Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/12/13
Women´s Running
E, agora, vou-me embora, que se faz tarde. Levo os miúdos, bocadinhos do meu corpo, os Women´s Running para correr de Colva a Benaulim, um caderno em branco e os cds do José Afonso para enfurecer o meu pai brâmane. Levo tudo o que preciso. Volto em Janeiro.
Baquelite
Instadas a se pronunciar sobre as qualidades que apreciam nos homens, dizem as mulheres que não lhes interessa o aspecto, nem a situação profissional, nem as habilitações literárias, muito menos a situação financeira. O que procuram nos homens, dizem elas, é o sentido de humor. Oiço-as e invejo a frequência com que se recorre aos poletões de fuzilamento na China. Rá-tá-tá-tá-tá, uma rajada de metralhadora, rápida e furiosa, e um mar de corpos mortos aos meus pés, o silicone e as tripas escorrendo pelos orifícios das balas. Adiante. Procuro nos blogs aquilo que as mulheres de baquelite procuram nos homens: sentido de humor. Porque não o tenho. Sou sisuda. Cronicamente triste. Considero de uma boçalidade primitiva o riso fácil, a gargalhada alarve. O Irmão Lúcia, de frases curtas e ilustrações mordazes, com um humor simples, fez-me rir muitas vezes ao longo deste ano. É, por isso, o meu blog de eleição para o ano que termina.
2007/12/11
Circo
Comprei duas vezes a revista Atlântico. O giro é que, apesar de se armar noutra coisa qualquer, é uma revista fiel aos valores tradicionais. Os homens tratam dos assuntos sérios. Política e coisas assim. As mulheres, duas ou três que por lá andam, escrevem umas coisitas sobre a vida mundana. Blogues, espectáculos, filmes, relações e coisas assim. E os homens atlânticos aplaudem-nas como cãezinhos, neste caso cadelinhas, amestradas que brilham com os seus truques de circo. Bravo.
Led Zeppelin
Gostar dos Led Zeppelin é um sinal da inferioridade masculina. Não conheço uma mulher que goste genuinamente de tal banda. Mas já vi, com estes olhos que a terra há-de comer, o meu cunhado, um advogado pacato e risonho, pouco dado a rodopios e meneios de anca, na pista do Tóquio, sóbrio, mas completamente tresloucado, a dançar um daqueles solos de guitarra medonhos que duram cinco minutos. Uma vergonha.
(Estou a repetir-me. Eu sei. Mas há coisas que não podem ser esquecidas e a inferioridade masculina, baseada no facto de gostarem dos Led Zeppelin, é uma delas.)
(Estou a repetir-me. Eu sei. Mas há coisas que não podem ser esquecidas e a inferioridade masculina, baseada no facto de gostarem dos Led Zeppelin, é uma delas.)
Chanceler
Por influência das análises da Teresa de Sousa e dos elogios matinais da Ana Gomes estou determinada a tornar-me numa admiradora incondicional da chanceler Ângela Merkel. Representa, em muitos aspectos, uma direita progressista, que se marimba nos tiques atávicos das direitas tradicionais, é capaz de denunciar a farsa de Putin e de arreliar a China e os líderes africanos que vieram passear as esposas aos centros comerciais de Lisboa. Por outro lado, a chanceler não se presta às momices do Senhor Sarkozy que já tomou de ponta a sua secretária de estado Rama Yade (a tal de origem senegalesa que fica bem na fotografia de um governo que se quer mostrar tolerante), por esta denunciar as negociatas da França com a Líbia. Abreviando, suspeito que, cada vez mais, o mundo é das mulheres. Os homens, para bem da humanidade, estão em vias de extinção.
2007/12/08
2007/12/07
Voz amiga
Preparam-se para, a título experimental, criar um cartão de emergência para os suicidas ou potenciais suicidas. Do tal cartão consta uma lista de sítios e telefones a que se pode recorrer nos momentos de crise. Serve o cartão, também, para etiquetar os suicidas perante o sistema nacional de saúde. Podem, se tiverem o tal cartão, beneficiar de atendimento prioritário em consultas de psiquiatria e afins. Não represento nenhuma confraria de suicidas nem nenhuma associação de suicidas anónimos, mas acho que a medida tresanda. As linhas de telefone de ajuda só têm estafermos do outro lado. Desconfio que a maior parte deles tem uma vida tão desolada e triste que se suicida em catadupa. Quanto aos psiquiatras do sistema nacional de saúde estão, quase todos, mais interessados em despachar rapidamente os suicidas falhados que chegam às urgências dos hospitais públicos. Querem que a manhã passe veloz para correrem aos consultórios privados, onde há divãs de design, empregadas solícitas e telas da Armanda Passos penduradas nas paredes.
(Ainda não me tinha sentado na cadeira, já o médico me estava a perguntar se queria ser internada no Júlio de Matos. Disse-lhe que não e expliquei-lhe que dispensava o estigma. Nunca hei-de esquecer a palavra que utilizei. Estigma. Usada naquela ocasião, com o meu corpo tão presente, eu que não o queria, achei-a insuportavelmente pretensiosa e despropositada.)
(Ainda não me tinha sentado na cadeira, já o médico me estava a perguntar se queria ser internada no Júlio de Matos. Disse-lhe que não e expliquei-lhe que dispensava o estigma. Nunca hei-de esquecer a palavra que utilizei. Estigma. Usada naquela ocasião, com o meu corpo tão presente, eu que não o queria, achei-a insuportavelmente pretensiosa e despropositada.)
2007/12/06
Cimeira
Queria ter opinião sobre a cimeira que se avizinha. Sobre a tenda do Kadhafi. Sobre o Mugabe, feito bode expiatório. Sobre os chefes de estado europeus que não virão. Sobre os gastos que Portugal vai suportar por organizar uma cimeira que não serve para nada. Sobre os temas que vão ser discutidos. E os que, nem que cristo desça da cruz, em caso algum poderão abordados. Sobre a carta dos escritores. Sobre o J.M. Coetze, que a assinou, que conhece bem África e é dos autores que mais gosto de ler. Sobre o paternalismo com que certa esquerda sempre fala de África. O paternalismo é a forma mais infame de racismo. Queria ter opinião sobre estas questões todas. Não tenho. É assunto que não me interessa mesmo nada.
Bola de espelhos
Descobri que a rainha de copas, para além de trabalhar no mesmo edifício que eu, é minha colega de ginásio. Está cada vez mais suína. Desconfio que já não fala. Só grunhe. Tem umas mamas imensas que fazem lembrar badalos, os pináculos gordos das basílicas moscovitas. Cada vez que salta, as mamas batem-lhe no queixo. O Adelino, esse, mudou de indumentária. Usa agora uns calções de licra muito justos e amarelos que evidenciam a fragilidade do seu corpo. As pernas e as axilas continuam impecavelmente depiladas. Como invejo o brio depilatório do Adelino! E o novo professor, que não é romeno, nem moldavo, nem ucraniano, tem um molar de ouro e um brilhante num canino. Cada vez que arreganha a boca, um brilho de pechisbeque ilumina o ginásio como uma bola de espelhos iluminando uma discoteca de província.
(Uma mulher quer concentrar-se nos agachamentos e não consegue.)
(Uma mulher quer concentrar-se nos agachamentos e não consegue.)
2007/12/05
Felicidade
Trago ao pescoço um lenço de lã preto, velho, que herdei da minha avó Felicidade. É um dos lenços que ela costumava usar na cabeça. Aconchega-me o peito, esconde o decote. Gosto de o levar ao nariz e procurar, em vão, resquícios mornos do cheiro dela. Toco no lenço e lembro que, durante a adolescência, tive vergonha da minha avó, do seu ar provinciano, do seu lenço de luto, sobretudo, das suas mãos. Mãos de bruxa, mãos em garra, nodosas, ásperas, mãos de terra, de tanto e tanto que passou. Saber-me assim, ainda que num passado distante, é coisa que dói. Queria, na altura, uma avó da Avenida de Roma, igual às das minhas amigas, com cabelos armados pintados de azul e cãezinhos de companhia no regaço. Não queria aquela. Que nunca lera um livro. Nem uma revista. Que não sabia sequer escrever o seu nome. Hoje, não sei porquê, veio-me uma saudade grande dela. Da avó que cantava canções que falavam da lua, das giestas da serra, do alandroal. Da avó que contava histórias de bandidos e animais fabulosos. Da avó que sabia jogar ao jangro, fazer flautas de caninhas, chifres de lenços e bonecas de pano, esguias, muito feias e imperfeitas.
