2012/05/08

El enanito (5)


Parou um bocadinho. Estava cansado. Ele falava, falava. Eu escutava, escutava. A Moranguita corria, corria. O meu amigo alçou a perninha curta, pôs-se em biquinhos de pés e, antes que pudesse ajudá-lo, dando impulso ao corpo atarracado, sentou-se na bagageira da Hiace. Depois, baixou a voz e explicou-me que resolvera abandonar em definitivo a indústria pornográfica, já não queria ser uma porno star, não estava para isso, não fora só a humilhação de o terem trocado por um burro, chegou o bicho como se fosse uma estrela, vagaroso e arrogante, puxado por uma arreata do mais macio couro, havia uma meda de feno chileno à porta do estúdio, para lhe encher o bandulho depois de cada cena, era sobretudo por estar farto de contracenar com mulheres de estatura maior. Cansava-se muito. As actrizes pornográficas, mais do que as outras, à conta de tanto enchimento e recauchutagem, eram autênticas cavalonas; injectavam-se com silicone, colágeno, às vezes, até com gordura animal, sobretudo de porco, que encomendavam pela internet, chegava um kit com seringa, duas bisnagas de sebo e um livrinho de instruções, não custava nada, só era preciso inspeccionar bem o produto antes da aplicação, às vezes, ganhava verdete, assim umas manchas jaspeadas que indicavam estar fora do prazo de validade. Pois essas mulheres insufladas tinham corpos que eram uma longura, não acabavam, intermináveis como o deserto do Kalahari e gelados como a tundra gronelandesa, nem imaginas, as mamas eram verdadeiras montanhas, as nádegas têm-nas infindáveis, gelatinosas, mas redondas e colossais, as vaginas são secretas, mas no pior sentido, fundas, buracos negros, autênticas cavernas, uma pessoa é capaz de se perder lá dentro e nunca mais ver a luz. 


Por exemplo, Ana Clara -  tanto que gosto de ouvi-lo dizer o meu nome! - para que tenhas uma ideia, numa cena de preliminares lambidelas, das mais subtis às mais porcalhonas, eu levava uma eternidade a chegar do dedinho do pé ao lóbulo da orelha. Amarinhava, lambia, beijava, chegava cansado lá acima, estourado, lábios dormentes; língua seca, sequinha, áspera como um esfregão verde da loiça, o que não é nada bom sinal para quem sofre de sialorreia. Quedei, achando que, pobrezinho, contraíra alguma doença venérea, gonorreia, sífilis, pior, condiloma, imaginei-lhe a genitália cheia de verrugas, lesões, a glande recamada de excrescências cor de terra, ele percebeu a minha preocupação, explicou que não era nada disso, sialorreia, Ana Clara, produzo muita saliva, salivo excessivamente, então tu não sabes que ando sempre com um lencinho no bolso para limpar os cantos da boca?

 Era por isso, por causa dessa fadiga, que, por mais estimulantes que lhe dessem a tomar, lhe custava a puxar o gatilho. Ali, no corpo da sua Moranguita, tudo estava mais à mão, concentrado. E, depois, isso é que era mesmo importante, amava-a. Foi aqui que achei que chegava de confissões. Enojou-me ligeiramente a conversa porque não acredito no amor. Acredito no amor parental, filial, fraternal, no amor que se baseia no sangue. Entre um homem e uma mulher não há amor. Há apenas rituais de acasalamento, uns breves, outros longos, capazes de durar a vida inteira. Tenho pois um leve desprezo por quem ama, mais ainda por quem desespera por não amar. Em todo o caso, para não o melindrar, disfarcei o enfado que a conversa me provocava. Pedi-lhe que chamasse a Morangita, tivera tempo mais do que suficiente para desentorpecer as pernas, tardava, ainda tinha de ir buscar os miúdos a Caxias, levar a do meio a uma festa de anos naquele centro comercial novo perto da Falagueira e passar por uma drogaria a comprar ácido muriático para a minha empregada limpar as juntas dos azulejos. Ele a falar-me da anã contorcionista, do burro de ouro, de sialorreia, do seu fracasso nos filmes pornográficos; eu a falar-lhe de filhos, de festas de aniversário em centros comerciais, da limpeza das juntas do chão da minha cozinha. Tive noção do remanso que é a minha vida e, naquela tarde, por breves instantes, senti um saracotear por dentro, vontade de chorar. Existência como a minha não se devia admitir.

