Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2010/11/28
2010/11/15
Sapo
Entrei numa pequena loja de brinquedos didácticos por causa de um enorme globo que estava na montra. Ofuscava o resto das brincadeiras. Gigante, colorido, confortável; os mares, os oceanos, os continentes, toda a superfície terrestre – litosfera, hidrosfera - muito fofa, costurada em feltro de cores vibrantes. Quis o globo para o quarto do meu filho mais novo. O pobre herdou as sobras dos irmãos mais velhos, tem um quarto de refugo, sem grande gosto ou harmonia, um berço branco do ikea, uma cómoda de pinho, uma estante de faia desengonçada. Achei que o globo resgatava o meu desleixo decorativo para com o quarto do Joaquim. A bola mundo estava coberta de figuras pequeninas. Representavam os povos de todo o mundo, índios, muçulmanos, negros, esquimós, todos com corpo de feltro e uma fitinha de velcro nas costas para os meninos se entreterem a fazer corresponder os povos com os continentes. O objectivo do brinquedo era ensinar a paz, a harmonia, o respeito pela diferença.
A dona da loja (percebia-se pela modo como se vestia e pelo entusiasmo que punha nas explicações) era uma simpatia. Falou dos brinquedos que vendia. Madeiras coloridas, marionetas, jogos, lápis de cera gordos, puzles, bonecas que pano, nem um corpo de plástico se assomava naquele mundo maravilhoso de imaginação e criatividade, tinha tudo o que era necessário para estimular e motivar as crianças; os seus brinquedos despoletavam milhões de sinapses nas cabecinhas dos meninos. Torceu o nariz às grandes superfícies, aos corredores de brinquedos, aos plastificados cancerígenos das lojas chinesas. Eu calada, muito calada, sorrindo, que ando uma lástima, não me posso enervar, a lembrar-me do Joaquim a tratar dos nenucos da irmã, agarrado ao action man do mano João, a chamar-lhe senhor Zé, encantado com os a pistola que lhe comprei no hiperchina, a matar-me cada vez que me apanha na cozinha a descascar batatas.
A mulher disse-me o preço do globo terrestre. Arregalei-lhe os olhos e expliquei que ia pensar melhor no assunto, que é uma maneira cobarde de dizer nem penses que pago o que me pedes. A dona sorriu. Era muito simpática. Mas é que era mesmo. Preparei-me para sair. Reparei, então, que, atrás da porta de vidro, um enorme sapo de loiça me observava desconfiado. Espojado, viscoso, gordalhufo, fitava-me com olhos muito esbugalhados, ciente do papel fulcral que desempenhava no estabelecimento. Procurava o bicho perceber se a minha pele escura, os meus cabelos pretos, compridos, me incluíam em determinada categoria de indigentes. Ao passar, o horrendo bicho coaxou na sua linguagem batraquial qualquer coisa que me pareceu um mau-olhado. Levantei o pé, preparada para o pontapear. Mas o sapo fugiu, aos saltinhos, e foi prostrar-se no meio da montra, mesmo por baixo do globo de feltro. Fiquei a olhá-lo, estarrecida por a loja de brinquedos didácticos, a loja onde eu me preparava para comprar um globo para ensinar ao meu filho mais novo a paz entre os povos da terra, ter à entrada um sapo para escorraçar a ciganagem, esses malandros que não assimilam a decência da pobreza: compram playstations aos filhos e bolicaos com o rendimento mínimo social. Olhei a dona da loja pela última vez. Continuava a sorrir-me. Sempre a sorrir. Posso estar enganada, estou-o muitas vezes, mas tinha pinta de ser uma daquelas mães de esquerda – punha as mãos no fogo em como vota no bloco de esquerda - e tem os filhos, motivadíssimos, estimuladíssimos, espertíssimos, no colégio moderno.
A dona da loja (percebia-se pela modo como se vestia e pelo entusiasmo que punha nas explicações) era uma simpatia. Falou dos brinquedos que vendia. Madeiras coloridas, marionetas, jogos, lápis de cera gordos, puzles, bonecas que pano, nem um corpo de plástico se assomava naquele mundo maravilhoso de imaginação e criatividade, tinha tudo o que era necessário para estimular e motivar as crianças; os seus brinquedos despoletavam milhões de sinapses nas cabecinhas dos meninos. Torceu o nariz às grandes superfícies, aos corredores de brinquedos, aos plastificados cancerígenos das lojas chinesas. Eu calada, muito calada, sorrindo, que ando uma lástima, não me posso enervar, a lembrar-me do Joaquim a tratar dos nenucos da irmã, agarrado ao action man do mano João, a chamar-lhe senhor Zé, encantado com os a pistola que lhe comprei no hiperchina, a matar-me cada vez que me apanha na cozinha a descascar batatas.