2007/12/03
Café da manhã
O Sr. Zé não sabe preparar meias de leite. Chegam sempre mornas, demasiado escuras, com gosto de remédio, de desinfectante, de pozinho de farmácia. Mas sabe tudo sobre vindimas e pinhais. Esta manhã, como se me confiasse um segredo, explicou-me que Dezembro é o seu mês preferido, não pelo Natal, nem pelo menino Jesus nas palhinhas deitado, que lhe diz pouco, mas por ser tempo de apanhar medronhos selvagens. O Sr. Domingos não sabe fazer torradas. Encharca-as de manteiga, os pingos de gordura untam o jornal logo pela manhã. Mas sabe correr. Corre como uma impala negra, uma estatueta articulada de ébano, o corpo muito direito, as pernas longas, a passada firme. É muito mais velho do que parece. À segunda-feira avisa-me do calendário das provas e insiste que eu participe. Eu nunca participo.
(Sou capaz de ser extraordinariamente amável para as pessoas de quem gosto.)
2007/12/02
Boneca
Helmer: Why, Nora, what a thing to say!
Nora: Yes, it is so, Torvald. While I was at home with father he used to tell me all his opinions and I held the same opinions. If I had others I concealed them, because he would not have liked it. He used to call me his doll child, and play with me as I played with my dolls. Then I came to live in your house. I mean I passed from father's hands into yours. You settled everything according to your taste; and I got the same tastes as you; or I pretended to. I don't know which--both ways perhaps. When I look back on it now, I seem to have been living here like a beggar, from hand to mouth. I lived by performing tricks for you, Torvald. But you would have it so. You and father have done me a great wrong. It's your fault that my life has been wasted. . .
Helmer: It's exasperating! Can you forsake your holiest duties in this way?
Nora: What do you call my holiest duties?
Helmer: Do you ask me that? Your duties to your husband and children.
Nora: I have other duties equally sacred.
Helmer: Impossible! What duties do you mean?
Nora: My duties toward myself.
Helmer: Before all else you are a wife and a mother.
Nora: That I no longer believe. I think that before all else I am a human being, just as much as you are--or, at least, I will try to become one. I know that most people agree with you, Torvald, and that they say so in books. But henceforth I can't be satisfied with what most people say, and what is in books. I must think things out for myself and try to get clear about them. I had been living here these eight years with a strange man, and had borne him three children. Oh! I can't bear to think of it. I could tear myself to pieces!I can't spend the night in a strange man's house.
Fui ver “Boneca”, adaptação do Nuno Cardoso do texto de Ibsen. Mais uma vez chorei. Estou velha. Agora dá-me para chorar no teatro e no cinema, eu que nunca verti uma lágrima em público, que sempre tive a decência espartana de saber chorar sozinha e em silêncio. Para não incomodar ninguém. A cena final, porém, desconcertou-me. No final, não é Nora quem fala, não é ela que abandona o lar, o marido, os filhos, a maravilhosa felicidade doméstica. De onde lhe vem a coragem e a lucidez? A personagem, parece, parece-me, dá lugar ao autor. É Ibsen quem nos fala através dela. É ele que nos mostra um caminho, uma alternativa. Nora continua com Torvald, na sua casa de bonecas, obediente e feliz, um pardalito tonto, uma máscara que se enterrou para sempre na carne.
2007/12/01
Minotauro
Vão andar descalços pelo quintal. Comer com as mãos. Aprender a fazer bolinhas de arroz e metê-las à boca depois de mergulhadas em molhos de mil cores. Vão ver os cogumelos gigantes do espaço para cerimónias, casamentos e baptizados, Royal Paradise é como se chama, do primo Franky. Vão assistir à missa em concanim, espreitar as pulseiras de ouro das mulheres e os cabelos perfumados de jasmim. Vão conhecer a fábrica de gelo. Vão procurar o minotauro no mercado de Margão e fugir das matilhas de cães sarnosos que rondam a cidade. Vão meter os pés nos arrozais, onde há cobras e outros bichos. Vão descobrir que os macacos se sentam nos galhos do tamarindo e observam a tia Quitéria enquanto as suas mãos esguias de pianista escolhem os bagos de arroz. Vão subir à torre da Kanchanganga e dar de comer às gralhas que todos os dias vêm cumprimentar as irmãs mais bonitas de Bombaim. Lara e Elaine Noronha. Vão percorrer as ruas da cidade e tocar os cristos que vivem nas bermas. Vão estranhar os cheiros, a sujidade, a miséria. Ela não desaparece por não a olharmos. Vão mergulhar os corpos pequeninos na praia de colva onde não há turistas sauditas, nem turistas russos, só indianos passeando de mãos dadas e indianas que mergulham nas águas do Índico de sari. E um carrossel muito velho, onde peixes gigantes, de sorrisos assustadores, embalam meninos que trazem as mãos cheias de vento.
(Em breve, volto à Índia. Desta vez levo os miúdos. E se eles não gostarem? Vai ser terrível porque se os meus filhos não gostarem da Índia eu vou passar a gostar um bocadinho menos deles.)
MST
Há um grupo de blogers que anda desde o início do mês num corrupio, a desdenhar, com afinco, o novo livro do Miguel Sousa Tavares. Há os que anunciam que nunca, mas nunca, nem que a vaca tussa, nem que o mundo acabe, colocarão os olhos sobre tal obra. Há aqueles que criticam os primeiros, mas, à cautela, para evitar confusões, dizem que também não têm interesse em ler tal livro. Andam mais ocupados em ler os clássicos ou em apreciar o pop barroco do Rufus não sei das quantas. Há depois os bafientos que, procuram no caruncho das enciclopédias e dos anais, erros históricos, falhas gravíssimas, imperfeições inultrapassáveis. Como se a gente lesse um romance para aprender História. Como não sou uma bloger bem pensante, muito menos cultivada nos grandes autores, vou ler o livro do Miguel Sousa Tavares de uma ponta à outra. Não sei se vou gostar. Suponho - e digo suponho porque verdadeiramente nunca gostei de nenhuma - que os autores sejam como as fodas que damos na vida. Umas vezes gostamos, outras vezes não. Outras vezes, enjoamos. Por exemplo, ao terceiro Murakami, senti uma náusea, um enjoo tal, que à primeira oportunidade, no auge de uma discussão, rasguei-o em mil pedaços. E, no entanto, gostei do Norwegian Wood e do Suptnik, meu Amor. Tanto, que até quis que o cabelo se me embranquecesse de um dia para o outro. Salvo um ou outro exagero, também gostei do Equador. Aquela cena do herói à beira da morte, estropiado de todo, falo incluído, mas que ainda tem ganas de papar a bela Anne, pareceu-me exagerada. É um romance bem escrito, despretensioso, que conta uma história. Que distrai. Não percebo, por isso, tamanho alarido e desdém. Só falta organizarem-se virtuais passeatas contra o livro. Por mim, tenho intenção de o levar para a Índia e de o ler na lânguida sombra da mangueira durante a hora das sestas alheias. E, se acontecer ao MST o que aconteceu ao Murakami, sempre tenho seiscentas páginas à mão para rasgar nos momentos de fúria.
2007/11/28
Vatim
Há um homem que não me sai da cabeça. Entrou pela manhã no meu corpo e aninhou-se num lugar menos sombrio, onde há luz e medusas de gelatina e os frutos nunca apodrecem. Trata das dálias melancólicas que não encontro nas floristas da cidade. Há um homem que vive dentro de mim. É o jardineiro-canibal de Almoçageme.
