ímpios, os impuros, os biliosos. Não sei viver de outra maneira. É para o meu pai que vivo, por ele que espero.
Noite
Não
sei explicar a noite. Não gosto da noite. Só as noites em Goa me trouxeram
sossego e felicidade. Assim que o meu pai adormecia, corria a buscar uma
cerveja ao frigorífico e fugia para o terraço. Arrastava uma cadeira para a
beirinha do estendal, afastava as roupas tesas que a Caetaninha deixava
estendidas pela manhã e acendia um cigarro. Esse era o instante preciso em que
a noite se transformava. Tornava-se mais intensa, ficava com corpo de mulher e
eu encostava-me nela. Passei as noites ali, no terraço, olhando a linha da
estrada que leva ao Seminário de Rachol. Escutava os ruídos: pássaros, matilhas
de cães passando nas várzeas, o vento afagando as folhas do tamarindo,
chupando-lhe o azedo dos frutos, o sacolejar da cerveja dentro da garrafa, os
deuses brincando junto do tulsi, a ventoinha no quarto do meu pai. Pelas
frestas do telhado chegava-me, por vezes, o ressonar da tia Maria e os soluços
do Cristo falante. Chora o Cristo falante noites inteiras porque tem saudades
do tio Rosário. Eu sei que tem. À noite, o mundo reduzia-se aos seus sons e na
sua penumbra só eu existia.
(Setembro/2007)
Menina-Balão
Na
Índia, ao contrário de cá, os jornais não trazem mensagens eróticas. Shiva,
sempre entretido em cabriolices eróticas com as suas consortes, de lingam
erecto, não o permite. Em contrapartida, há em cada jornal uma longa secção de matrimonial. Trata-se, como o nome indica, de uma secção de
anúncios de quem procura parceiro para casar. As mensagens são de uma
especificidade impressionante. Nunca tinha visto nada igual. As brides e os grooms descrevem-se com rigor e exactidão. Num
quadradinho de papel condensam a informação necessária para despertar o
interesse de um potencial parceiro: idade, casta, religião, habilitações
-desengane-se quem pensa que na Índia são todos uns desgraçadinhos analfabetos,
na maior parte dos casos, principalmente nas cidades, o que está em causa é
saber se se tem uma especialização ou um doutoramento -, região, profissão,
salário e, claro, o tom da pele. Fiquei viciada na leitura daquela secção dos
jornais indianos. Por isso, quando a tarde caía sobre a casa de Maina e os
esquilos se escondiam nos ramos da mangueira, eu arrastava a cadeira de baloiço
para a varanda e entretinha-me a ler os anúncios dos casamentos, tentando
encontrar naquelas listas infindáveis correspondências que assegurassem aos
noivos um casamento feliz para a vida. Um dia, a Ria, a menina-balão, veio
sentar-se perto de mim. Espreitou o jornal e chamou, com a sua voz de trovão,
as outras crianças da casa que, entretidas a chupar limas, correram para perto
de nós. “Ana
Clara is reading the matrimonial! She is looking for an indian groom!”. Ri-me
do descaramento da menina-balão e belisquei-a. Depois, passámos o resto da
tarde à procura de um noivo indiano para mim.
(Maio/2007)
Lição em Pondá
Despimo-nos.
Eu, a sobrinha europeia. Ela, a tia goesa, a menina que o meu pai carregava por
caminhos sinuosos de chuva e lama até à escola. A nudez traz-nos a proximidade
que tardava em chegar. Assim despedidas, a tia Amália começa a lição. Primeiro
o saiote, bem apertado ligeiramente por cima da anca. O umbigo deve deixar-se
sempre destapado. É por aí que o corpo respira, explica. Se se cobrir o umbigo
o corpo sufoca. Depois a blusa que deve ser justa e tapar apenas o peito. Por
fim, o rectângulo que envolve o corpo como se fosse um casulo. Há quatro passos
essenciais que não se podem esquecer. O mais difícil é preguear decentemente a
parte de baixo. É preciso ter mãos habilidosas para o fazer. À medida que a tia
Amália fala, executa os gestos, enrolando-se na perfeição no tecido. Eu tento
imitá-la.
Sentada na cama,
Jessica come umas uvas pretas, muito doces e sem grainhas. Para me
tranquilizar, diz que, em vez do sari, poderei sempre usar um churidar.
Sorrio-lhe. Não gosto nada de churidares. A única peça que gosto no churidar é
a dupata. Continuamos a lição. Por fim, com a ajuda de duas mulheres, consigo
vestir o sari. A minha tia apanha-me o cabelo. Manda-me andar. Olho-a. “You can’t walk in a sari like
you walk in your jeans. You have to
walk with grace, Ana Clara!.” Ando. Ela abana a cabeça. Diz que temos de
treinar o andar-de-sari. Reconheço-me nela. E, outra vez, vejo as mãos do meu
pai no seu corpo. Ela faz-me uma festa no rosto. Gosto da festa que ela me faz,
que é morna, como uma manhã de maio. Diz que pareço uma parsee por causa da
claridade da minha pele. Que estranho, penso, sou uma europeia escura e uma indiana
clara. Jessica, escura e gorda, continua a comer bagos de uva e ri-se.
