O diácono foi um comunista feroz. Depois, não sei que lhe deu, converteu-se. Passou a ser um católico feroz. Tem um vozeirão grave que, por vezes, me assusta. E quando, muito sério, se envolve nas nuvens perfumadas do turíbulo parece um boi bafejante, resfolegando ruidosamente no altar. Acha-me bonita. Disse um dia que eu tinha uma beleza exótica. E enterrou-me os olhos na carne. Agradeci-lhe o elogio com um sorriso amarelo, amarelinho, e enfureci-me por dentro. Prefiro ser feia a ter uma beleza exótica.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2008/03/30
Avenida do Uruguai
Tive uma tia, chamada Lucília, que se matou. Atirou-se do sétimo andar de um prédio de Benfica. Era uma mulher apagada, de silêncios prolongados, com uma vida aparentemente calma. Enviuvou cedo de um funcionário das finanças e, por isso, vivia com uma filha na Avenida do Uruguai. Tratava da casa, ajudava na educação dos netos, fazia as compras na praça, preparava o jantar. Sempre em silêncio. Coleccionava a teleculinária e deitava-se depois de ver a telenovela. As manhãs de domingo, passava-as no cemitério, tratando da campa do marido. Levava-lhe flores frescas. Cravos aninhados em nuvens fofas de gipsófila. Lavava o verdete do mármore com um paninho embebido em vinagre. Gostava muito de frutas cristalizadas. Quando a visitávamos no apartamento da Avenida do Uruguai, a minha levava-lhe um cartucho de frutas comprado numa mercearia de Moscavide. No dia em que se matou, fez uma canja de galinha e deixou os anéis em cima da cómoda, para que ninguém lhos tirasse. Sempre estranhei a sua morte por ser uma mulher simples, com uma vida simples, de hábitos simples. Não sei porquê, há em mim o sentimento absurdo de que a infelicidade e o desespero são prerrogativas dos sensíveis, daqueles que se ocupam da espuma, do supérfluo. Suicidam-se os escritores, os pintores, as poetisas. Os que esperam demais da vida. O suicídio exige um grau de sensibilidade, discernimento e sofisticação que a minha tia Lucília não tinha.
2008/03/26
Magenta
O Gustavo fez-me comprar um casaco magenta cintado que, com sorte, usarei depois da desova. Pôs-me também a ler “A Casa Grande de Romarigães”, do Aquilino Ribeiro. Gosto do Gustavo. Tenho um fraquinho por homens fracos, ainda mais desesperados do que eu, que se besuntam com a vergonha do falhanço, que choram, com lágrimas grossas, a amargura das suas vidinhas e que se amedrontam perante a liberdade e o alívio. Não tomam comprimidos suficientes. Erram a veia que cortam. Não enchem os bolsos de pedras quando se atiram aos rios e às lagoas. Gosto do Gustavo por, em tudo, sobretudo na tolice e diletantismo, ser parecido comigo. Só me aborrece que beba.
Cérbero
Durante a adolescência interessei-me pelo Tibete. Li tudo o que me apareceu pela frente. Tirei notas num caderno de capa quadriculada que, mais tarde, no ramerrão das limpezas dominicais, perdi. Gravei os poucos documentários que passaram na RTP. Mostravam sempre caminhos de lama e janelas embaciadas que guardavam silêncios. Sublinhei, a lápis, a enciclopédia “Raças do Mundo”, comprada a prestações pela minha mãe no Círculo de Leitores. Os volumes, muito grossos, tinham lombadas verdes e destoavam, pela sobriedade, no meio do esparrame de memórias das viagens dos meus pais. Loiças de barro coloridas trazidas de Marrocos. Uma terrina de Limoges cheia de ramalhetes primaveris. Vidros coloridos de Itália. Latões cinzelados da Índia. Uma imitação de presa de elefante, minuciosamente trabalhada, comprada pelo meu pai a um guineense retinto na Baixa, ocupava lugar de destaque do móvel escuro da sala. Com o passar do tempo o meu interesse pelo Tibete desvaneceu-se. Ficou-me na lembrança o chá de manteiga de iaque, a poliandria fraternal e um sentimento vago de tristeza e desespero. A China aparecia-me, já nessa altura, nos primórdios da minha adolescência, como um monstro. Continua a sê-lo. Tornou-se, porém, numa criatura ainda mais medonha, um monstro de duas cabeças, que alia, num só corpo, o pior dos dois mundos.