Clausura
Se a gente abrir o dicionário e lhe procurar o significado há-de lá encontrar os seguintes sinónimos: recinto, espaço fechado, reclusão, prisão, internamento, vida claustral, monástica ou conventual, recolhimento, convento. Lido o significado da palavra, ficamos com a sensação de que é um conceito distante, alheio, que não nos respeita. E respiramos de alívio. Enclausurados estão os homicidas, os traficantes, os ladrões, os violadores, os maus desta vida que prevaricam, que não respeitam os preceitos, as leis e as ordens. Enclausuradas, privadas da liberdade e do convívio dos outros, estão as monjas, tão lindas com as suas vestes puras, hábitos e escapulários, nos dedos virgens, um aro simples como sinal da sua consagração esponsal. Por opção decidem viver no silêncio das paredes antigas, murmurando orações e salmos. Enclausurados estão os que vivem nos países onde a liberdade não se apregoa. Enclausurados estão os loucos, os dementes, os tolos, que se amontoam como coisas em manicómios, em casas de repouso, em hospitais psiquiátricos. Pensamos em clausura e temos por adquirido que nunca a experimentaremos. A clausura é um conceito distante, que impomos aos outros ou que associamos a realidades longínquas. Porém, a clausura não é uma palavra simples. As palavras nunca são simples. Porque o nosso corpo pode ser uma clausura, uma prisão, um túmulo anunciando uma morte.
(Estou deprimida. Acontece-me muitas vezes.)
(Estou deprimida. Acontece-me muitas vezes.)
2007/11/26
Judite
O líder da JC acusou o Bernardino Soares de ser um dos principais protagonistas dos distúrbios revolucionários do Verão quente de 1975. Claro que o Pedro Moutinho, é o líder da JC, na altura de tais acontecimentos, ainda não era nascido. Era apenas um espermatozóide marreco, tortinho, coitadinho, que, anos mais tarde, conseguiu ganhar a corrida no acto sagrado da cópula. Nesse preciso instante seu pai terá tentado suster uma bufa mal cheirosa para não se embaraçar diante da fêmea se abria à sua frente como um fruto maduro. A bufa, em vez de ser expelida pelo olho do cu, soltou-se para dentro das entranhas e matou, de supetão, os espermatozóides concorrentes, os fangios que, serpenteando em espirais frenéticas, agonizaram aos molhos. Ficou apenas o espermatozóide marreco e tolinho e dele nasceu um promissor líder partidário. Adiante. Ora, o Bernardino Soares tem a minha idade. Se, com quatro anos, já era um perigoso revolucionário, também quero inventar para mim um qualquer passado revolucionário. O Verão Quente diz-me pouco, poucochinho. Podendo escolher, escolho uma coisa assim a modos que mais elevada, com um quê de sofisticação: quero ser uma escritora exilada, exímia na descrição da solidão dos que vivem no meio das multidões, casada com um professor comunista também ele exilado. E já agora posso ser gira, cheia de pinta e chamar-me Maria Judite de Carvalho.
2007/11/25
Fim
Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros
2007/11/24
Charneca
O João entrou no quarto no preciso instante em que eu chamava cabrão ao Octávio Teixeira que, na antena 1, logo pela manhã, se masturbava publicamente a falar do Hugo Chávez. Lançava o homem jactos espasmódicos de esperma bolorento, louvando a revolução venezuelana, os índices de alfabetização, a reforma agrária e a diminuição da pobreza. O meu filho olhou-me de viés, censurando-me a linguagem. Expliquei-lhe que metade do meu corpo é alentejano, metade do meu corpo gosta de açorda, coentros, poejos e beldroegas, metade do meu corpo sabe jogar ao jangro, metade do meu corpo vive na charneca de terras arenosas onde as alcagoitas ainda crescem entre os tomateiros e uma menina já morta penteia os cabelos longos de uma mãe que se chama Umbelina. Metade do meu corpo, disse-lhe eu, exausta, é alentejano e no Alentejo cabrão não é asneira. “E eu? Também sou um bocadinho alentejano? Também posso dizer cabrão?”, perguntou. Respondi-lhe que nem pensar, que nunca, mas nunca, se atrevesse a dizer cabrão à minha frente. Ter apenas um quarto do corpo alentejano, uma insignificância, não dá direito a tais liberdades linguísticas.
Labirinto
podias ser o cigarro ultra-longo
que arde até queimar os dedos
podias ser o ar do ditongo
que aquece por dentro os segredos
podias ser o baque que esmaga
o olhar obsceno que assanha
o toque de anca que alaga
a unha diamante que arranha
serias o meu livro de areia
que traz a Maomé a montanha
a linha de vida que enleia
como na estratégia da aranha
serias o objecto perdido
que me faz sentir sempre pobre
o fio de Ariane escondido
cuja ponta o amor descobre
podias ser a vela cansada
o dia que eu apenas pressinto
podias ser a cera dourada
à espera no fim do labirinto.
Fio de Ariane, Clã
que arde até queimar os dedos
podias ser o ar do ditongo
que aquece por dentro os segredos
podias ser o baque que esmaga
o olhar obsceno que assanha
o toque de anca que alaga
a unha diamante que arranha
serias o meu livro de areia
que traz a Maomé a montanha
a linha de vida que enleia
como na estratégia da aranha
serias o objecto perdido
que me faz sentir sempre pobre
o fio de Ariane escondido
cuja ponta o amor descobre
podias ser a vela cansada
o dia que eu apenas pressinto
podias ser a cera dourada
à espera no fim do labirinto.
Fio de Ariane, Clã
2007/11/22
Pirliteiro
Lembro-me bem dessa árvore. Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas e pequenas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera a árvore cobria-se com umas flores de tule branco, muito tolas e perfumadas. Durante o Outono, a árvore vestia-se com uma sobrepeliz de frutos pequeninos, vermelhos, que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a vontade que eu tinha de as trincar, corria a gritar que tais frutos eram altamente venenosos, que certa vez lhe aparecera no hospital um menino, coitadinho, tão pequenino, muito, muito doente por ter comido umas bagas daquelas. Os médicos, contava ela em alarido, tiveram de lhe enfiam um tubo duro de plástico até ao estômago para o livrar de uma morte certa. Depois dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, talhada em sebes vivas. Também a encontrava nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro estival das amoras maduras e o crocitar dos grilos tornavam as tardes de Agosto muito mais quentes. Sempre que via tal arvorezinha vinha-me de dentro uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia redonda no chão tal qual a branca de neve quando provou a luzidia maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, era certo e sabido, que passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, em obediência à minha tia, nunca mastiguei os pequenos frutos. Apertava-os nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem um corpo rubro, sinal de doçura, como o dos diospiros. Hoje, quando cruzo o parque da fundação, ignoro os avisos civilizados que aconselham a não pisar a relva e a não apanhar flores, folhas, frutos. Apanho meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do centro de arte moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. A superfície polida, nacarada, faz-me lembrar um tempo incerto em que fui feliz. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que resolver metê-las à boca.
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
2007/11/21
Cupido
A minha filha apareceu em casa com piolhos. Desconfio que também os apanhei. E cresceu-me, no lábio superior, uma pústula herpial que está prestes a dar-me cabo da curva do cupido. O joanete do pé direito dói-me que se farta e não me deixa usar sapatos de salto. O pior é o corrimento vaginal, inodoro, mas de consistência duvidosa, que insiste em fugir do meu interior. Apodreço.
2007/11/20
Guebuza
Certo dia chegou um papelinho oficial a comunicar que o meu pai tinha quinze dias para abandonar o país. Se ficasse, avisavam, corria o risco de ser preso por traição, por infame conivência com a anterior potência colonizadora. A ordem de expulsão era assinada, numa letrinha femininamente redonda que sugeria certo recato, por um tal Armando Guebuza. Ficou a minha mãe sozinha no apartamento de Lourenço Marques, na Avenida Central, com três filhos, o trabalho no dispensário, uma vida inteira para despachar em caixotes e contentores. Como se embalam as memórias, os hipopótamos descansando nos lagos, as nuvens taurinas abatendo-se na baía, o chão encerado da casa de Tete? Como se encaixota o cheiro doce das mulheres, a brancura fosforescente dos dentes do meninos? A minha mãe teve apenas ajuda de um amigo, o Gomes, um homem pequenino, com uns dentes muito salientes, a fazer lembrar um esquilo gigante, que se desfazia em diligências, ia buscar um papel ali, carimbava outro acolá, dizia Solange é preciso você fazer isto ou tratar daquilo.
Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe consegui embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.
Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não reparam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.
(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)
Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe consegui embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.
Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não reparam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.
(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)
2007/11/17
She's Lost Control
Confusion in her eyes that says it all.
She's lost control.