(Março/2007)
Curtorim
Sento-me
no adro da igreja, que fica junto a uma lagoa cheia de nenúfares brancos.
Entardece. Na escadaria, três homens falam um português correcto e antigo, um
português sossegado, que não tem pressa de chegar a parte alguma, um português
doce e calmo. É a primeira vez que aqui, em Goa, escuto português falado
espontaneamente. Entardace. Lá dentro, o meu pai fala com o padre vigário, que
usou uma batina branca e umas sandálias nos pés durante a missa. Os três homens
continuam a conversar. Escuto-lhes as palavras. Percebo que falam sobre mim. Um
deles aproxima-se e, em inglês, com uma delicadeza a que não estou habituada,
pergunta-me se não sou familiar de um tal Alvito de Souza. Respondo-lhe em
português que não, que não conheço nenhum Alvito de Souza, que sou neta da
família Rebelo de Maina, a aldeia mesmo ali ao lado. O homem sorri e leva-me
para junto dos outros homens. Explicam-me que conhecem bem a minha família.
Apresentam-se: Rafael Viegas, Dr. Cunha Menezes e José Mascarenhas. Entardece.
A conversa escorre entre nós como se nos fossemos velhos conhecidos. Os goeses
têm uma identidade própria, são a simbiose perfeita entre o oriente e o
ocidente. Mas têm a fragilidade das porcelanas antigas que guardam dentro dos
louceiros de outros tempos. São como a fímbria do mar. Entardece. Lá dentro o
meu pai continua a sua conversa com o padre vigário. Não fala em português, mas
em concanim, língua labiríntica, e inglês, esse linguajar bárbaro e deslavado
que tomou conta destas paragens.
(Janeiro/2007)
Goa
A
tia Maria gostava tanto, tanto do Salazar que lhe chamavam " A favorita de
Salazar"; o meu pai foi deserdado por ter feito um filho a uma preta; o
meu tio Rosário gastava o dinheiro da família porque um Cristo falante lho
dizia para o fazer; o tio Inácio, o irmão mais novo da família esteve quase a
ser castrado, como era costume nas famílias bramanes, para assegurar a sua ida
para o seminário;em Rachol, os anjos do altar têm cabelos negros e há um poço,
fundo e imenso, habitado por morcegos; a terra é vermelha como o sangue; em
Chandor, a sua dama, D. Aida Menezes de Bragança, vive num palácio habitado
pelos fantasmas de outros tempos e, pelas janelas de carepa, espreita o adro da
igreja; em cada casa há um oratório, um presépio e uma estrela iluminada; os
arrozais são de um verde intenso e os palmares estendem-se, infindáveis, junto
às praias; a tia Amália ensinou-me a usar o sari e nunca me senti tão bonita na
vida; em Goa estou em casa.
(Janeiro/2007)
2012/09/04
2012/08/29
Dor
Diz-se que o tempo tudo cura, mas o
silêncio é de melhor serventia, tudo apaga, não se falando das coisas é como se
elas não existissem. Aconteceu o mesmo a Odete. Foram-se as agonias, o
mal-estar inicial, calou frustrações, chegou o filho, sumiu-se de vez o
sofrimento. A maternidade, para além da perpetuação da espécie, serve muitas
vezes para secundarizar uma mulher. Foi nessa instrumentalização que o destino
de Odete se cumpriu. Passados tantos anos, tantos domingos, uma vida inteira,
ficou lá dentro uma coisinha, uma dor a saracotear no fundo do peito, uma
dorzita que é quase nada, Odete já não dá por ela, fracota, extingue-a
diariamente com uma alegria breve, uma gargalhada solta em frente da televisão,
dois dedos de conversa com a Nanda, a satisfação de um casaco comprado nos
saldos, custava sessenta e cinco euros e comprei-o a trinta, rica pechincha.
Fica o casaco durante o inverno dentro do armário porque ganha borboto com
muita facilidade, a fazenda é ordinária e a cor demasiado viva, inadequada à idade
que tem, mas a alegria breve, essa que cala a dor, já ninguém a leva.
2012/08/28
Aznavour
(Três da manhã, o Joquinhas às voltas na cama, sonha com piscinas e bisnagas de água, os outros a monte, gozando o declínio das férias, eu a ler o manual de patologia médica que trouxe do Alentejo, as notas a esferográfica da minha mãe, desenhos de cisnes e tulipas, o cheiro a mofo das páginas amarelecidas. Trouxe também um livro de 1960 sobre desejo e perversão sexual, magnífico achado de verão; mas esse desconfio ser pertença da tia Dé.)