2012/05/07

El enanito (4)


Fiquei ensimesmada, a pensar como se conjuga o contorcionismo com o prestamismo, sul-americanices, concluí, coisa de povos que ainda não evoluíram o bastante para chegar ao patamar da seriedade, do rigor, das contas certas, do défice controlado, tamanha liberdade e imaginação já não se usa por cá. Apaixonei-me mal a vi, continuava o meu amigo, vamos casar pela igreja, arranjar empregos, poupar para alugar um T1 e comprar dois passes sociais. Foi então que a sua Moranguita largou a fugir entre os carros, preciso dar às pernas, gritava num espanhol açucarado que me encantou, fonética cheia de modismos, quase parecia italiano, os trópicos nas línguas mãe dão-lhe outro sainete, um travo de rebelião de dígrafos e fonemas, até parece que as letras são gente. Porém, quando a vi em correria descontrolada, feliz por recuperar a marcha, começou a palpitar-me o coração, tal e qual como quando vou de passeio com o meu filho mais pequeno e o patife me larga a mão ao atravessar à rua. Temi que se perdesse ou, pior, tão pequenita, algum condutor, a bagageira cheia de malas, a pressa de chegar a casa, em manobra de arrecuo, a não visse e a atropelasse. A tragédia que seria. O meu amigo, percebendo a minha inquietação, sossegou-me, não te preocupes Ana Clara, a Moranguita está muito habituada, vivia numa urbe furiosa, cheia de chevrolets e cryslers, apesar de pequena, é mulher que nunca passa despercebida. Mudou de assunto com rapidez, nem imaginas a quantidade de pretendentes que tinha por lá, quando a conheci, andava a ser cortejada, mas à séria, com flores, mails dengosos e caixas de bombons recheados com creme de marula, por um protésico que ganhava rios de dinheiro a fazer dentaduras caninas; havia também o padre da sua paróquia, rapaz novo, empenhado na conversão dos infiéis, muito pior do que o protésico dentário, nunca me enganou, eu bem via como se animava quando levava a minha Moranguita para a confissão. Andava a tentar convencê-la a ir na procissão da Nossa Senhora del Bueno Parto, em cima de um estrado de tabuinhas, a fazer as vezes da santa, dizia que seria um quadro vivo da virgem santíssima, coisa nunca vista, havia de comover multidões, trazer a paz aos corações malsãos; tudo sem grande dispêndio, já que era exactamente do tamanho da imagem que estava no altar da igreja, servia-lhe a túnica branca, com cercadura dourada e também o véu que parecia feito de encomenda, não precisava de nenhum arranjo, por outro lado, não pesava mais do que a imagem feita em marfinite, podia usar-se o mesmo estrado de tabuinhas. O padre ainda lhe ofereceu uma caixa de bombons com recheio de creme de avelã. Ela não aceitou, para já, por gostar muito mais de bombons recheados com creme de marula, depois, porque lhe expliquei que não autorizava tamanho disparate, era o que mais faltava a minha Moranguita vestida de santa, a tarde inteira sob o sol abrasador, passeando por calles apinhadas de gente, mãos de velhas más, de bêbados, de tarados recalcados, de mães de família e de empregados bancários, a quererem tocar-lhe o manto para se livrarem da degenerescência e do pecado.