And she's clinging to the nearest passer by,
She's lost control.
And she gave away the secrets of her past,
And said I've lost control again,
And a voice that told her when and where to act,
She said I've lost control again.
And she turned around and took me by the hand and said,
I've lost control again.
And how I'll never know just why or understand,
She said I've lost control again.
And she screamed out kicking on her side and said,
I've lost control again.
And seized up on the floor, I thought she'd die.
She said I've lost control.
2007/11/16
Alcaçuz
Bebi um café pela manhã e veio-me à boca um sabor desconhecido. Senti-o na língua, lá atrás onde ela nasce. Um sabor adocicado, perfumado, a fazer lembrar o da flor de anis. Bebi um café e veio-me à boca o sabor das pastilhas de alcaçuz que um dia a minha mãe comprou por engano. Meti uma à boca e logo se espalhou um sabor de antibiótico que nunca esqueci. Bebi um café e senti no corpo a mornidão dos lugares da minha primeira infância. O jardim do Torel e o do Campo Santana, a pastelaria Tarantela, os corredores e o refeitório do Hospital D. Estefânia, a entrada austera do Hospital de São José, a frontaria triangular do Instituto de Medicina Legal, a praça do Dr. Sousa Martins, carregada de mortos e padecentes. Bebi um café e veio-me, não sei de onde, uma vontade grande de chorar.
Brasília
Ele: Mãe, posso ler o teu caderno dos sonhos?
Eu: Não.
Ele: Porquê?
Eu: Está cheio de pesadelos.
(Uma velha pequenina, curva, de cabelo muito curto, pêlos pretos no nariz, passeia por uma cidade que, em tudo, faz lembrar Brasília. Uma arquitectura depurada, branca, luminosa, de formas redondas e escadarias intermináveis. Não se vê ninguém. Só a velha se movimenta com lentidão, apoiada numa bengala. Veste uma saia cor-de-vinho. Sobe uma escadaria de pedra e o seu corpo afunda-se devagar nos degraus. Há muito tempo que não tinha um sonho como o desta noite, que me assustasse tanto.)
Eu: Não.
Ele: Porquê?
Eu: Está cheio de pesadelos.
(Uma velha pequenina, curva, de cabelo muito curto, pêlos pretos no nariz, passeia por uma cidade que, em tudo, faz lembrar Brasília. Uma arquitectura depurada, branca, luminosa, de formas redondas e escadarias intermináveis. Não se vê ninguém. Só a velha se movimenta com lentidão, apoiada numa bengala. Veste uma saia cor-de-vinho. Sobe uma escadaria de pedra e o seu corpo afunda-se devagar nos degraus. Há muito tempo que não tinha um sonho como o desta noite, que me assustasse tanto.)
2007/11/15
Marxista-Leninista
Sempre estranhei os que elegem a coerência como virtude política. Enchem a boca e elogiam, por exemplo, a coerência do Álvaro Cunhal. A coerência é uma virtude pífia, vale pouco, quase nada, é uma virtude manca que deve ser abandonada quando pensamos o mundo e ele nos exige mudança. Ao contrário do Rui Tavares, não estranho que o Nick Cohen, no seu livro, comece por contar que em criança não comia laranjas portuguesas por causa do Salazar e termine considerando tolos aqueles que, de forma histérica, se insurgem contra a guerra do Iraque. Por influência da minha tia Dé - que Deus a conserve muitos anos perto de mim, enfiada no seu avental, sempre angustiada e tensa, o cabelo num desalinho, o amor a pingar-lhe dos olhos tristes - também eu fui uma menina marxista-leninista. Por exemplo, só gostava dos desenhos animados do Vasco Granja se fossem soviéticos, búlgaros ou checoslovacos. O meu irmão mais velho, um precoce neo-liberal, para me arreliar, volta e meia, abria muito os olhos e, com uma voz melíflua, dizia que aqueles desenhos animados eram americanos. Eu amuava e, num gesto convicto, desligava o televisor. Depois fui uma adolescente activa, possuidora de uma dose grande de entusiasmo e de imbecilidade. Frequentei amiúde a sede do PSR, sobretudo nas noites de sexta-feira, que eram animadas, em busca da dinâmica revolucionária, da justiça social, dos camaradas e das camaradas, da defesa das minorias e dos oprimidos. Agora, reconheço, sou uma balzaquiana, de hábitos burgueses, como é costume dizer-se, acomodada, desiludida, frívola, com queda para homens como o Pacheco Pereira e o António Barreto. Não vejo, pois, mal nenhum naqueles que mudam de opinião, que abandonam movimentos, partidos, ideologias. Só os burros, as mulas, as bestas cavalares, as cavalgaduras, olham o mundo sempre de frente. Mas esses têm desculpa. Usam palas.
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)
2007/11/14
Torre
Levantei-me às 6.30 para ir correr. Cruzei-me com pescadores, com dois polícias, com um casal que caminhava de mãos dadas, com um homem jovem e alto, de pernas torneadas, que passou por mim como se fosse uma gazela ou um foguete. Perto da torre, alta, branca, ovnidea, passei por uma mulher gorda que passeava um cão preto, enquanto fumava um cigarro. Olhei-a de viés. Vestia um oleado castanho, tinha o cabelo hirsuto, muito despenteado e olhos pequeninos de animal. Quando por ela passei, achei o seu rosto familiar. Enquanto corri, tentei lembrar-me de onde é que a conhecia. Só perto do oceanário me lembrei. Marta. Chamava-se, e continua a chamar-se, Marta. Fomos colegas no liceu. Era uma figura triste da escola. Amava loucamente um rapaz de olhos verdes, cheio de caracóis, levemente idiota, chamado Marco, que não se dignava sequer a dirigir-lhe a palavra. Escrevia-lhe poemas, sonetos, verdadeiras elegias ao amor e à paixão. Apanhei secas monumentais na paragem do 19 a ouvi-la declamar os poemas que escrevia ao tal Marco. Acho que também tirou Direito. Está gorda. Foi por isso que não a reconheci. Fiquei imediatamente feliz. Gosto de encontrar os meus antigos colegas de liceu e descobrir-lhes banhas, celulite, rugas, cabelos brancos e ralos, barrigas de cerveja, outras de inacção. Gosto de olhar para elas e pensar que devem usar para aí o quarenta e dois. Gosto de olhar para eles e pensar na figura patética que fazem quando, pela noite, se despem para as suas amantíssimas esposas.
2007/11/13
Tia
Não tenho o privilégio da raça pura. Sou mestiça. Certa vez, contei à tia Amália a confusão que a indefinição dos meus traços provoca. Já me tomaram por brasileira, cubana, uruguaia, argentina, cabo-verdiana, moçambicana, marroquina, paquistanesa, indiana e até espanhola. Uma mixórdia de origens e lugares. A minha tia abanou a cabeça, rejeitando tais hipóteses. No crepúsculo vermelho, e fresco, da casa de Pondá, assegurou que pareço parsi. Perante a minha surpresa, buscou concordância na Joaninha, sua empregada de longa data que, nesse instante, entrava com um tabuleiro cheio de pastelinhos recheados de baji de batata. Habituada, porventura, a nunca contrariar a minha tia, a pobre mulher anuiu sem sequer me olhar. A minha tia fez-me uma festa no rosto que me soube às coisas boas que existem no mundo. Olhei-lhe para dentro dos olhos e vi, nesse preciso instante, a menina que o meu pai levava todos os dias para a escola, numa bicicleta que cruzava veredas de lama e nuvens fofas de insectos. Explicou-me que os parsis, mais claros, são indianos originários da antiga Pérsia, actual Irão, um povo influente, que vive sobretudo nos estados do Maharastra e Gujarat. O tom da minha pele, o recorte dos olhos, a ondulação do cabelo, continuou a minha tia, são característicos dos parsi. Beberricou, de seguida, um sumo de uva muito escuro e ofereceu-me uns doces enjoativos de grão. Engoli um quadrado esboroado que sabia a flores e especiarias. Engoli também as origens imaginárias que a minha tia, nesse dia, me traçou.
(Ontem, no segundo canal, vi um documentário sobre Teerão. Dei por mim a achar-me parecida com as iranianas, a imaginar como ficaria linda com um lenço a cobrir-me os cabelos, eu que sempre me insurgi contra o uso do véu. Pergunto: quão tola se pode ser? Muito.)