2012/08/25
Quelimane
Todas as famílias
têm segredos. A minha é pródiga em histórias, incertezas, meias
verdades, omissões, em calar a dor. Olho para os meus irmãos. Não vivo longe
deles, sem as vozes dos filhos deles chamando-me tia. Um dia partiremos para
Quelimane. Lá encontraremos o homem que engoliu o mar e, na sombra de uma
árvore frondosa, enroscada numa capulana garrida, a menina que escutava canções
do Roberto Carlos.
2012/08/02
Billie Jean (2)
(Mas antes deixo o original, melhor. Esta canção liga que é uma maravilha com S. Bartolomeu da Serra, o cheiro a porcos no crepúsculo, o moinho que foi do tio Manuel visto do quintal, os pessegueiros enxertados que davam frutos grená e que já só existem na minha memória, as sopas de tomate feitas pela prima Filomena que custou a engravidar, tanto que chorou por não cumprir o seu destino de fêmea, o mar frio e revolto de São Torpes, os meus mortos e os meus vivos, que se fodam os que não são meus, só tenho amor aos meus, o café da associação de moradores onde uma brasileira de sobrolhos impecavelmente arranjados, a Denise, tira cafés amargos e suscita a lascívia dos homens que sossegam o cansaço do trabalho do campo, a minha filha namoricando o Artur, miúdo loiraço, com muito pêlo nas ventas, o mais pequeno correndo atrás dos gatos, o mais velho encostado ao meu corpo, amparo da minha solidão. )
Billie Jean
(Depois da santíssima trindade, Sérgio Godinho, Fausto e Chico Buarque, este é o homem mais bonito à face da terra. Nunca vi um nariz tão bonito. É lindo. E como é possível não se gostar do Michael Jackson? É preciso ter o cu muito dorido de enrabadelas intelectuais para não gostar do que é simplesmente perfeito. E, agora, vou de férias, que bem as mereço.)
2012/07/21
Les neiges du Kilimandjaro
(Fui à primeira sessão. Na sala, eu e uma velha de vestido roxo que me contou que, quando era da minha idade, fez um cruzeiro no Volga. Fartei-me de chorar. Tão bonito, o filme. Vou obrigar o meu pai, a minha mãe, a tia Dé e os miúdos mais velhos a irem vê-lo.)
2012/07/13
Alentejo
(Estou completamente viciada no Roque Popular, sobretudo, na Luzia, tão linda esta canção, hei-de tê-la ouvido mais cem vezes, hoje. E, em Agosto, falta pouco, volto à minha aldeia alentejana, que tem festa com frangos assados, baile, festeiros e festeiras, a Marisa cabeleireira, tão jeitosinha, e a Luísa nojenta, de tacões de madeira e blusas transparentes, puta da Luísa - gorda e loira, tinha de ser loira, deslavada, imbecil, as loiras são quase sempre assim, convencem-se de que a palidez lhes mascara a primitiva insignificância - roubou o namorado à minha prima Filomena, a maior suinicultora do litoral alentejano; em Agosto, a festa em S. Bartolomeu da Serra tem leilões de garrafas de vinho do porto e leitões, uma mulher de olhar permanentemente espantado, contam que foi resquício de mal de amor, também lá está a prima Laura, sentada a uma mesa de fórmica, umas vezes triste, outras alegre, nunca se sabe como está, é como calha, que a bipolaridade não é doença só de gente de inteligência superior, também marca os outros. Eu, entre eles que me recebem sempre com distância, danço com este e com aquele, os meus filhos correndo no adro da estação, descansando por fim em colos negros, alapando na Virtuosa e na Preciosa. Os meus avós, José e Felicidade, largam a cova nessa noite para ver os bisnetos. Sou menos infeliz em Agosto porque os sinto. Quis-lhes tanto. Quero que os meus filhos amem os meus pais exactamente como eu os amei. Como se pode gostar da merda do Algarve, havendo o Alentejo?)
2012/07/09
La Llorona
(Quando os miúdos me mimam, és a melhor mãe do mundo, dizem, dou-lhes para trás. Explico-lhe que a melhor mãe do mundo tive-a eu. Não há, nunca haverá outra igual. Cantava esta canção e eu, pequenina, ficava presa às palavras que lhe saíam da boca. Faz hoje 72 anos. Parabéns, meu primeiro amor, minha menina velha.)
2012/07/05
Mulher-árvore (4)
Sucede que a semente
era embrião de uma árvore de grande porte, mastodôntica, cruzamento de sequóias
e embondeiros, viera trazida num cargueiro senegalês que aportara em Lisboa num
dia de vendaval; uma rajada mais forte, aparentada dos alísios tropicais,
fizera-a voar para terra. A árvore cresceu, cresceu, cresceu, fez-se de copa
ramalhuda, folhagem densa e luminosa, a mulher andava na rua e toda a gente lhe
gabava o ornamento. Por altura do Natal, porém, começou a sentir desconforto, custava-lhe
aguentar o peso da árvore. Tinha de a tirar. Fazia-o com pena. Gostava de
acordar de manhã e sentir a líquida condutância do seu corpo arbóreo. Por causa
da fotossintética mentolada melhorara substancialmente dos seus problemas
respiratórios, deixara de usar o brisomax e o pulmicort. Na rua, muitas vezes,
vinham bandos de pardais atrás de si, atraídos pelos frutos roxos que nasciam
aos cachos, ficavam os passarinhos a aguar com vontade de bicar os abrunhos; às
vezes, se tinha tempo, a mulher parava, deixava-se estar perfeitamente imóvel e
punha-se a observar a aproximação dos pássaros. Repiu, piu, piu, faziam os
pardais, deliciados com a polpa sumarenta e doce, estremeciam de satisfação, as
bárbulas perdiam o tom pardacento, refulgiam em cores estranhas: ametista, magenta
e aspargo. A mulher das narinas grandes não era, por isso, capaz de simplesmente
a arrancar. Matar a árvore estava fora de questão.