2012/05/06

El enanito (3)


Estava eu sentada de novo no banco desconfortável, lendo o livro que trazia dentro da mala, obra aclamada de um escritor suíço morto há pouco, coisa séria, densa, cheia de referências literárias e deambulações intimistas, fazendo um esforço para ler duas frases seguidas e as compreender, quando, finalmente, vi chegar o meu amigo. Vestia bermudas, calçava umas alpercatas coloridas que lhe sobravam nos pés, chinelava, por isso, perdera o pouco cabelo que tinha, chegava cansado, via-se bem, o rosto feio sulcado por muitas rugas finas, percebi que passara as passinhas do algarve lá pelas américas. Trazia pouca coisa, arrastava apenas um trolley médio que rolava devagarinho, chiando, pela rampa da saída e, coisa estranha, um cacho de bananas debaixo do braço. Corri para ele, meu bijouzinho, meu rico enanito, finalmente voltaste; abracei-o e, por hábito doméstico, levantei-o para o pegar ao colo, tal como faço com os meus filhos mais pequenos, senti-o, porém, espernear furiosamente, põe-me no chão, se faz favor, ordenou com uma frieza que não lhe conhecia. Obedeci, envergonhada do meu gesto. Baixei-me e, de cócoras, fechando os olhos, preparei-me para o beijar. Fiquei, no entanto, de boca à banda, o beijo perdido no espaço cosmopolita da aerogare. Sabes, Ana Clara, vim acompanhado, justificou-se. Estranhei a conversa, olhei em redor e não vi ninguém. O meu amigo, antes que pudesse perguntar-lhe pela companhia, começou a andar em direcção ao parque de estacionamento à procura do meu carro. Tenho uma carrinha velha, uma Toyota Hiace cor de ferrugem que dá nas vistas, herdei-a de um tio que era construtor civil e a usava para transportar o pessoal para os prédios que construía na outra banda, Corroios, Seixal e Coina; é uma carrinha antiga, gasta muito gasóleo, deita fumo preto ao arrancar, custa a estacionar e, sobretudo, embaraça os meus filhos quando me vêem chegar ao portão da escola onde uma manada de porsches cayennes espera a saída das crias. Não é uma viatura adequada ao meu bairro, nem sequer à minha rotina, mas não sou capaz de me desfazer dela. Razões sentimentais. Na verdade, gostava muito do meu tio. O meu amigo parou quando finalmente topou com a carrinha estacionada entre um mercedes de estofos de couro e um smart amarelo, conhecia-a bem porque, às vezes, por desfastio, para não enjoarmos da cama estreita do quarto 27 da Pensão S. Miguel, acabávamos a tarde em cabriolices lá dentro. Olhou em volta, com um ar muito comprometido. Só tínhamos dinheiro para uma passagem, explicou e a voz tinha uma quentura, certos arabescos e espirais, que eu também não conhecia. Curvou-se sobre o trolley, fez deslizar o fecho, abriu o saco e mostrou o conteúdo: era uma anã surpreendentemente pequena, vinha encolhida, dobrada sobre o corpo adormecido, parecia um feto aconchegado no ventre materno. Abriu os olhos e saltou do saco com desenvoltura, ajeitou a saia e explicou que trazia as pernas trôpegas de vir encolhida tantas horas dentro da sacola do companheiro. Uma anã proporcionada, sem cabeçorra, sem pernas curtas, sem braços curtos, mínima, ínfima, dava-me pela barriga da perna, muito bonita, cheia de curvas, parecia uma bonequinha. É a minha companheira, chama-se Maria Ivone, mas eu chamo-lhe Moranguita. Conhecia-a numa casa de penhores, onde trabalhava como contorcionista. 

