Caminhamos lentamente. Os miúdos
correm mais adiante. No cruzamento da antiga farmácia, a minha tia estuga o
passo e fixa o caminho do cemitério. Deixa-se estar assim por alguns instantes,
parada, em silêncio, a olhar o horizonte. Depois fala: “Quando eu era pequena havia aqui duas figueiras muito altas. Lembro-me
de vir aqui com a tua mãe apanhar figos.” Sorrio e, ao beijá-la,
sinto o cheiro gorduroso da sua pele. Ao chegar ao cemitério, ergo-me na
ponta dos pés para alcançar a chave do portão. Por cautela, o coveiro da aldeia
deixa-a sempre no esconderijo que escavou no tronco de um pinheiro. Enquanto a tia
Dé se encarrega da limpeza da campa – já lá vem com um balde de água e uma
vassoura de cerdas rijas -, passeio entre os mortos. Cheiro as sebes de buxo, leio
os epitáfios, faço questão de ir ver as campas dos três anjinhos que morreram com leucemia, murmuro os nomes das mortas que
conheci, Umbelina, Eleutéria, Adosinda, Preciosa. A Adosinda atirou-se a um
poço. A Preciosa enforcou-se no limoeiro do quintal. A minha tia vai esfregando
a campa com a vassoura de cerdas rijas. Por mais que esfregue, as manchas pretas
não saem, apenas o verdete mais superficial desaparece. “Da próxima vez”, diz, erguendo a voz para que a escute, “é preciso trazer ácido muriático para limpar
estas manchas”. Levanto os olhos da campa da Preciosa. A conversa perturba-me.
A passagem foi demasiado abrupta. Há pouco, a minha tia falava das figueiras da
sua infância, convocou um tempo distante e feliz, uma alegria branda chegou-me nesse
instante, o sol acariciou-me as mãos, o céu ficou mais azul, as iresines dos
canteiros esticaram-se mais do que é costume, mostrando-se, senti vontade de
chorar. Agora, a minha tia levantava a voz e pronuncia a palavra “ácido muriático”. Sempre que oiço falar
em acido muriático, lembro os quatro da vida airada queimando as pedras do
pátio, mas também uma reportagem que vi há alguns anos. Um rapaz amava muito a
sua namorada e por amor, quando esta o quis deixar, amarrou-a ao tronco de uma
árvore e lançou-lhe ácido no rosto. Borbulhou o rosto da rapariga e, para
sempre, ficou marcado pela triste loucura do amor. O amor é um grande risco, penso e, não sei porquê, aflora-me ao espírito o primeiro romance da Maria Teresa
Horta. Foi recentemente reeditado e chama-se “Ambas as mãos sobre o corpo”. É um título
tão mau que até arrepia. Volto-me para o portão. "E os miúdos? Por onde andarão?", pergunto à minha tia. Não me responde.
Está completamente concentrada no que está a fazer. Retira a gravilha da jarra
de alabastro. Sente a rugosidade das pedras nas pontas dos dedos que,
estranhamente, se tingem de um vermelho açafrão. Enfia as três hastes de flores
artificiais compradas na loja chinesa que fica perto do mercado de Santiago. Um euro e
oitenta, cada. Imitações grosseiras de rosas e coroas imperiais. Volta a
colocar a gravilha, calca-a com as mãos para que as flores fiquem bem presas. É
inconsequente a sua preocupação. As flores resistirão ao vento, mas daqui a
dias a cor estará comida do sol e o ar de ruína e abandono voltará. Os meus
filhos chegam por fim. Vêm ofegantes e, nas mãos, o Joaquim traz um raminho
mal-amanhado de papoilas, malmequeres do campo e calças de cuco, raríssimos
gladíolos silvestres que costumam crescer nas pastagens altas da ribeira.