Procurou ajuda junto
de uma amiga jardineira, muito boa pessoa, que trabalhava na Câmara Municipal de
Loures. A amiga logo reconheceu as suas limitações, estava habituada à
manutenção das espécies comuns, não era especialista no transplante, tentara trazer
quatro oliveiras centenárias – corriam risco de se perderem por causa da
construção de uma nova estrada camarária - para o largo do tribunal, cumprira
meticulosamente as etapas do transplante de árvores de porte médio, mesmo assim
perdera duas, definharam lentamente até se tornarem troncos estrangulados. Aquela
árvore exigia a intervenção de um sábio. Por sorte, explicou a jardineira, o
maior sábio botânico europeu vivia em Portugal, chamava-se José Theophrastus e
vivia em Paço de Arcos, numa vivenda recamada de azulejos cor de caramelo,
junto à marginal.
2012/07/02
Mulher-árvore (3)
Durante algum tempo, sempre que a
mulher se sentia tentada a guardar qualquer coisa dentro das narinas, lembrava as
duas rãs que lá tivera hospedadas. Um dia, porém, enquanto passeava no porto,
entre contentores e cargueiros encontrou, junto a um caixote de lixo, uma
semente. Muito pequenina, com a forma de um feijão, tão bonita e estranha. A
mulher quis guardá-la para a mostrar ao filho mais pequeno, que todos os dias
chegava da escola com flores, folhas, pedras e paus para lhe oferecer, mas,
nesse dia, por sorte ou azar, usava um vestido largo sem algibeiras. Levou a
semente ao nariz. Sentiu um cheiro mentolado, cheiro de hortelã, poejo,
lúcia-lima e erva-cidreira. O cheiro intenso pareceu-lhe muito adequado ao
desentupimento das fossas nasais. É que, apesar de não ter diagnóstico
definitivo, tanto podia ser rinite alérgica ou bronquite asmática, a mulher
vivia numa permanente aflição, falta de ar, chiadeira e piadeira, sempre
pingando um ranho aguado, nariz permanentemente trancado. Talvez o cheiro
mentolado da semente ajudasse no tratamento da sua maleita. Enfiou-a no nariz e
sentiu alívio imediato como se tivesse posto vinte gotas de cloridrato de
nafazolina em cada narina. Nessa noite deitou-se e, ao contrário do habitual,
dormiu um sono seguido. Sem sornadura. Foi assim durante duas semanas. Até que,
numa manhã de Setembro, o inesperado aconteceu. Estava o filho mais pequeno,
rapazinho chamado Quinzolas, cheio de caracóis dourados, tão bonito que mais
parecia um anjinho barroco, sentado à mesa da cozinha a tomar o pequeno-almoço.
Bebia o leite com cola-cao por uma palhinha encarnada antes de ir para a
escola. A mulher das narinas grandes entrou, queixando-se das sandálias
novas que lhe apertavam muito os joanetes. Mal a viu, o menino engasgou-se,
esguichou leite achocolatado pelo nariz e deu um grito, apontando para o rosto
da mãe.
A mulher correu ao espelho da
casa de banho, assustada, talvez lhe tivesse nascido uma verruga com pêlos no
queixo ou talvez o cabelo tivesse embranquecido de um dia para o outro, já
ouvira falar de casos semelhantes. Sossegou mal se viu ao espelho: um pequeno
ramo, ligeiramente retorcido espreitava na sua narina esquerda; na ponta,
nascera uma folhinha encerada, a fazer lembrar as das japoneiras, assim de um
verde muito vivo e luminoso. O ambiente acolhedor, tal como fizera eclodir os
ovinhos das rãs guineenses, fizera germinar a semente mentolada. Nascera-lhe
uma árvore no nariz. A mulher ainda pensou em arrancá-la com uma pinça tal
como fazia aos dois pêlos que lhe nasciam no queixo por cima de uma cicatriz
antiga. Porém, ao segundo relance, resolveu deixá-la estar. Pois não havia quem
andasse de anilha de bovino no nariz, alargador na orelha, corpo tatuado,
postiços de gel em cima de unhas ratadas? Porque não haveria ela de andar nos
transportes públicos, no supermercado, trabalhar ao balcão do banco, participar
nas reuniões de condomínio, com uma pequena árvore pendurada no nariz?