(Ontem, no segundo canal, vi um documentário sobre Teerão. Dei por mim a achar-me parecida com as iranianas, a imaginar como ficaria linda com um lenço a cobrir-me os cabelos, eu que sempre me insurgi contra o uso do véu. Pergunto: quão tola se pode ser? Muito.)
Pingue-Pongue
O Rui Tavares, por muito que tente disfarçar, tem simpatia pelo actual regime venezuelano. O anti-americanismo boçal que o presidente derrama nas suas arengas radiofónicas, nos seus discursos inflamados, suscita-lhe simpatia. Daí que consiga fazer o impossível: meter no mesmo saco o rei espanhol e o presidente venezuelano. Convenhamos, não é tarefa fácil. Para aligeirar o que se passa na Venezuela, o Rui Tavares, volta e meia, invoca a legitimidade democrática do presidente Hugo Chavez. É certo que o esférico venezuelano foi eleito em sucessivas eleições cuja credibilidade não se discute. Porém, o facto de uma pessoa ser eleita democraticamente não faz dela democrata. A democracia, ao contrário do que se imagina, não se esgota, nem se cumpre, no acto eleitoral.
2007/11/09
Rodovalho
Acabo de ter uma decepção profunda ao descobrir que o rodovalho faz parte do grupo dos peixes-chatos. É - imagine-se! - uma espécie de linguado, um peixinho amarelado, cor de tremoço, que se confunde com a areia, de olhitos esbugalhados, um peixe camuflado, um peixe da espessura de uma folha de papel, espalmado como uma panqueca. Ainda não estou em mim. Os romances do século XIX estão prenhes de maravilhosas descrições de jantares servidos em loiças rendilhadas de porcelana, onde as gargalhadas das mulheres se soltam, em cachos pequeninos, por trás dos leques, e os gestos dos homens são sempre corteses e delicados. Volta e meia, em tais banquetes, aparecia-me pela frente um rodovalho. Lia rodovalho e imaginava um peixe imenso, parecido com uma fataça, quase um monstro marinho, assado inteiro no forno, trazido para junto dos comensais numa enorme travessa, uma travessa em forma de barco, acompanhado por batatinhas novas e cebolas anãs. Lia rodovalho e imaginava a carantonha triste do peixe defunto elogiada por um homem elegante de barba aparada. O entusiasmo que a palavra rodovalho me provocava era tal que jurava a mim mesma que um dia, quando crescesse e me tornasse numa mulher frustrada e amarga, havia de escrever um conto chamado “O rodovalho”.
2007/11/07
Casa
Este blog é uma casa. Está tão desprovido de mim que consigo ouvir o eco das palavras que escrevo. As palavras que liberto ficam a ecoar, penduradas no vazio branco destas paredes. Aqui posso reescrever-me com frases curtas. Posso construir-me com outros gestos, outros significados. Fazer de mim uma sopa de letras, uma miscelânea de ideias. Posso reinventar-me, iludir-me também, fantasiar-me com plumas e berloques, usar sapatos de agulha, os saltos, altos e finos, a prenderem-se nas pedras irregulares da calçada. Posso sombrear as pálpebras com poeiras douradas, de reflexos violetas, azuis, cinzentos, pintar os lábios de carmim. Também posso usar o cabelo entrançado, preso nas pontas com fitas de veludo amarelo-torrado. Em alternativa, posso fazer um carrapicho, modelar uma espiral grossa e sustentá-la com travessas de tartaruga, ganchos, arames finos, pretos, quase invisíveis na negritude do meu cabelo. Posso ainda usar o cabelo em bandós e desenhar traços, sulcos, manchas no meu rosto. Envelhecer. Posso pintar as unhas das mãos de vermelho escuro. Ou de cor-de-rosa choque. Ou de lilás. Posso usar um vestido de alças finas, debruado de cetim azul, justo ao corpo, estampado de pássaros falantes: catatuas, milhafres, corvos, pousados nos galhos de uma árvore esguia, nua, despida. Uma balbúrdia de vozes e grasnares sobre mim. Ou então posso usar uma saia rodada, muito rodada, com uma orla bordada a fio de ouro e lãs amarelas, vermelhas, verdes. Os fios a desenharem no rodado da saia junquilhos, frésias, cardos, papoilas, aqui e ali, o verde vivo de uma folha de bananeira. Um tumulto de cheiros e cores sobre mim. Aqui posso travestir-me. Aqui posso ser o que não sou, ser um pastiche de alguém ou de mim própria.
(estou fartinha desta casa.)
2007/11/05
Atlântico
Comprei a Atlântico, a revista da direita que se crê irrequieta e bem pensante. Não vale um caracol. Não se consegue ler. A gente folheia-a e, salvo uma ou outra excepção, só lá escrevem tipos licenciados, com mba em qualquer coisa, que escrevem em blogues, claro está, usam camisas às riscas e, no fundo de si próprios, acham que o cúmulo da irreverência é escrever a palavra foder ou caralho. Um tédio. Aproveita-se a capa. Pouco mais.
(Dou uma no cravo, outra na ferradura. É intencional. Gosto de estar mal com Deus e com o Diabo.)
(Dou uma no cravo, outra na ferradura. É intencional. Gosto de estar mal com Deus e com o Diabo.)
Esquerda
“Depois, percebi uma coisa terrível: que as pessoas que são vítimas de movimentos extremistas e de regimes ditatoriais cujos actos não podem ser atribuídos à responsabilidade dos americanos passam a ter muito pouco apoio. Por exemplo, as feministas iranianas, os palestinianos secularistas, os sindicalistas chineses. É só quando o sofrimento das pessoas pode ser atribuída à América, ou ao Ocidente em geral, só nessas condições é que merece solidariedade.”
“As mulheres muçulmanas que vivem na Europa, por exemplo, deviam poder contar com o apoio da esquerda para se poder emancipar. Mas, por causa do dogmatismo sobre o multiculturalismo, não podem. É a esquerda que hoje lhes diz: isso é a vossa cultura. E qualquer pessoa que se lembre de criticar essa cultura em termos mais duros é logo acusada de ser islamofóbico e racista.” Nick Cohen, em entrevista ao Público.
Aproprio-me das palavras deste tal Nick Cohen. A esquerda, tal como a conhecemos, está moribunda. Entre os detestáveis (Bernardino Soares), os desprezíveis (Bernardino Soares) e os apedrejáveis (Bernardino Soares), ficam os patéticos (os bloquistas, apreciadores do multiculturalismo, do paternalismo, da merdologia em geral; os comunistas que vêem o 25 de Abril como coisa só sua; os socialistas que, a todo o custo, evitam tocar o povo nos hospitais públicos, nos transportes públicos, nas escolas públicas, nas repartições públicas, nas praias públicas). Há excepções. Mas são poucas. Assim, de repente, não me lembro de nenhuma.
“As mulheres muçulmanas que vivem na Europa, por exemplo, deviam poder contar com o apoio da esquerda para se poder emancipar. Mas, por causa do dogmatismo sobre o multiculturalismo, não podem. É a esquerda que hoje lhes diz: isso é a vossa cultura. E qualquer pessoa que se lembre de criticar essa cultura em termos mais duros é logo acusada de ser islamofóbico e racista.” Nick Cohen, em entrevista ao Público.
Aproprio-me das palavras deste tal Nick Cohen. A esquerda, tal como a conhecemos, está moribunda. Entre os detestáveis (Bernardino Soares), os desprezíveis (Bernardino Soares) e os apedrejáveis (Bernardino Soares), ficam os patéticos (os bloquistas, apreciadores do multiculturalismo, do paternalismo, da merdologia em geral; os comunistas que vêem o 25 de Abril como coisa só sua; os socialistas que, a todo o custo, evitam tocar o povo nos hospitais públicos, nos transportes públicos, nas escolas públicas, nas repartições públicas, nas praias públicas). Há excepções. Mas são poucas. Assim, de repente, não me lembro de nenhuma.