2008/03/19
Yumeji's Theme
(dois homens aborrecidos falavam de livros na antena 2 e esta música surgia, atrás das palavras, como um murmúrio breve.)
Esmola
Um homem tira moedas de um saco de plástico e enfia-as nas caixas de esmola que se espalham pela igreja. As caixas são antigas, de madeira escura, com letras brancas a indicarem o propósito do gesto caridoso. Há-as para todos os fins. Para o culto. Para os irmãos necessitados. Para seminários. Para o jornal paroquial. Para a casa sacerdotal. Para o contributo penitencial. Há, também, uma caixa para as almas. É o que está lá escrito. Mesmo por baixo da ranhura onde se depositam as moedas e as notas, ao lado do cadeado, está escrito, a branco, “Almas”. Cada vez que o homem enfia uma moeda, os anjos dos vitrais largam as liras, as harpas, os violinos, e estremecem com o ruído que quebra o silêncio tumular da igreja. O homem pára. É então que um som cavo e arrastado surge das profundezas e fica a retinir nas paredes do templo. Ninguém parece estranhar. As mulheres que rezam o terço continuam a sua ladainha. O homem de bigode texano continua a rondar as velhotas de cabelo azul e violeta. A senhora da mantilha de renda branca, que se senta sempre na primeira fila, continua a contar a Deus as minudências da sua vida. Veio do mercado e as laranjas que traz no saco de plástico deixam no ar o cheiro invernoso dos laranjais do Arealão. As laranjas eram sumarentas, pouco doces e deixavam-me as mãos tisnadas. Olho, quieta, o anjo verde dos vitrais e lembro-me da prima Matilde, de lenço preto na cabeça, o xaile cruzado sobre a bata florida. Vivia perto dos laranjais, que cresciam em terrenos areentos, trazia no corpo entranhado o cheiro do fumo da lareira e tinha um filho, o Luis Carlos, rapaz moreno e bonito, dado a angústias profundas que, volta e meia, passava temporadas no hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Chamava-me priminha e eu gostava que ela me tratasse assim. Deixo os laranjais do Alentejo e volto à igreja onde habitam todos os anjos da cidade. O som cavo, medonho, arrasta-se por mais alguns segundos. São as almas penadas que lançam gritos desesperados das profundezas do purgatório. Exigem que o homem deposite algumas moedas na sua caixa. Só assim Deus poderá requisitar os seus processos ao celestial arquivo e reavaliá-los com vista a lhes franquear, ou não, a entrada no Paraíso.
(Na sua mensagem para a quaresma de 2008, o santo padre convida os católicos à ascética prática da esmola. E fala dos pobres. Ai, os pobres…)
(Na sua mensagem para a quaresma de 2008, o santo padre convida os católicos à ascética prática da esmola. E fala dos pobres. Ai, os pobres…)
Bacorinho
Lembro-me bem dele. Era sobrinho ou afilhado de um professor qualquer e isso conferia-lhe um estatuto diferente. Vinda dos subúrbios, debutando numa esquerda militante, muitas vezes levemente etilizada, olhava-o com certa distância e despeito. Nunca troquei com ele uma palavra. Sentava-se sempre nas primeiras filas do anfiteatro. Distante, calado, levemente seráfico, enfiado num pulôver vermelho, tirando notas. Loiro, de um loiro penugento, e anafado, fazia-me lembrar, já naquela altura, um bacorinho tenro, grunhindo para dentro as angústias de uma vida infeliz. Acho que escrevia com a mão esquerda. Não sei porquê. Imaginava para ele, como para todos os meus colegas, um futuro jurídico, brilhante e insuportavelmente monótono, e uma vida familiar regular onde não se confessariam afectos, não se admitiriam excentricidades sexuais, lambidelas genitais e outros devaneios, e os filhos se entregariam aos cuidados de uma empregada zelosa. Compadecia-me dele cada vez que o via atravessar os lúgubres corredores da faculdade de direito. Mais valia compadecer-me de mim.
(O Pedro Mexia foi, por sugestão do Bénard da Costa, o que, por si só, revela o seu merecimento e valor, nomeado sudirector da Cinemateca.)
(O Pedro Mexia foi, por sugestão do Bénard da Costa, o que, por si só, revela o seu merecimento e valor, nomeado sudirector da Cinemateca.)