2012/06/29
Mulher-árvore (2)
São duas rãs
papua-nova-guineenses, espécie raríssima, o mais pequeno vertebrado do mundo,
foram descobertas recentemente por um cientista libanês que passou três anos na
floresta birmanesa, vivendo rente ao chão, por baixo de uma seringueira. O libanês
descobriu-as por acaso enquanto defecava junto a um formigueiro. Têm apenas cincos
milímetros!, disse o velho maravilhado, língua bífida, silvando de alegria.
Caminhou, sanfonando, até uma sala cheia de livros encadernados; iam os livros
do chão ao tecto, arrumados sem ordem, sem método, abandonados em estantes de
metal. O velho sentou-se numa secretária de teca, ligou um tablet de última
geração e pesquisou durante algum tempo. Duas iguanas plácidas mastigavam um
livro enciclopédico que tratava da reprodução em cativeiro de caimões.
Devoravam páginas amarelecidas. Perante a facilidade de acesso do saber
digital, permanentemente actualizado, os livros já não tinham outra serventia
que não fosse aquela: ser papados. As rãs caganitas-de-tucano, retomou pouco
depois o velho, são assim chamadas porque o libanês, a princípio, as confundiu
com os dejectos de tal pássaro; alimentam-se de mosquitos dim-dim, melgas
dom-dom e, sobretudo, de formigas azuis. Ora, formigas azuis não se encontram
por estas zonas, mas mosquitos dim-dim tenho-os à farta para alimentar o salamandrim
de cauda roxa. E saiu, deixando a mulher das narinas grandes sozinha na
biblioteca com as iguanas plácidas; entrou, pouco depois, com uma caixinha redonda
nas mãos.
Paciente, sentado
numa poltrona muito velha, pôs-se a enfiar num palito os mosquitos que ia
tirando da caixinha. Pediu à mulher para reclinar a cabeça levemente para trás
e ficar imóvel. Enfiou a espetada na sua narina direita. Puxou-a, depois, muito
lentamente, saíram as duas rãs agarradas ao palito, acastanhadas, muito lambareiras,
mastigando freneticamente com as suas boquinhas de anfíbio os tais mosquitos
dim-dim. A sua pequenez realmente impressionava. A mulher agradeceu ao velho
que, como paga, pediu para ficar com os minúsculos animais, com sorte, talvez
formassem casal, poderia fazer criação, ter ninhadas de caganitas-de-tucano. A
piton amarela e o crocodilo do Nilo certamente apreciariam o petisco. Eram os maiores
animais que viviam no apartamento. Gostavam de anfíbios pequeninos em geral,
mas tinham predilecção por sapos touro recém-nascidos, não eram de visão
agradável, translúcidos e pelados, mas tinham um sabor intenso, faziam lembrar
jaquinzinhos e petingas. Ele próprio não dispensava o pitéu. Comia sempre um
pires de sapinhos ao final da tarde acompanhado por uma cerveja bem
fresquinha. Os sapinhos touro, assim comidos, ao natural, sem louro ou
coentros, só uma pitada de sal, eram uma iguaria, reconhecia-o. Mas as
caganitas-de-tucano deviam ser melhores.
2012/06/27
Mulher-árvore (1)
Era uma vez uma mulher que
tinha as narinas muito grandes. Não eram as narinas apenas abertas e suínas,
não, nada disso, eram narinas verdadeiramente grandes, autênticas divisões
espaçosas, amplas, onde se escutava o eco e o silêncio que vem de seguida. Por
as ter assim, tão grandes, a mulher servia-se delas como espaço de arrumos, guardando a tralha que já não queria em casa,
manuais escolares antigos dos filhos, brinquedos velhos, roupa fora de moda,
sapatos cambados.
Um dia, andava a passear
numa ribeira, as margens cheias de aloendros, um cheirinho tão doce e enjoativo
no ar, encontrou um seixo pequeno, do tamanho de uma amêijoa, rolado, liso,
irisado, muito bonito. Quis guardá-lo. Enfiou-o dentro da narina direita. Andou
com a pedrinha no nariz durante muito tempo. Não lhe causava incómodo. A mulher,
porém, não se dera conta do brinde que a pedrinha levava; dois ovinhos
minúsculos, amarelo esmaecido, que, com a humidade da cavidade nasal, não
tardaram a eclodir. A mulher passou a sentir um saracotear dentro da narigona,
muitas cócegas, como se uma lagarta de pezinhos de lã por ali andasse. Certa manhã, ao
acordar, ouviu um coaxo, a seguir outro, depois mais outro. Que era aquilo? Que
som estranho saía do seu corpo? Tentou espirrar a ver se se livrava do
incómodo, mas nada. Foi às urgências em busca de alívio. O médico, um ucraniano
de lábios muito finos e cabeleira despenteada, espreitou com uma lanterna
fininha. A senhora tem duas rãs na narina direita, estão lá muito ao fundo, escondidinhas
atrás de uma caixa cheia de livros e da bomba de hélio para encher balões,
mesmo lá atrás, onde é mais húmido e escuro, quase não as vejo, vai ser o cabo
dos trabalhos para as tirar de lá. Eu não consigo, explicou, por fim, amaciando
a cabeleira farta e demoníaca, talvez seja melhor consultar um herpetólogo. Não
foi fácil à mulher das narinas grandes encontrar um herpetólogo em Lisboa, os
poucos que havia andavam por longe, nas selvas cor de laranja da Malásia, de
galochas enfiadas, enterrados em pântanos e mangues, à cata de rãs, sapos,
salamandras, lagartos e cobras. A mulher soube porém que, em Algés, ali junto
do Aquário, vivia um velho estudioso que transformara o apartamento num imenso anfibiário-reptilário.