2012/05/05

El enanito (2)


O regresso do meu amigo animou-me. Costumávamos dar belas passeatas ali pela Almirante Reis, encontrávamo-nos pelo meio-dia na esquina do Banco de Portugal, descíamos a avenida até ao Martim Moniz, comíamos qualquer coisa ao balcão, era, quase sempre, um prego e um copo de vinho verde no quiosque do chinês vesgo, depois, subíamos de novo até ao Intendente à cata de prostitutas, heroinómanos, chulos, alcoólicos, velhas de pele curtida; olhava-os como se fossem objectos preciosos, raridades de feira, tirava notas numa agenda, o meu amigo ria-se do meu entusiasmo, mas não o estranhava, percebia que por ali passava a minha emancipação. No final, acabávamos a tarde na Pensão S. Miguel, no quarto 27, tinha uma cama estreita, que nos chegava; num varandim enferrujado, duas floreiras com petúnias floridas disfarçavam o cheiro de mijo antigo que chegava da rua. Ele, a meio da entretenga, às vezes, dizia gostar de mim sobretudo por eu precisar da miséria dos outros para viver. Toda a gente tem válvulas de escape para aguentar a vida, mas a tua é de uma sofreguidão e tristeza que me comove. Deixava-o fazer análises, que fingisse à vontade ser discípulo de Freud se isso lhe enchia o ego, mas, sempre que se alongava na merdice psicanalítica, pedia-lhe que se calasse e para, com empenho, continuar a desempenhar o seu papel de cobridor. Eram umas tardes deliciosas, assim confortada, custava-me menos regressar ao meu bairro de empregadas brasileiras passeando pela tardinha meninas loiras de sobretudo azul, porsches cayenne rodando em avenidas floridas, como mamutes, gente saindo da mercearia gourmet com sacos cheios de iogurtes biológicos, massas frescas com tinta de choco, abacates, anonas e tomatinhos cereja.

Fiquei, pois, muito animada. Com sorte, voltaria a ter tardes de decadência e indecência para me consolar. Depois, há qualquer coisa no meu amigo anão que me atrai. Quando descemos a avenida de mãos dadas toda a gente nos olha: eu, razoavelmente portentosa - digo-o, sem exagero, por ser a mais pura das verdades -, rabo redondinho, cabelo muito preto, ondulando pelas costas, lábios vermelhos a desabrochar, olhos líquidos de fêmea infeliz; ele, pequenote, arqueado, hedionda cabeçorra, já meio careca, dentes tortos numa boca que saliva excessivamente. Devem achar que formamos um par insólito e estranho. O certo é que roubamos o protagonismo das putas retintas, dos bêbados, dos sem-abrigo que costumam parar à porta do talho do Karim que, jóia de rapaz, ao fim da tarde, faz panelonas de borrego guisado para matar a fome a quem a tem e ganhar o apreço de Alá. Roubar o protagonismo aos indigentes é sempre bom. Enche-me de vaidade e orgulho.