2007/11/04
2007/11/03
Sansão (4)
O cabeleireiro chega, por fim. Conheço-o. Chama-se Quim. É um nome tão patético, tão abichanado, tão mariquinhas. Como é que alguém que tem a sorte de se chamar Joaquim admite que lhe amputem, de forma tão grotesca, o nome? Não é a primeira vez que me corta o cabelo. Há qualquer coisa nele que me incomoda. Vejo-o muitas vezes, à porta do salão, no intervalo entre dois cortes, a fumar cigarros. Acho-o triste. Nunca o vi sorrir. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Depois de me cumprimentar pergunta, com um sumiço de voz, como quero o cabelo. “Curto, muito curto”. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Das duas uma. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e começar de novo, de se tornar numa outra pessoa, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Ele senta-se num banco alto, com rodas, e engole uma pergunta qualquer que estava prestes a fugir-lhe da boca. Começa a cortar, enquanto cantarola baixinho uma canção. Tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga.
Sansão (3)
Sento-me na cadeira. A menina que lava as cabeças coloca-me um resguardo preto gigante e, por cima, uma toalha cor-de-salmão. Lava-me a cabeça. Com as pontas dos dedos, executa movimentos circulares. Sinto-me nua, exposta, assim, sentada, de cabeça inclinada para trás, com uma mulher jovem a massajar-me a nuca. Há qualquer coisa de perverso, de libidinoso, neste gesto. Não sei. Não me incomoda escancarar-me numa consulta de ginecologia. Abrir as pernas, sentir uma dedeira em latex, gelada, hirta, a percorrer-me por dentro. É um gesto asséptico e inócuo. Já a lavagem do cabelo sugere-me pensamentos impudicos e secretos. Quando termina a tarefa, a menina que lava as cabeças enrola o turco. Mal me sento, tiro a toalha e começo a secar o cabelo. Volto a olhar-me no espelho. Molhado, o cabelo torna-se ainda mais comprido. Pela primeira vez, consigo fazer uma trança, uma trança grossa, como se fosse a crina de um cavalo. Sempre gostei de penteados ultrapassados, fora de moda, que ninguém usa, a não ser as velhas e as inadequadas. Gosto de tranças e de carrapitos, espirais de cabelo cheias de ganchos e elásticos, uma redezinha transparente por cima.
Sansão (2)
Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos que tinha, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates, com produtos da Kerástase ou da Lóreal, frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo. Esqueço-me desses outros tempos e retorno.
Sansão (1)
Entro no salão. Sinto, de imediato, o cheiro enjoativo das tintas, dos châmpos, das ceras, dos vernizes, dos cremes-amaciadores, das máscaras capilares. Está quase vazio. Há apenas duas mulheres. Uma está sentada lá atrás e lava a cabeça. A outra está sentada em frente dos espelhos ovais. Uma rapariga de cabelo vermelho seca-lhe o cabelo. A mulher é velha. Usa um fato cor de cereja e uns sapatos rasos de pala. Pintou o cabelo de cinzento, com matizes azulados. Nunca percebi o que leva as mulheres serôdias, velhas, quase mortas, a pintar o cabelo de azul, roxo, grená, cor-de-rosa. “Quero cortar o cabelo”, digo à rapariga que está na recepção. “Tem preferência por alguém?”, pergunta-me, enquanto fecha um livro de capa azulada que fala de anjos e demónios. Digo que não com um gesto. Indica-me uma cadeira. Dispo o casaco. Tiro os brincos. Retiro os inúmeros ganchos e elásticos que me prendem o cabelo. Enquanto me solto, olho-me. O meu cabelo está comprido, muito comprido, nunca o tive assim. É um cabelo forte e crespo. Tem uma ondulação indefinida que sempre detestei. Desde pequenina que o gabam. Por ser forte. Pela cor que tem. Piche, pez, breu, noite, alcatrão, escuridão, negrume.
2007/10/31
Hortenses
Gosto mais que me insultem do que me elogiem (é mentira, mas fica-me bem dizê-lo). Por isso, se alguém me chama chata, apesar da insipidez da ofensa, da tibieza da palavra, eu respondo. A causa foi modificada está, agora, aqui. A moldura de hortenses, porém, é um bocado mariquinhas. Faz-me lembrar anúncios de pensos higiénicos ou então as mangas tufadas dos cantores mariachi.
Página 161
Não percebi as instruções. Sou uma analfabeta funcional. Enganei-me na frase. Não tenho jeito para esta coisa das correntes.
Pingue-pongue
Não é pela falência do sistema de ensino público que a classe média, média alta, mete os filhos nos colégios privados. É por preguiça e por estatuto. Há quem faça do cu três bico para por os filhos no São João de Brito, no Moderno, no Sagrado Coração, no Manuel Bernardes e afins. E há quem sossegue com a exigência e o acompanhamento dos colégios. Assim, ao final da tarde, enquanto os filhos estudam, as mães podem ir descansadas às aulas de pilates e os pais podem fornicar docemente com os colegas e as colegas do escritório. Ter um filho numa escola pública, para além de não conferir estatuto, dá trabalho, exige coerência e disponibilidade. A maior parte dos pais e das mães não está para isso.
(qual Pedro Nunes, qual Luísa de Gusmão, a minha escola, a Herculano de Carvalho, nos arrabaldes da cidade, ao lado de uma praça onde havia uma igreja, um mictório público que cheirava a mijo rançoso e um coreto antigo, tão lindo, que assistiu aos meus primeiros tremores alcoólicos, ficou na 37ª posição da lista.)
(qual Pedro Nunes, qual Luísa de Gusmão, a minha escola, a Herculano de Carvalho, nos arrabaldes da cidade, ao lado de uma praça onde havia uma igreja, um mictório público que cheirava a mijo rançoso e um coreto antigo, tão lindo, que assistiu aos meus primeiros tremores alcoólicos, ficou na 37ª posição da lista.)
Rauschenberg
No Contraditório de sexta-feira, o Carlos Magno recomendou, com entusiasmo, a exposição do Rauschenberg em Serralves. Eu gosto do Carlos Magno, da análise política que faz, escuto-a com atenção, do amor que tem ao Porto, gosto até daquele jeito meio pedante de se achar amigo de toda a gente e de fazer citações brilhantes por tudo e por nada. Porém, tenho a sensação de que ele aprecia a arte contemporânea do Rauschenberg tanto quanto eu. A verdade é que se fosse uma exposição de bufas malcheirosas aprisionadas em frascos bojudos de vidro de um qualquer artista consagrado, o Carlos Magno também no-la recomendaria. O que releva para ele, e para muita gente, é a consagração, o reconhecimento dos pares, a validação da arte pelos prémios, pelas análises dos entendidos, pelas notas dos críticos. Eu percebo pouco de arte, mas apoquenta-me que haja quem goste de tudo o que nos dizem para gostar e contabilize idas a galerias e museus como quem cumpre uma obrigação. O que interessa, acho eu, é olharmos um determinado objecto, uma instalação, uma tela, uma peça qualquer, e sermos capazes de nos maravilhar sem saber sequer porquê, imunes à importância cultural da obra e do autor. Como quando se topa pela primeira vez com o azul do Klein. É só uma cor, uma só, mas que cor! E eu nem gosto de azul. Ou como quando se entra nas florestas e cidades labirínticas de aço do Richard Serra. A princípio, desdenhei, bufei mesmo, disse-lhe olha para esta merda gigante, mas tu já viste esta palhaçada, depois amainei e juro que escutei, nos bosques de aço, o eco das ninfas, fugindo da ira taurina da deusa Hera. A arte de papelão e desperdício do Rauschenberg não me diz nada. Nadinha. Não gosto. É um bocado pindérica. É. Acho deplorável que a obra dele conste do acervo que a NASA leva a passear pelo espaço, entre estrelinhas, luas e poeiras cósmicas.
2007/10/29
Paranhos
Às voltas com o processo de um agente da PSP, residente em Paranhos, dou conta de que gosto muito da toponímia do Porto. Paranhos, Cedofeita, Campanhã, Lordelo do Ouro, Massarelos, Miragaia, Nevogilde, Aldoar, Santo Ildefonso. Gosto da sonoridade do nome destes lugares. São nomes pagãos, rudes, primevos quase. Convocam tempos nevoentos, anteriores e incertos, planícies, montanhas e bosques habitados por outros povos. Os suevos. Os alanos. Os visigodos. Deve ser bom poder dizer “moro em Nevogilde” ou “trabalho em Massarelos”.