2008/03/17
Bafio
Abro a porta. Apesar de terem passado poucos dias, sinto um cheiro estranho. É um cheiro bafiento, velho, de naftalina e humidade, parecido com aquele que o tempo deixa nas roupas que estão guardadas nas arcas de madeira que existem nos corredores das casas das nossas avós. Arcas ornamentadas com desenhos embutidos de gueixas submissas, levemente idiotas, que passeiam entre pinheiros e riachos mansos. Por cima dessas arcas há sempre um naperon de linha grossa e um mostrengo, em forma de jarra, cheio de camélias ou rosas de plástico. As avós guardam nessas arcas a roupa branca dos seus enxovais: toalhas de linho com aplicações em croché, lençóis bordados a ponto pé de flor, toalhas de rosto com monogramas e raminhos de azevinho bordados a ponto cruz. São peças que bordaram com infinito vagar quando eram novas e que guardam para ocasiões especiais que nunca acontecem. É o cheiro dessas arcas e dessas roupas que encontrei ao entrar hoje aqui. Sinto esse cheiro nas palavras que escrevi, alinhavos dos meus dias. Deambulo pelas divisões. Leio alguns textos. Salvo uma ou outra excepção, acho-os insuportavelmente pretensiosos, maus até. Uma merda. Como este que agora escrevo. Graças a Deus sempre fui boa na arte da auto comiseração. É um facto. Volto a sair. Fecho a porta.
Sombra
Estou numa casa que não é minha. É uma casa muito grande. Fica no coração da cidade. Deambulo por uma sala rectangular feita de recantos e nichos. Os candeeiros de mesa têm abajours de franjinhas. Lançam pedaços de luz frouxa pela sala. Caminho até uma estante que cobre, de alto a baixo, uma das paredes. Olho para os livros que se amontoam nas prateleiras. Invejo esta sala, esta casa e esta imensidão de livros. Caminho na direcção do terraço. Há algumas cadeiras e espreguiçadeiras espalhadas. A cidade espalha-se em casas baixas que se encavalitam umas nas outras como peças indisciplinadas de um dominó. O casario é branco. Aqui e ali, vejo abóbadas. As ruas são sinuosas e esconsas como as de uma medina árabe. Ao longe, recortado pela cidade, obediente e manso, vê-se o mar. Já vi este mar noutros sonhos. Até já o experimentei. Já entrei nele. Como se entrasse dentro de alguém. No meu sonho Lisboa tem mar. O caudal do rio aumentou. Inchou. Furioso, galgou a outra margem. De um trago, engoliu as terras do sul. Transformou-se em mar. Encheu-se de sal. Serenou. Deixou-se habitar por sardinhas, medusas, cavalos marinhos, carapaus, robalos. Há uma quietude morna derramada por todo o lado. Não se ouve nada nem ninguém. O dia morre. O crepúsculo tem cor e cheiro. É alaranjado. Cheira a hortelã, a peixe seco e a fruta madura. Melancias, figos e laranjas. Lisboa é o que não é. Ou é o que já foi. Ou o que poderia ter sido. Uma cidade de deserto e mar. Preenchida por abóbadas, cata-ventos, minaretes, fontes de água fresca e praças de sombras. Estou dentro do sonho, no terraço desta casa, que não é minha, e penso: quero ficar aqui, para sempre, suspensa neste tempo e neste lugar.
2008/03/14
Corações na Penumbra
Ao serão, vi o Corações na Penumbra, filme baseado numa peça do Tenesse Williams. Às tantas, grogue de paixão, o Paul Newman diz que o mundo se divide entre as pessoas que sentem prazer quando fazem amor e as que não sentem prazer quando fazem amor. É um chavão insuportável.