O meu amigo chegou no dia 1 de Maio. Passei uma hora em frente do espelho a escolher a indumentária certa, coisa simples, sem grandes arrebiques de sofisticação, mas que lhe acicatasse o desejo, entumecesse à primeira vista o mais que tudo e o fizesse esquecer o cansaço da viagem. Escolhi um vestido preto, justo, decotado, botas de cano alto. Pedi à minha irmã para cuidar dos miúdos. É que vou buscar o meu enanito ao aeroporto, expliquei. Ela aceitou prontamente, que não me preocupasse, ficaria com eles o tempo que fosse preciso, se precisares da noite para matar as saudades eu cá me arranjo, encomendo uma piza familiar, uma garrafa de dois litros de coca-cola e meto-os a ver filmes de enfiada. Agradeci-lhe. É uma irmã como não há outra, a minha única amiga, faz muita questão que, no meio da maternidade sufocante, arranje tempo para continuar a ser mulher. Quando cheguei ao aeroporto, estranhei um grupo de hare krishnas que para ali estava em cânticos mântricos. Esperei quase uma hora. Sentei-me num banco desconfortável e entretive-me a ver as carecas dos seguidores do guru indiano, tufos solitários de cabelos claros, dotis e kurtas cor de açafrão, dançavam e cantavam com a inépcia própria dos ocidentais tresmalhados. Senti fome, pedi uma empada de galinha e um sumol de laranja num café vazio. Enquanto comia lembrei-me das tardes na Pensão S. Miguel, ali ao lado do talho do Karim. O meu amigo anão, para além de sobredotado nas partes baixas, arrepio-me só de pensar, é um mineteiro muitíssimo experiente, sabe dar à língua, o que não é nada fácil de encontrar. Há homens que a entesam, um horror, fica aquele pedúnculo arroxeado, hirto e triangular, uma pichotinha de gato a fazer parelha com a outra, lambem-nos como se fôssemos um calipo de limão. Não se lambe uma vulva, não se percorrem os pequenos e grandes lábios, como se a língua, em vez de o ser, fosse um cajado de dureza hercúlea. O meu amigo anão nunca tentara metamorfosear sua língua, a sua mantinha a languidez própria e esperada de um músculo que não conhece a fadiga, a leveza do toque, sabia o que fazia e acertava sempre em cheio, nunca precisei de lhe agarrar na cabeça para lhe corrigir a pontaria. Enquanto ele cunilinguiava eu suspirava baixinho, mal se notava o meu prazer; na verdade, nunca fui mulher de exagerar, com urros, gritos e rolar de olhos, os meus folguedos. Atingia o orgasmo com intensidade, mas, ainda assim, nunca me libertava da envolvência. Pela janela aberta chegava o alarido dos miseráveis que, arengando, disputavam o segundo prato de guisado de borrego do Karim. 

2012/05/04

El enanito (1)


O meu amigo anão telefonou-me a semana passada de Buenos Aires. Contou-me as novidades. Tivera sucesso na indústria pornográfica. A vida correu-lhe bem durante os primeiros tempos. Mas, depois, teve assim uma espécie de esgotamento, passou a ter dificuldades de hasteamento, custava-lhe muito a enrijecer o instrumento. Ainda lhe deram a tomar uns comprimidos a ver se a coisa se compunha. Porém, no momento da verdade, estava sempre de mangalho encolhido, uma serpente velha, sem serventia alguma. O realizador decidiu tirar-lhe o protagonismo. Meteram-no num filme de furry fandom, cheio de figuras híbridas; ele de figura secundária, usava uma bandolete de crina, calções justinhos de cabedal e botins a fingir de cascos de cavalo. A princípio, não se importou com a mudança: dava descanso ao seu monumental instrumento, estava para ali, só tinha de ser passeado por uma gorducha que usava um chicote com brandura; às vezes, relinchava. O pior é que os botins com forma de casco apertavam-lhe muito os penantes. Eram tão apertados que a determinada altura lhe pareceu que os pés encolhiam, passou a sentir tonturas e, constantemente, uma sensação de desequilíbrio durante a marcha. À noite, tinha pesadelos em que aparecia vestido de quimono, olhos rasgados de chinesinha, os pés minguando, minguando, cada vez mais pequenos, pés de lírio entrapados em sapatos de cetim vermelho. Percebeu que se continuasse a fazer de cavalgadura miniatura, a usar os detestáveis botins, em breve, deixaria de andar. Foi explicar ao realizador que não aguentava tamanhas dores, não estava para ser pónei a vida toda, a bandoleta ainda vá que não vá, agora as botinhas de casco nem pensar, ia-se embora. Julgou que o realizador reconsiderasse, lhe arranjasse outro papel, afinal o seu primeiro filme El enanito e las siete monjas peludas fora um sucesso. Um anão, melhor dizendo, um enanito como ele, tão bem apetrechado, não era nada fácil de encontrar.