Página 161
" Lembrei-me agora de que podes responder de outra maneira ao teu professor se ele voltar a chatear-te." Vergílio Ferreira, Na tua face
(e quebro a corrente.)
(e quebro a corrente.)
2007/10/28
Badajoz
Sou uma pessoa invejosa. É, entre outros, um dos defeitos que tenho. Sou assim, atreita à cobiça, desde que me conheço. Já em miúda, de olhos chispantes, invejava os comentários que a Vitorina fazia às redacções da Ana Isabel e a fosforoscência cor-de-rosa dos sapatos de corda, comprados em Badajoz, que uma colega, a Rita, usava nos meses de verão. Já lá vão muitos anos. A última vez que tive noção de tão nefasta qualidade foi na passada sexta-feira quando anunciaram que o prémio Saramago fora, por unanimidade, atribuído ao Valter Hugo Mãe.
(para além de invejosa, sou também, como dizê-lo?, estupidamente pretensiosa.)
Obituário
Todos os anos é a mesma coisa. Mal chega o Outono, olho para os meus vasos, despidos, tristonhos, com uma ou outra hastezinha seca, moribunda, e rumo a uma estufa, solarenga e perfumada, em Porto Alto. Carrego sempre com os meus filhos, com as minhas mães e, por vezes, também com o meu pai, que, nestas coisas de botânica, como em muitas outras, é sempre uma voz sábia. Mal me vê, embeiçada, pelos vasos de azáleas, de begónias e de hibiscos franze o sobrolho e diz-me que as mesmas não sobreviverão aos meus cuidados. Sempre vivi rodeada de vasos em casa dos meus pais. Avencas, fetos, palmeiras, fetos, antúrios, patas de cavalo. Algumas delas existem desde que me conheço. Cresceram comigo. Como a avenca que agora vive em cima da máquina de lavar roupa, na marquise da cozinha. É a companheira da Madalena, quando a minha tia, ao fim da tarde, a senta em cima do tampo da máquina, com o nariz colado à janela, à espera de me ver chegar. Quis, por isso, trazer o verde para dentro das minhas paredes. Ingenuamente, pensei que, para além do jeito para a cozinha, também tinha herdado da minha mãe a habilidade para cuidar de plantas. Enganei-me. Tudo morre às minhas mãos. Até as plantas mais resistentes, como os cactos, sucumbem, definham. No entanto, apesar do historial negro, todos os anos, por esta altura, faço a mesma viagem. Atravesso a Recta do Cabo. Olho, de soslaio, para os escombros da Estalagem do Gado Bravo. Interrogo-me com a pequena igreja, só, abandonada, amarelecida, no meio da várzea. Chego ao outro lado. Atravesso a vila. Ignoro os inúmeros armazéns pré-fabricados de bugigangas chinesas que, perfilados à beira da estrada, anunciam, em cartazes gigantes, a barateza das inutilidades que têm para me oferecer. Por fim, chego à estufa. Os meninos correm pelos corredores à procura de um vaso pequenino, com uma planta pequenina, que ficará entregue aos seus cuidados. O João escolhe um cacto, cheio de flores vermelhas. A Madalena opta por um amor-perfeito de flores quadrilongas e roxas. Eu encho um carrinho de vasos, terra, fertilizantes, flores, plantas. Este ano escolho gerânios, sardinheiras, petúnias e rainúnculos. Pobres plantas, que, lá fora, enchem de cor a minha varanda. Mal sabem o que o futuro lhes reserva.
2007/10/25
Rosa (epílogo)
Rosa, se soubesses o cansaço que trago no corpo não me olhavas assim, não me chamavas senhor doutor, não me perguntavas pelo dia no hospital, não trazias os cafés queimados que me deixam gosto de cinza na boca. Sobretudo, Rosa, evitavas preencher a agenda até às 9 da noite. Varrias a mundana chatice que roça o traseiro pelas paredes dos meus dias. Livravas-me do miúdo das 8 horas, aquele quezilento, cheio de mimo, que veio cá há pouco tempo por causa de um furúnculo no braço. O que o miúdo gritou. Lembras-te? A mãe, uma baixinha com focinho de porco, a estupidez espalhada pelo rosto suíno, soluçava em voz baixa, como se o filho, um tiranete de sete anos, estivesse às portas da morte. Podias inventar-me uma doença, Rosa, qualquer coisa, talvez uma hiperplasia prostática. Tem um nome pomposo, eu sei, mas é um padecimento ligeiro, adequado aos homens da minha idade. O senhor doutor encontra-se doente, havias de explicar com cortesia profissional aos pais, não pode dar consultas nas próximas três semanas. E distribuías os miúdos pelos colegas do consultório. O miúdo do furúnculo podia ficar com o médico novo. Ainda deve ter paciência para aturar os rapazinhos que antecipam para a meninice a boçalidade macha da idade adulta. Se gostasses de mim, Rosa, pegavas-me na mão, levavas-me para tua casa, que cheira à alfazema dos pout-pourris que espalhas pelos móveis de pinho e pelas bancadas de moleano, abrias a cama, corrias os estores, ligavas o rádio naquela estação que passa tangos e canções antigas. Depois, deitavas-te ao meu lado e adormecíamos.
2007/10/24
2007/10/23
Peru
Aquele gentinha, as pretas, cantam bem, não cantam? gorgolejou uma mulher muito gorda, tilintando pulseiras e braceletes, aconchegando os foles de carne à cinta tubular, anafada como um peru de Natal. Referia-se ao coro que acompanhara a missa das sete. O João largou a minha mão, soprou na venta e revirou os olhos. Por instantes temi que sovasse, ali na saída da igreja, a mulher-peru. Ela soltaria glus aflitos. Penas pardacentas esvoaçariam pelo templo. Um odor de tripas inundaria as escadarias e colar-se-ia ao corpo do sacerdote e dos acólitos. Acabaria a mulher-peru depenada, aos pés da imagem Nossa Senhora de Fátima, boazinha, mas tão feiinha.
(Tenho tanto orgulho no meu filho.)
(Tenho tanto orgulho no meu filho.)
He Fengming (DocLisboa)
São três horas de um único plano, ininterrupto. Uma mulher velha conta a história da sua vida e do seu país. Chama-se He Fengming. Acusada de direitista na China de Mao, viu a vida destruída até ao tutano pelo regime comunista. Foi reabilitada apenas em 1979. Não é um documentário fácil de se ver. Há momentos em que nos apetece desistir. Não há folguedos nem alegria. É preciso abstrairmo-nos das imagens e procurar o frenesim nas palavras. O grande auditório da culturgest estava quase vazio, muitos desistiram a meio, quando He Fengming se calou restava meia dúzia de espectadores na sala. Ao meu lado, um homem aguentou, estóico, até ao fim. Durante três horas mexeu-se na cadeira, procurando uma posição que lhe aliviasse o aborrecimento. Deu gargalhadinhas inusitadas como que a querer mostrar que não estava a dormir, não senhor, nem pensar, estava ali, atento, condoído com a miséria dos outros povos. Bastava olhar-lhe para as horrorosas sandálias, para o cabelo desleixado, para a malinha a tiracolo, sentir-lhe o bafo etilicamente morno quando soltava as gargalhadinhas de bruxa, para perceber que é dos tais que acha que todo o mal do mundo tem origem dos Estados Unidos. Suponho que, com tais gargalhadas, quisesse mostrar que, apesar de esquerdista, também ele possuía lucidez democrática para criticar os horrores do regime chinês. Insuportável. À saída, tive de escoar a minha arrelia. Pisei-lhe os metatarsos. Ele urrou de dor. Pedi desculpa e lancei-lhe um encantador sorriso amarelo. Sou muito boa na arte de sorrir amareladamente. Sai furibunda com o mundo. Sobretudo, comigo. Sem paciência para frioleiras culturais. Acontece-me muitas vezes.
2007/10/22
2007/10/21
Molesquines
Tenho embirração, grande, aos molesquines e às máquinas de café de cápsula. Assim que um objecto passa a estar na moda eu passo a odiá-lo com todo o meu empenho. Também me acontece o mesmo com os escritores. Desejo muitas vezes que os livros que leio, e gosto, não se tornem sucessos de venda. No íntimo, bem lá no íntimo, quero que mais ninguém os leia. Só assim poderei manter a sensação de exclusividade, singularidade que desenvolvo com certo livro. É uma reacção muito feminina, a minha, misto de posse e ciúme.