Procurou-o. O velho era um ser estranho, muito esguio e escorregadio, parecia
movimentar-se como uma sanfona. À conta de tantos anos vivendo no meio de
cascavéis, serpentes e dragões de komodo, o seu corpo adquirira a primitiva
aparência dos répteis: os braços cobertos por escamas granulares, locomoção
ondulatória, uma língua fissurada apta a detectar vítimas e predadores. O velho
enfiou um capacete de mineiro com uma luz azul, fez pontaria e espreitou para
dentro da narina direita da mulher.
2012/06/25
Santinha
Tivemos,
advogadas e juíza, que nos chegar perto da testemunha para que nos ouvisse.
Gritámos-lhe as perguntas ao ouvido, sentindo-lhe um cheiro adocicado de lar de
idosos. O velho respondeu, gagá, balbuciando umas frases com sentido, outras
sem o ter. Chamou-nos santinhas - ó santinha, toda a gente no prédio sabia que
o Capitão Matos tinha uma caçadeira e dormia a sesta com a Fernanda, por sinal,
bem boa! - eu a escutá-lo, a moer para dentro, sabendo bem que, se em vez de
mulheres, o estafermo do velho tivesse apanhado juiz e advogados, adoptaria
outra postura, havia de se esmerar na formalidade sebosa, no unto subserviente,
Sr. Doutor Advogado isto, Senhor Doutor Juiz aquilo. No final, a juíza
agradeceu-lhe o depoimento. O velho levantou-se a custo e
começou a andar devagar, tremelicando, apoiado numa bengala de madeira
encerada. Em pouco tempo se finará, sete palmos de terra por cima, coroas de
gerberas e cravos brancos a alindar. Ia a meio do caminho, passava pela minha
bancada, quando pediu autorização à juíza para me dedicar uns versos. A
santinha lá de cima, galhofeira, rubicunda, rubiácea, rubiforme, assando dentro
da sua beca cheia de cordões e preguinhas, autorizou. O velho encheu o peito de
ar. Explicou que na vida tivera quatro paixões: a rádio, a columbofilia, a
poesia e as mulheres. Depois, abriu os braços, temi que ao largar a bengala se
estatelasse no chão, fez da sala de audiências palco e debitou uns versos mal
amanhados sobre uns olhos castanhos. Agradeci-lhe, no fim, como me
competia, triste com a minha sina: só os velhinhos têm apreço pela minha
pessoa.
2012/06/23
Dominó
Faço
a A5 e a Segunda Circular, já muito tarde, a cidade passa e são quase bonitos
os subúrbios assim, feitos de escuridão e luz; levo filhos e sobrinhos, dormem nos
bancos de trás, encostados uns aos outros, como peças de dominó: o Joaquim de
boca aberta, a Bia com a trança de rapunzel desfeita, a Dá esquecida da
tristeza com que acordou, choro porque preciso, tu não dizes que, às vezes,
também precisas de chorar, sou igual a ti, a mesma tristeza, mãe, a mesma
alegria, o Diogo com o corpo do meu irmão, africano sem o querer. Gosto de ser
tia tanto quanto gosto de ser mãe. Lembro o João que anda a acampar com o meu
pai por Espanha, repetindo gestos, visitando o Vale dos Caídos, outras memórias
do franquismo, lendo mapas, aprendendo, como eu aprendi, que o amor do meu pai
é um amor condicional, a mais pequena desilusão e perde-se. Lembro a minha mãe
e a minha tia, ando com vontade de comer sopa de tomate, disse a minha mãe,
hoje, à saída do Colombo, e chegou-me uma vontade de chorar tão grande. Se me
morrem os pais morro também. Sou filha. Mais do que mãe. Lembro o telefonema do
Pedro a meio da semana, tia, amo-te muito, disse para me confortar, a minha
irmã do outro lado explicando que ando sensível, a tia Ana anda tristonha, tens
de a animar. E animou. A sorte que tenho em os ter, a eles que são o meu
sangue, aos outros que chegaram: o Manuel, patrono querido que se fez cunhado, gosta
do Céline, do Jack London, do Durrell, do Proust, goza as minhas leituras; a Maria
de Lurdes, meio bronca, mas intrinsecamente boa, e isso é bem mais importante
do que saber falar de livros, de filmes, da merdice cultural, tão bem que nos
damos nas férias, falando de mundanices e bebendo minis ao final do dia enquanto
cozinhamos para os nossos filhos. Como se pode viver de costas voltadas para a
família? Somos como peças de dominó. Caindo uma, sou sempre eu a cair, caímos
todas.