Para sua surpresa o outro aceitou sem mais a sua demissão. As figuras híbridas já cansavam. Homens touros, centauros, harpias. Estava tudo visto. Era um entusiasta da cultura clássica, decidira fazer uma adaptação livre do asno de ouro e arriscava usar um burro a sério. Já tinha em vista um burro abissínio, raça de robustez provada, erecto, o burro abissínio era animal para ter um pénis com quase cinquenta centímetros de comprimento e vinte de diâmetro. Engoli em seco, confessou do outro lado da linha o meu amigo anão, bem vês, não é fácil ser-se ultrapassado por um burro. E continuou: ainda me senti tentado a pedinchar que me deixassem ficar, nem que fosse a tomar conta do asno, porém, depois lembrei-me de que um homem, mesmo sendo anão, tem o seu orgulho e por isso despedi-me. Estou sem trabalho há mais de dois meses. Volto na próxima semana. Pedia-me, se não fosse muito incómodo, para o ir buscar ao aeroporto. Pensei com os meus botões: estás nas lonas, por isso regressas, vens-me pedir batatinhas depois de me teres partido o coração, ah, meu bijouzinho malandro, a tua sorte é que eu sou uma mulher apaixonada, incapaz de guardar rancor! Não te preocupes, lá estarei para te ir buscar, disse-lhe e desliguei o telefone com o corpo cheio de alegria.

2012/05/02

Aninhas e os sapatos de couro envernizado (2)


Ao final do dia, no caminho para casa, passou por uma sapataria que nunca lhe despertara interesse. Era uma sapataria que vendia apenas sapatos e malas italianas, estilo clássico, de irrepreensível sofisticação, modelos que podiam, sem causar embaraço, ser usados por rainhas e princesas em cerimónias de estado. Na montra, ao centro, estavam uns sapatos pretos de couro envernizado, simples, biqueira redonda, declive acentuado pelo salto de sete centímetros, perspectiva feminina de fuga. Entrou e pediu para os experimentar. Olhou a etiqueta do preço: trezentos e dez euros. Custava-lhe dar tanto dinheiro por uns sapatos, havia ainda nela laivos de uma juventude de punho erguido que lhe provocava um levíssimo sentimento de culpa por ceder à luxuria e à frivolidade. Pagou-os. Porém, mal saiu da loja, percebeu a irracionalidade do seu gesto. A compra de tais sapatos não era compatível com o seu desejo de morte. Para que queria uns sapatos de trezentos e dez euros se tomasse os setenta e três comprimidos, anti-depressivos, ansiolíticos, voltarens e clonixs, que estavam dentro da caixinha púrpura? Sentiu-se estúpida. Acontecia-lhe muitas vezes sentir-se assim, estúpida, ridícula, com vergonha da sua angústia, por não a ter coerente, estruturada, e, sobretudo, consequente. A verdade, porém, é que se tomasse os comprimidos corria o risco de não gozar os seus sapatos de couro envernizado. Talvez a mãe os escolhesse para os empregados da agência funerária lhos calçarem no funeral; deitada no caixão, numa ponta, um rosto morto de maquilhagem retocada, na outra, o brilho dos sapatos pretos. Ir a enterrar com uns sapatos italianos de trezentos e dez euros parecia-lhe um desperdício. Ou pior, muito pior, talvez o marido, vendo-os novos, a etiqueta a assegurar a genuinidade do couro, o luxo do produto, a sola por estrear, os oferecesse à namorada que certamente arranjaria para o ajudar a tomar conta dos dois rapazes. Aninhas tentou imaginar a nova namorada do marido. Unhas rectangulares, pintadas de vermelho, sobrancelhas aparadas, ordinária sem ter consciência de o ser, comum, anódina, levando os seus sapatos italianos na linha azul do metro, a caminho de um salão de estética dos subúrbios. Abriu a arcada das narinas e bufou brandamente.