2008/03/12
PSD
O caldo entornou-se. Os cavalheiros tiraram as luvas e dão tabefes com a mão aberta. Os dedos ficam marcados no rosto. As críticas feitas pelo Rui Rio, pelo Pacheco Pereira, pelo António Capucho são graves, fundamentadas e directas. Responderam, do outro lado, com sobranceria e a falta de educação própria dos que chegam ao poder sem saber muito bem como ou porquê. A guerra foi declarada. É melhor assim. É preferível a guerra aberta às guerrilhas partidárias que se fazem em surdina, por corredores e bastidores, manipulando este e aquele, congregando esforços, pedinchando apoios. O confronto, aberto, permitirá clarificar posições, definir estratégias, gizar alternativas. Nada poderia ser pior para o PSD do que continuar a viver num clima de paz podre em que a mediocridade do líder, e dos seus cães de fila, se desculpa, a cada disparate, pelo facto de ter sido legitimamente eleito. É um embaraço cada vez que o Luís Filipe Menezes abre a boca. É um mal-estar constrangedor cada vez que o Santana Lopes aparece nos telejornais em périplos pelo interior do país. O clima de paz podre, em mim, fazia crescer o medo de ver o PSD tomado por um exército de Marcos Antónios, todos iguais, de óculos rectangulares de massa, barba de três dias, corte de cabelo duvidoso, insuportáveis na sua falácia política.
Folhado de salsicha
Logo pela manhã, ainda os bolos se apresentavam frescos nas vitrinas, falava a Lurdes da cafetaria com a menina Fátima da farmácia sobre a situação interna do Benfica. Dizia a Lurdes, que tem a voz baça, engrossada pelo fumo de milhões de cigarros, que o problema não é o treinador, até podia vir o Mourinho, nem os jogadores, o problema é a cambada de dirigentes que não tem uma política de rigor para o clube. Enquanto falava, a Lurdes manuseava com uma pinça os folhados de salsicha, dispondo-os em pirâmides, mesmo ao lado das empadas de galinha e das meias-luas de legumes. Via-se, pela tensão acumulada nos cantos da boca, rija, tesa, como um pedaço de cortiça, que a crise do Benfica a perturbava ao ponto de a fazer trocar os pedidos. Trouxe-me uma torrada aparada em vez do pão com manteiga que lhe pedi. A menina Fátima, que é belfa, escutava-a em silêncio, tão feia na sua bata branca, admirando o conhecimento profundo da outra sobre os assuntos da actualidade desportiva. Eu, se fosse uma mulher de coragem, saltava para o outro lado do balcão, amarrava a Lurdes com o fio cor-de-rosa que usam para atar as caixas dos bolos de aniversário e enfiava-lhe um folhado de salsicha pelos gorgomilos abaixo.
2008/03/09
8 de Março
“Pela vida, habituara-se a ver mulheres cansadas, estava farto de mulheres cansadas, até por não compreender a assustadora capacidade de se concentrarem em várias ocupações simultâneas e de violentarem o corpo até à exaustão”.
A Sala Magenta, Mário de Carvalho
A Sala Magenta, Mário de Carvalho
Supérfluo
“No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então de me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira a minha avó. Nesse em tudo estava o sexo. “Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.”
O Espartilho, Lygia Fagundes Telles
(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel na vida, no casamento e na cama. Teria evitado os pregos que trago enterrados na carne. Isso de uma mulher se achar no direito de ser feliz na vida, no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, percorrer as divisões, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, ajeitando as jarras de frésias e rainúnculos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)
O Espartilho, Lygia Fagundes Telles
(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel na vida, no casamento e na cama. Teria evitado os pregos que trago enterrados na carne. Isso de uma mulher se achar no direito de ser feliz na vida, no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, percorrer as divisões, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, ajeitando as jarras de frésias e rainúnculos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)
2008/03/06
007
Acordei sobressaltada com um barulho de rua. Não consegui voltar a adormecer. Pus-me a puxar para fora o sonho interrompido. É uma tarefa delicada. A partir da última imagem consigo reconstruir um sonho. É preciso paciência. Ir puxando o sonho delicadamente com uma pinça, roubá-lo às catacumbas escuras onde dormita e trazê-lo para a luz. São animais estranhos, os sonhos. Deitada na cama, vou olhando as imagens com atenção, procurando pormenores e detalhes, cheiros e cores. A certa altura aparece-me a imagem do meu pai. É normal o meu pai aparecer-me nos sonhos. Só que, desta vez, o meu pai é o James Bond. Eu estou apaixonada pelo meu pai. Não é bem paixão. Sinto-me, isso sim, sexualmente atraída pelo meu pai. Este sonho não tem nada de especial. É banal. Por isso mesmo me aborrece. Tem um significado comezinho: projecto nos homens, por causa da pila, do falo, do pénis, a imagem do meu pai. E é por essa razão que sinto culpa durante o acto sexual. Que miséria. Que falta de originalidade. Pelo menos, podia sonhar-me sexualmente atraída pela minha mãe, pelo meu hamster soviético ou pelo abominável António José Seguro. Mas não. Tinha de me sonhar sexualmente atraída pelo meu pai. É triste ser-se em estereótipo psicológico.