2012/06/22
Refeitório
Ao
meio dia e quinze estou sentada junto do balcão da fruta, de frente para a
linha de servir, a apreciar as movimentações dos que chegam e dos que estão, a
Fátima serve o peixe e a dieta, a Rosa cuida da fruta e do prato de menu, a
chefa, fascista do pior que há, cheia de vitiligo nos braços e na carranca de
superior hierárquica, serve a carne com uma soberba que espanta, medindo as
fatias de lombo assado, põe e tira, tira e põe, confirma a grossura à
contraluz, a medir, a sentir o peso, não vá descuidar-se e exagerar na dose do
mini-prato; a mim, que pouco como, não me causa mossa, não sei, porém, como
ainda ninguém lhe atirou com a avareza à fronha medonha. O rapaz das arcadas já
chegou. Está em frente da vitrina das sobremesas, mãos nos bolsos, hesita entre
uma gelatina de morango e uma bavaroise esbranquiçada de ananás. Vindo das
entranhas do edifício, chega, entretanto, o mefistofélico que me deixou há uma
semana um bilhetinho no tabuleiro. Desde esse dia passei a ter-lhe nojo, um
asco incontrolável de mulher esmagada. E, no entanto, não foi desagradável, nem
mal-educado, nem sequer rude. Limitou-se a convidar-me para tomar café. O
mefistofélico conhece o rapaz das arcadas, talvez trabalhem na mesma direcção,
pergunta-lhe o que anda a ler e olha-me pelo canto do olho. O rapaz paga a refeição e
senta-se na minha mesa, quatro lugares de intervalo, fico numa ponta, ele
noutra. Há meses que é assim. Costumava sentar-se perto da porta da saída, um dia sentou-se na minha mesa. Cumprimenta-me com um aceno breve, gesto que mal
se nota. Espio-lhe as leituras abertamente, esta semana anda a ler a história
universal da infâmia. Engulo a sopa de legumes e uma tacinha de arroz doce, por
vezes, distraio-me da leitura para falar à Rosa que tem família no Catembe e em
Mapusa. O rapaz come o menu completo sem nunca tirar os olhos do livro, uma
concentração que me aflige. Saberá ele que a Rosa se chama Rosa e que a Fátima,
viúva alegre, chorou mais a morte do caniche preto do que a do marido? Saberá
ele que a chefa do vitiligo tem uma neta chamada Virgínia Estefânea? Não sei.
Só sei que lemos juntos ao pequeno-almoço e, juntos, continuamos a ler durante a hora de almoço. Depois, até voltarmos cada um à sua secretária, ele senta-se a ler na ruidosa sombra das arcadas do edifício, eu vou escutar o terço na igreja ao lado. Temos, eu e o rapaz das arcadas,
a relação perfeita. Fazemos muita companhia um ao outro. Estamos solitariamente
acompanhados. Ou acompanhadamente sós. Qualquer coisa do tipo. É o
silêncio que nos une.
2012/06/20
Nós
Faz hoje um ano que tomei uma caixa de Xanax, disse a mulher ao empregado
do bar. Depois calou-se, estranhando as palavras que se tinham soltado da sua
boca. Nunca ninguém lhe falava desse dia. Nem o marido. Nem os irmãos. Nem os
pais. Nem a única amiga que tinha. Era como se não existisse. Como se outra, que
não ela, tivesse naquele dia rondado o bairro de Chelas à procura de espantar a
dor para os homens que, sonolentos, despertavam para a manhã. Como se outra,
que não ela, tivesse escutado os renhaus dengosos que as mulheres lhes lançavam
das janelas dos prédios de habitação social. No fundo, aquele dia só existia
para ela, para mais ninguém. Por isso o celebrava sem que os outros soubessem,
bebendo ao final do dia, num bar da rua de São Paulo. O empregado do bar voltou
e pousou no balcão um copo triangular, com gelo moído e hortelã fresca.
Sorriu-lhe de forma profissional, asséptica, como a querer dizer-lhe olhe que
eu também tenho os meus problemas, não estou com disposição para confissões.
Mas a mulher não o percebeu. Ou fingiu não o perceber. É triste uma pessoa falhar
até na morte, não acha? E, sem esperar pela resposta, começou a chupar o sal dos bordos do
copo.
(Faz hoje precisamente seis anos que tentei matar-me e, hoje, o médico da medicina do trabalho disse que eu era uma mulher bonita, tem três filhos, dizia, uma profissão, mas tantos nós por desatar. Aconselhou-me psicanálise. Não quero desatar os meus nós, gosto deles assim, cegos, brutos, alimentam-me. Tive vontade de o mandar para o caralho.)