Pela tardinha, quando chegou a casa, o filho mais novo pela mão, a primeira coisa que fez foi deitar fora os comprimidos da caixinha púrpura. A água da sanita tingiu-se de rosa clarinho por causa do revestimento entérico das cápsulas grenás que a mãe tomava para a artrite reumatóide. Depois, mudou de roupa e calçou os novos sapatos. Olhou-os e a elegância  era tamanha que lhe pareceu que os pés não lhe pertenciam. O salto acentuava a curva da sua perna. Apesar de bonita, Aninhas não suscitava desejo, paixão ou amor. Era apenas um valor seguro. A sua beleza, tal como a sua angústia, era ridícula e triste por ser inconsequente. Aqueceu o jantar, estudou geografia com o filho mais velho, leu várias histórias ao mais novo, despediu-se do marido que acabava a sempre o dia a ver séries de investigação criminal. Sempre com os sapatos do couro envernizado calçados. Só os descalçou quando se foi deitar. Nessa noite dormiu descansada, levou o sono até de manhã, sem espíritos de olhos doces, sem precipícios, sem nada.  

2012/05/01

Aninhas e os sapatos de couro envernizado (1)


Espíritos de luz perseguiram-na durante muito tempo por florestas e precipícios. As fantasmagóricas aparições eram parecidas com os seus filhos, as mesmas feições, corpos ainda tenros, olhos doces, redondos, bocas carnudas. Queriam abraçá-la. Fugiu-lhes durante toda a noite. Acordou cansada de tanto fugir. Levantou-se a custo. Entrou na casa de banho e evitou olhar-se ao espelho. Abriu o armário. Tirou uma caixinha púrpura onde guardava os comprimidos que roubava à mãe. Aninhas, em certos assuntos, era uma mulher racional, sem pinga de hesitação ou amedrontamento. Sempre que visitava os pais, inventava uma desculpa para ir ao escritório, abria o armário dos medicamentos, tirava um ou dois comprimidos das lamelas prateadas que a mãe organizava em tomas diárias, necessárias para o tratamento de várias doenças: depressão crónica, hipertiroidismo, diabetes, artrite reumatóide. Sentada na sanita, as calças do pijama enroladas no chão, o cheiro adocicado da urina a espalhar-se pela manhã, pôs-se a contá-los, setenta e um, setenta e dois, setenta e três, era já um cocktail de considerável letalidade, para além de anti-depressivos e ansiolíticos, tinha também vários analgésicos, aqui estão cinco clonixs e sete voltarens, não servem para matar, mas sempre ajudam à festa. Era assim, exactamente assim, que pensava. Estava a contar os comprimidos, questionando-se sobre a eficácia da dose, quando a voz do filho mais novo, chamando-a, chegou do quarto. Escondeu a caixinha no armário, atrás de uma embalagem de tampões. Arranjou-se, deixou os filhos na escola e foi trabalhar. À hora do almoço, comeu uma sopa de nabiças e um mini-prato de arroz de polvo. Volta e meia, lembrava-se da caixinha púrpura com os setenta e três comprimidos. Não tinha ainda tomado a decisão de os tomar, mas aliviava-a saber que os tinha ali, à mão de semear, prontos a livrá-la de uma angústia maior.

Marvin Gaye



Lucy

Li, por estes dias, um livro do Coetzee. Lá para o meio do romance há uma violação brutal, primitiva, africana no pior sentido, a fazer lembrar o tal profeta Joseph Koni de que ontem falava o jornal. A violência da cena, é muita, também é dada pela reacção da vítima, uma jovem mulher, que, não sendo assumidamente lésbica, prescinde da companhia dos homens. Essa mulher aceita a sujeição ao sujeito soberano. É essa inicial passividade, motivada por razões ideológicas, que, mais do que a violência física, violenta o leitor. É bom escritor, o Coetzee, dos que mais gosto de ler. Mas, consumada a violação, quando, em meia dúzia de linhas, se debruça sobre, como lhes chama, os assuntos de sangue das mulheres - menstruação, parto e violação - escreve o seguinte: violar uma lésbica é pior do que violar uma virgem: é um golpe mais forte. Li, sublinhei, reli, tenho pensado muito no assunto e juro que ainda não percebi. Deve ser preciso ser homem, ter certo discernimento, para perceber.