2008/03/05
Estearina
O Mariano Rajoy diz que reza quase sempre à noite e tem permitido a vergonhosa intromissão da igreja na campanha eleitoral espanhola. O Sarkozy pretende dar protagonismo às religiões, dizendo que “uma moral laica corre o risco de se esgotar quando não está apoiada na esperança que colmate a aspiração do homem ao infinito”. Quem é este palerma para falar de moral? O nosso Paulo Portas ainda não entrou nesta cruzada dos homens de bem, que confessam papar missas dominicais e ficar consolados com o cheiro a estearina das igrejas. Porém, volta e meia, também faz um ar compungido e finge que crê em Deus. Acredita quem quer na fé de pechisbeque destes homens. Perante a ameaça de um conflito civilizacional, em que um Ocidente laico se confronta com um Islão fanático, certa direita empenha-se em defender os valores matriciais europeus. Fá-lo, como sempre, da pior forma. Abdicando dos princípios basilares que, até ver, nos tornam melhores do que o resto do mundo: a laicidade do Estado e a defesa incondicional dos direitos do homem.
Pacheco Pereira
O Pacheco Pereira foi director do Público por um dia. Tenho um fraquinho pelo Pacheco Pereira há muitos anos. Gosto da inteligência e da frontalidade com que escreve e fala. Gosto sobretudo do uso que faz da liberdade. Há poucos homens livres. Gosto também de certa arrogância, do modo como encolhe os ombros e sorri quando o Jorge Coelho, sibilando as palavras, justifica cada gesto, cada política, cada opção, cada traque que o primeiro-ministro dá. Gosto do Pacheco Pereira mesmo quando discordo dele. E gosto da barba, do cabelo revolto, da gargalhada certeira, da pancinha, do olhar irrequieto. Se eu não fosse uma mulher de respeito, casada e mãe de dois filhos, atirava-me aos pés dele e jurava-lhe amor eterno.
Natureza
Nos jardins da fundação ouvem-se rãs. Há colmeias nas colinas de Chelas. Vejo uma fiada delas quando o comboio atravessa o vale. As hortas que ficam na beira da linha enchem-se de faveiras e ervilheiras. As alfaces desabrocham como rosas gigantes entre ruínas de gente e prédios de papelão. Os pássaros do meu bairro acordam de madrugada, numa algazarra primaveril que me faz chorar ao acordar. Acontece-me o mesmo com o som dos sinos. As manhãs são bonitas e claras. O rio enche-se de medusas e tainhas que se alimentam do lixo das águas. A natureza é linda.
Escápulas
Uma mulher de casaco azul, que escolhia laranjas, fez-me parar em frente da frutaria da avenida. O casaco era de um azul profundo, muito intenso, e envolvia-a da cabeça aos pés, aconchegando-lhe o corpo pequeno. Velha, usava os lábios finos esborratados de vermelho e o cabelo era fofo e branco como enchimento de almofadas. Nos pés trazia uns sapatos rasos de verniz branco. Um homem assomou-se de dentro da loja e cumprimentou-a. Reparei que tinha a pele muito vermelha e que o couro cabeludo estalado lançava pedaços de dermatite seborreica pelo pulôver azul-escuro. Pesou as laranjas e continuou a falar com a mulher do casaco azul. Olhei-os com a certeza de que seria incapaz de comprar e comer aquelas laranjas. Cada vez que metesse à boca um gomo havia de me lembrar das caspas gigantes do homem da frutaria. Despediram-se. Quando a mulher do casaco azul começou a andar ouviu-se um chocalhar de ossos. Um ruído estranho, de ossos secos, ocos, sem tutano, ossos mortos, batendo uns nos outros. Reparando no meu espanto, a mulher abriu o casaco azul e mostrou-me um esqueleto de ossos quase translúcidos, rendilhados e porosos, muitos certinhos e ordenados. Disse que ainda tinha medula nos ossos planos, sobretudo nas escápulas. Pronunciou a palavra “escápulas” muito devagar. Mastigou cada sílaba, mostrando-me os dentes certinhos da dentadura. Estavam manchados de baton vermelho. Es-cá-pu-las. Depois sorriu, fechou o casaco e continuou a andar.
2008/03/02
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