2012/06/17
Pau de cabinda
Ao final da tarde, andei na internet à procura de consultas de
sexologia clínica. Encontrei uma no Hospital
Júlio de Matos e outra em Santa Maria. Opto por ir a Santa Maria, dispenso o
estigma do Júlio do Matos, ser frígida não é bem o mesmo que ter um parafuso a
menos. Tenho os parafusinhos todos. Tenho a lucidez de perceber quem sou. Fiquei muito contente com a minha decisão,
dizem-me que é importante procurar ajuda para os problemas que nos vão surgindo
na vida, talvez haja um equivalente do viagra ou do pau de cabinda para as
mulheres; senti-me invencível, tanto que, apesar de estar no segundo dia da menstruação,
dia de hemorragia forte, meti um tampão plus, sem aplicador, enfiei-o bem na
fundura da minha vagina, lavei as mãos e fui correr.
2012/06/16
Aninhas e os dois amores
Aninhas,
submissa e abnegada, dava-se a muitos homens, mas amava apenas dois. Um loiro,
outro moreno, como na canção. Era feliz durante a noite, enquanto sonhava: deitava-se
com um, acordava com outro. Despertava aliviada por nenhum desses homens a
amar.
2012/06/14
Morte santa (1)
A um canto, num cadeirão de napa, um homem dormia, estiolado,
mãos de trabalho, rugosas, cheias de cortes, dedos inchados, unhas brancas de
cimento; viera para cumprir a obrigação que se impunha, apresentar os seus
sentimentos, dizer duas palavras à viúva, explicar-lhe que, no dia seguinte, por
se iniciar a cofragem na obra, não poderia vir para o funeral. O cansaço,
porém, fizera-o sentar-se no cadeirão, adormecera em pouco tempo. Dormia
profundamente há já meia hora. Sornava sem alarido. Sentadas, junto de uma
janela, como corvos espiando o bosque, duas velhas, casacos de lã escura, pés
enfiados em pantufas, murmuravam rezas novas. Negrume de mulheres sós,
escuridão funda e imensa. Estavam as velhas de olhos secos, mas expressão de
pesar, como convém nestas ocasiões. Em lugar de destaque, a viúva, mãos postas
no regaço, lábios tensos, parecia aliviada. Mulher indistinta, anódina, sem
traços ou marcas, quase invisível. Ao centro, enfiado num caixão de pinho
barato, recamado de cetim branco, o brilho dos tecidos baratos iluminando o
velório, estava o morto, corpo robusto, rosto descoberto, vestindo um fato de
três peças; nos pés, os sapatos que levara ao casamento da filha mais velha.
Quando alguém chegava, dirigia-se à viúva, dizia breves palavras de consolo,
partia pouco depois com a satisfação de uma obrigação cumprida. Quem chegava
não olhava o morto. Ninguém se abeirou sobre o caixão para o chorar ou ver pela
última vez o seu rosto. Homem mau, de costumes beras, nascera com a maldade no
corpo. Viera para o prédio muito novo, sem passado, nem lembranças, casado com
aquela mulher, trabalhava conforme calhava, um dia aqui, outro acolá.
Taciturno, pontapeava gatos, cães e crianças que se
atravessassem no caminho, bebia muito, arranjava sempre zaragatas,
engalfinhava-se em cenas de pancadaria, ficava com olhos inchados, equimoses,
chagas abertas que custavam pouco a sarar, passados dois ou três dias aparecia
como novo, entrava no café, pedia um copo de vinho, depois outro e mais outro.
A ruindade parecia ter nele um efeito regenerador, o diabo que lhe vivia no
corpo tratava-o com ligeireza mágica, punha-o bom num instante, assim,
recomposto, sem marca de humana fragilidade, podia voltar a ser simplesmente
mau. Tratava a mulher à pancada, as filhas também. Às vezes, trazia-as para a
escada do prédio para lhes bater à vista de todos. Suas putas, suas grandes
putas, ia dizendo enquanto lhes batia, as mulheres agachadas, mãos a proteger a
cabeça, acostumadas àquilo, incapazes de se sentirem vítimas, aguardando apenas
que se cansasse e recolhesse ao apartamento. Que a morte o tivesse vindo
buscar assim, ligeirinha e benevolente - um ataque súbito enquanto dormia em
frente do televisor, espumou da boca, levou as mãos ao peito, esperneou um
instante, soltou dois gritos mudos e foi-se – era coisa que indignava muita gente.
Quando se soube da notícia, pela manhã, houve até quem lamentasse ter tido uma
morte assim, devia ter sofrido como a vizinha do rés-do-chão esquerdo, o
carcinoma lento sugando-lhe tudo, desfazendo-a, arrancando-lhe o estômago e as
tripas, deixando-a liquefeita por dentro; gemeu a coitadinha durante dois meses
agarrada a um rosário da terra santa, abençoado por um bispo brasileiro, que
encomendou através do canal televisivo de uma igreja evangélica neopentecostal.
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