Salão
da Academia Recreio Artístico, ali na Rua dos Fanqueiros, onde geralmente anoitece mais
cedo. Os tectos do salão, de estuque trabalhado, estão pintados de amarelo
clarinho, o soalho de madeira range, mas a música silencia esse ruído. O ar abafado dá uma febril sufocação aos
corpos dos bailarinos. Na parede central, o retrato de um tal António Pedro. De
expressão mansa e bigodes retorcidos, parece vigiar a aula de dança. Duas
mulheres dançam ao som dos tangos do Carlos Gardel. São um par. Dois corpos cingidos em assumido êxtase sensual. E o dimorfismo que se lixe. Dançam com
paixão e entrega. Os seus passos são seguros,
marcam bem o ritmo, mostram domínio, técnica, mas também uma excessiva aceleração
que merece a atenção da professora. “Lento, mais lento”, vai-lhes dizendo num português cheio de variações. A mulher mais nova é bela e dança
de olhos fechados. Deixa-se levar pela companheira. Os seus cabelos compridos, que
balançam de lá para cá, suscitam-me pensamentos vagos de felicidade.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2014/04/29
2014/04/10
2014/04/06
Baltazar Borda d' Água
Cumpridor e reservado, fato escuro assertoado de quatro
botões, camisa impecavelmente engomada, gravatas discretas, sapatos pretos
pespontados, verdadeira imagem de sobriedade. Senhor gerente isto, senhor
gerente aquilo, senhor gerente, estão a pedir-nos a média diária de captação de
depósitos a prazo do mês de Julho, e, amanhã, não se esqueça, vem cá o sócio do
presidente da junta tratar do empréstimo para o prédio que querem construir no
Prior Velho. Baltazar Borda d’Água sempre correcto, ajudando cada empregado
novo que chegava, paciente na arte de ensinar, realizando estornos,
esclarecendo dúvidas sobre saldos e extractos, explicando planos de
investimento e taxas, aconselhando prudência nos investimentos e recato nos
créditos, sugerindo, sem paternalismo, mas sincera preocupação, planos de
poupança às famílias de Sacavém. O primeiro a chegar e o último a sair, trinta
e seis anos de serviço e nunca se soube de desvios ou enganos. Sempre declinou com educação os convites para almoços que a
clientela da agência, pequenos investidores, lojistas, comerciantes por
atacado, revendedores de maquinaria pesada, proprietários de stands de
automóveis, construtores civis, lhe fazia. Gostava de almoçaradas, mas sabia
que aqueles convites traziam água no bico, eram feitos com o propósito de
tornar ligeiras as negociatas, dois ou três almoços, bem comidos, bem regados
e, a seguir, chegaria o desafio para gozar a penumbra nativa nos bares polinésios
da Praça do Chile e, se o atrevimento fosse muito, ir ver as raparigas do Cais
do Sodré. Depois, assumida a amizade, haveriam de chegar convites para os
casamentos dos filhos e baptizados dos netos. Apesar da urgente necessidade de
fidelização dos clientes, Baltazar Borda d’Água sabia que, como gerente
bancário, tinha de ser firme, não podia ceder perante esse assédio. Quando se
desse conta, já não conseguiria avaliar com imparcialidade os pedidos de
empréstimo, havia de afrouxar na negociação da taxa de juro, alijar no número
de prestações; a sua liberdade negocial seria aturdida pelos camarões comidos
gulosamente nos copos de água e pela lembrança das inocentes cabecinhas dos
netos dos construtores civis, debruçados sobre a pia baptismal, berrando da
frieza dos óleos santos, mas livres do pecado original.
Quando Baltazar Borda d’Água se reformou os colegas da agência fizeram-lhe uma festa na Churrasqueira
Brasil. Os rodízios eram novidade e os bancários de Sacavém andavam com vontade
de experimentar a fartura das carnes vermelhas, o delicioso desperdício dos
bufetes livres, o aparato dos empregados vestidos de gaúcho, bombachas dentro
das botas caneleiras, camisa larga, faixa vermelha, espeto nas mãos com nacadas
de carne escorrendo gordura. Encontraram na reforma do chefe uma boa razão para
lá ir. A ementa era um luxo, picanha, maminha, cupim, coxão. Também serviram
corações de galinha barrados com manteiga de alho, petisco apreciado sobretudo
pelas senhoras. Uma colega nova, vinda da agência de Mem Martins, pôs-se mesmo
a trincar os pequenos músculos galináceos com um gozo excessivo:
- Ai, que delícia…- dizia a mem-martinense, não se dando
conta de que comer corações com tamanho prazer, ainda que seja de bicheza
pequena, desconcerta, faz lembrar feitiçaria medieval, canibalismo primitivo,
macumbas africanas para curar infidelidades, tanglomanglos em geral, enfim, é
um gesto de gula adequado apenas às mulheres que não conseguem disfarçar um
desejo voraz de prazer.