A mulher disse-me o preço do globo terrestre. Arregalei-lhe os olhos e expliquei que ia pensar melhor no assunto, que é uma maneira cobarde de dizer nem penses que pago o que me pedes. A dona sorriu. Era muito simpática. Mas é que era mesmo. Preparei-me para sair. Reparei, então, que, atrás da porta de vidro, um enorme sapo de loiça me observava desconfiado. Espojado, viscoso, gordalhufo, fitava-me com olhos muito esbugalhados, ciente do papel fulcral que desempenhava no estabelecimento. Procurava o bicho perceber se a minha pele escura, os meus cabelos pretos, compridos, me incluíam em determinada categoria de indigentes. Ao passar, o horrendo bicho coaxou na sua linguagem batraquial qualquer coisa que me pareceu um mau-olhado. Levantei o pé, preparada para o pontapear. Mas o sapo fugiu, aos saltinhos, e foi prostrar-se no meio da montra, mesmo por baixo do globo de feltro. Fiquei a olhá-lo, estarrecida por a loja de brinquedos didácticos, a loja onde eu me preparava para comprar um globo para ensinar ao meu filho mais novo a paz entre os povos da terra, ter à entrada um sapo para escorraçar a ciganagem, esses malandros que não assimilam a decência da pobreza: compram playstations aos filhos e bolicaos com o rendimento mínimo social. Olhei a dona da loja pela última vez. Continuava a sorrir-me. Sempre a sorrir. Posso estar enganada, estou-o muitas vezes, mas tinha pinta de ser uma daquelas mães de esquerda – punha as mãos no fogo em como vota no bloco de esquerda - e tem os filhos, motivadíssimos, estimuladíssimos, espertíssimos, no colégio moderno.
2010/11/13
Outubro
Morri no princípio de Outubro. Enterraram-me num cemitério com vista para a auto-estrada do sul. Passei os primeiros dias entretida, inteirando-me da minha nova condição, descobrindo como é estar morta. Escutei o restolhar das folhas dos eucaliptos e pude fazê-lo durante longos minutos, concentrando-me apenas no ruído das copas, isolando-o do resto do mundo até se tornar insuportável. Vagueei por alamedas, paralelas e perpendiculares, olhando as campas, lendo inscrições, observando a estatuária: gárgulas, anjos, cristos lacrimosos, conchas de mãos piedosas. Cheirei as flores frescas das coroas fúnebres e desfiz com as minhas mãos invisíveis corolas frágeis. No princípio da noite, quando a escuridão era ainda clara, os portões do cemitério eram sempre fechados com estrondo. As mulheres vestidas de preto voltavam para os seus apartamentos de marquises de alumínio e sentavam-se sozinhas em frente do televisor.Uma quietude insuportável abatia-se sobre o lugar e eu voltava então ao meu corpo, deitado num caixão de cetim branco. Encaixava perfeitamente nele. Uma noite, porém, senti desconforto ao voltar a mim. O corpo inchara e eu sobrava dentro dele. Aninhei-me no canto esquerdo e procurei adormecer. Um reco-reco pequeno, um barulhinho persistente, fez-me despertar. Pensei que fossem térmitas alimentando-se do pinho do caixão. Abri os olhos. Vi duas lagartas gordas, brancas, cegas, sorrindo-me. Uma das lagartas tinha boca de ventosa e mordiscava a ponta esquerda do meu coração. Enervei-me. Não vivo sem corpo. Mesmo morta, preciso dele. Não encontro conforto na imaterialidade, só compreendo o que é concreto, comum, palpável. Enxotei as lagartas que fugiram como toupeiras. Decidi partir. Tentei ressuscitar que é a única maneira que conheço de largar a morte. Não consegui. É muito difícil. É preciso ser deus, filho de deus, parente de deus, amigo de deus, para o conseguir. Na manhã seguinte, estava eu entretida a observar o namoro de dois pardais, vi chegar pela alameda os meus três filhos. Não traziam flores. Vinham com olhos líquidos de abandono. Nessa noite, deitei-me nas ruínas do meu corpo, era já só ossos, os malares cavados, a carne ressequida. Ventava na arcada das costelas e o ruído desse vento perpétuo não me deixou adormecer. A morte pesou-me mais do que a vida.
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