Os acompanhamentos eram à discrição, saladas variadas, arroz
branco, batatas fritas e feijão guisado, à sobremesa, o que se quisesse,
bavaroises aveludadas, gelatinas, pudins de coco, um pão-de-ló de alfeizerão
solitário, para quebrar a brasileirice da ementa, fruta fresca, abacaxi, mamão
e manga fatiados. Houve quem repetisse cinco vezes. No final, grogues da doçura
inocente das caipirinhas, fivela do cinto desapertada, os subordinados gabaram
a liderança e capacidade de organização de Baltazar Borda d’Água. Fizeram-se
discursos emotivos, houve até quem lacrimejasse ao lembrar histórias antigas.
Ofereceram-lhe uma caneta de aparo de aço e o banco mandou, como era
procedimento habitual na reforma das chefias intermédias, uma placa de
reconhecimento, em prata de lei, cinzelada. Trabalho fino, muito discreto.
2014/04/04
Folha
No verso da folha escrevi “O segundo amor da vida de Aninhas, um professor de sociologia, bem-parecido e alegre, morreu subitamente duma queda aparatosa que deu na casa de banho da universidade enquanto se masturbava a pensar numa aluna com uma sombra pronunciada de buço, mas peituda e de modos emputecidos”. Fiquei a olhar para a folha e pensei nas três palavras que recentemente aprendi. Nastúrcios, hidrângeas, pervincas. Pensei também na frase que li ontem à noite:“Camilo gostava das pessoas que choram”.
2014/04/03
2014/04/01
Serão
Outras vezes, era apenas para se
livrar da modorra dos serões que o fazia, estava para ali sentado sem fazer
nada, inerte, em frente do televisor, escutando a mãe contar a sua rotina, os
conciliábulos com as amigas, a alcovitice com as peixeiras no mercado, as
pequenas arrelias domésticas com Fátima, a empregada. A mãe fora buscá-la a um
refúgio de meninas, trouxera-a ainda nova, lisinha como uma tábua, livrara-a de
uma existência de abandono, a rapariga fora-lhe grata a vida inteira, movia-se
como uma sombra silenciosa e muda; à noite, depois de arrumar a cozinha, metia-se
no quartinho ao lado da cozinha a rezar o terço e a ler fotonovelas. Mas perdera a cabeça quando
começara a namorar com um tipógrafo sindicalista. Desleixava-se amiúde no
cumprimento das tarefas, não puxava o brilho dos móveis em condições, usava até
pequenas manigâncias para imprimir brandura no trabalho, ia buscar o aspirador
por tudo e por nada, introduzira esfregonas e cabos extensíveis para a limpeza
dos vidros, passara a apurar os refogados com caldos maggi. Quando o namoro com
o tipógrafo pegou de vez, Fátima começou com umas conversas atrevidas sobre
aumentos de ordenado e descanso semanal. A mãe achava-a ingrata, mas
intimamente parecia agradecer a afronta reivindicativa: tinha assim
oportunidade de soltar o azedume. Carlos escutava-a:
- Ó mãezinha, tenha calma, que a
Fátima é boa rapariga!- ia dizendo para a sossegar.
Quando chegava a um ponto de
saturação - geralmente quando a mãe perdia a compostura e, mexendo no colar de
pérolas, lhe chamava porca, devassa, ai coitadinha, anda mesmo apanhada por
aquele comunista nojento! -, levantava-se com a desculpa de ter de ir à casa de
banho. Fechava a porta à chave e abria o resguardo do poliban. Recorria então a um
imaginário indistinto de formas, mamas, coxas, nádegas, vaginas. Muitas vezes,
pensava em Fátima, agachada no chão, a puxar cera ao parquet de tacos; a
posição serviçal, as rótulas escanzeladas assentes na madeira dura, a bata
arregaçada, o vislumbre da sua escuridão fresca, faziam-no estremecer em
espasmos agitados. De forma mecânica, pegava no pénis e esfregava-o com vigor;
dotado de um frênulo elástico e longo, os movimentos levavam ao recolhimento
total do prepúcio, deixando a descoberto uma glande lisa e levemente nacarada
que, ao toque, acelerava o frenesi da excitação; meia dúzia de esfregadelas e
esguichava um espirro esbranquiçado que, com o chuveiro, fazia depois desaparecer pelo ralo do poliban. Baixava os olhos quando voltava à sala e
se sentava novamente ao lado da mãe. Ficava-lhe uma sensação de ignomínia que se prolongava durante o resto do serão.
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