2007/10/19
Almeria
Não há terra mais feia em Estanha do que a de Almeria. As estufas cobrem mais de 25 mil hectares. Estendem-se por planícies, invadem os vales, trepam as montanhas, roubam terras ao mar. Os peublos são feios, carrancudos e as lojas foram substituídas por bancos. As auto-estradas de Almeria nunca descansam, nem às horas mais tardias. É preciso escoar o produto. Os camionistas cruzam-se com cartazes gigantes que mostram mulheres loiras, mui guapas, comendo meloas rosadas que têm corações de doçura. Nos cruzamentos de Almeria, cachos de homens magrebinos esperam que alguém lhes ofereça um dia de trabalho. Em Almeria vive o pastor mais triste do mundo. Os pimentos de Almeria são verdes, amarelos, vermelhos e laranja. Os tomates são repolhudos, excessivos, fazem lembrar os frades gulosos das histórias antigas. As tulipas e as coroas imperiais crescem em carreirinhos ordenados, tão lindas, orvalhadas de pesticidas e insecticidas. Almeria era uma terra muito pobre. Agora é uma terra rica em escravos.
2007/10/18
Formol
Quer que use a bigorna ou o martelo de aço? O homem fala-me com cortesia. Escolho o martelo e coloco as mãos sobre uma mesa que cheira a formol. Com golpes certeiros, infalíveis, parte-me as falanges, as falanginhas e as falangetas. Não dou pela dor. Estou morta há tanto tempo. Hão-de estar moídos os ossos das minhas mãos, penso, finalmente enforquei os dedos, estão quinados, mortinhos da silva, não há recuperação possível, acabou-se, por fim, o descanso. Agradeço-lhe o serviço e pergunto se também arranca globos oculares. Claro, tenho até um alicate especial que veio da Coreia e que é perfeito para esse tipo de trabalhos. É só marcar na agenda com a minha recepcionista!, e atira com as luvas de látex para dentro de um recipiente asséptico.
2007/10/17
Escafandro
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amem! disse Maria da Conceição e aspergiu-se abundantemente com água benta. Percorreu o corredor lateral. Uma mulher nova rezava em frente de São Domingos. Aos seus pés, um renque de flores artificiais ornamentava o altar do santo com uma paz de cemitério. Sentou-se na nave principal e pousou o missal no regaço não sem antes lançar um novo olhar à desconhecida que continuava a bichanar palavras de fé ao monge mendicante de pés descalços. Respirou fundo. Sentia-se bem dentro da igreja. Era como se Deus, pelas vidraças, lançasse mãos cheias de uma poeira brilhante que se transformava em consolo, paz e silêncio. Maria da Conceição gostava de passar ali o início da tarde, dormitando perto do Senhor Deus que nunca lhe falara, mas que a escutava sem azedume ou aborrecimento. Deixou-se estar. Um raio morno aqueceu-lhe o corpo, afagando-lhe o ventre e o rosto. Maria da Conceição fechou os olhos. Adormeceu. Sonhou com um castelo, propriedade de um gigante de cabeleira hirsuta e carranca embrutecida que fazia lembrar o rosto rude e provinciano do cura que celebrava a missa das oito. A cozinha do castelo estava atafulhada de açafates de vime cheios de duchesses, azevias e tarteletes fofas de doce de abóbora. O gigante do sonho fê-la acordar com um estremecimento. Olhou em redor e pareceu-lhe ver numa pilastra mais recuada uma sombra alta e ameaçadora. Os gigantes saltam muitas vezes dos sonhos para os locais adormecidos do mundo. Com a mão limpou um fio de baba que lhe escorria pela boca. Levantou-se. Antes de voltar a casa passaria pela pastelaria e pediria um bolo. Não um bolo seco, mas um desses bolos com creme que se comem com um garfinho e se acomodam em caixinhas de papel coloridas. À saída procurou um derradeiro conforto apalpando a madeira maciça das portadas. Passou as mãos nodosas pela madeira e, ao olhá-las, reparou nas veias saídas, nos sinais que a idade deixara como marcas cruéis na sua pele de velha. Olhou para a praça onde um grupo de raparigas mal vestidas montava uma banca. Uma delas aproximou-se e perguntou-lhe se não queria contribuir para Rede2000, uma organização finlandesa empenhada na erradicação da pobreza no mundo. O nosso país tem mais de dois milhões de pessoas que vivem numa situação de pobreza extrema, explicava a rapariga, tal traduz uma injustiça e constitui uma ofensa à dignidade pessoal e um desrespeito pelos direitos humanos. Espectáculos de luzes, concertos, acções de rua, tudo se faria para lembrar os que nada têm, continuava a rapariga mostrando um sorriso metálico e monstruoso. Maria da Conceição não sentia pena dos milhões de pobres que inundavam o mundo com a sua miséria e desalento. Sentia, isso sim, pena daquela rapariga que nunca experimentara na pele os raios de sol que entravam pelas vidraças da igreja e que envolviam o corpo como um escafandro morno de luz. Enfiou o missal bolso do casaco e soltou uma moeda de cinquenta cêntimos no regaço do homem que pedia na porta da igreja. Este, deixou de coçar os testículos e, sorrindo, lançou-lhe um hálito fétido de vinho barato.
2007/10/15
Supermodernizar
Entro na livraria do costume. Descubro que o Urbano Tavares Rodrigues tem um romance chamado Eterno Efémero. É um título bonito. Folheio-o. Às tantas, numa página qualquer, uma surpresa. Endereços electrónicos. Primeiro, a descrição de uma troca de mails entre desconhecidos. Depois, conta-se um encontro marcado no Picoas Plaza. Cerro imediatamente o rosto. Franzo-me. Torço o nariz. Não gosto disto. Demasiado concreto. Demasiado banal. Demasiado desinteressante. A temática poderia ser abordada, certamente já foi, pela corja de novos escritores merdosos que por aí se publica. Volto a colocá-lo no escaparate. Utilizando a terminologia buarquiana, que fica sempre bem, direi: Urbano, ouve o que te digo, nem toda a gente tem capacidade de se supermodernizar. Às vezes, quase sempre, são patéticos os velhos que, como tu, insistem em se supermodernizar. (Essa moça tá decidida a se supermodernizar/ Ela só samba escondida que é para ninguém reparar./ Faço-lhe um concerto de flauta e não lhe desperto emoção./ Ela quer ver o astronauta descer na televisão.)
Mariana
Sete saias tem Mariana
e um emprego em Miraflores
viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores.
Ssete carros vão chegando
pelas tardes de Belém
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém.
Não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
olha para mim
lá na terra onde morei
escutavapela rádio o folhetim.
Sete saias tem Mariana
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros, 1978
e um emprego em Miraflores
viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores.
Ssete carros vão chegando
pelas tardes de Belém
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém.
Não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
olha para mim
lá na terra onde morei
escutavapela rádio o folhetim.
Sete saias tem Mariana
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros, 1978
Marco António
Haviam de explicar ao Marco António que um político deve apresentar-se sempre bem escanhoado. Nunca, mesmo que seja num congresso do PSD, com uma barba rala de três dias. Os gaienses podem gostar do estilo moderno-desmazelado, mas o resto do país aprecia o escanhoamento perfeito, sinal de decência e asseio. Eu, mal o vi, imaginei-o a tresandar a perfume, mas com os pés e o prepúcio mal lavados.
2007/10/14
Xarope (4)
Agora, passados tantos anos, sou eu que preparo o xarope de cerveja preta e laranja para os meus filhos. Imito os gestos da minha mãe. Mal os oiço tossir, corro à despensa, à procura de uma cerveja. Depois, entretenho-me a fingir que sou uma mãe experiente, cheia de sabedoria, preparada para enfrentar, nem que seja com mezinhas e remédios caseiros, qualquer achaque dos filhos. Todavia, apesar de meu empenho, os matraquilhos pequenos, antes de o provarem, desatam aos gritos, a fugir por todas as divisões da casa, apavorados, renitentes em provar aquele remédio, de cor preta, de consistência e cheiro duvidoso. Nem sabem o que perdem. Por isso, é por culpa deles, única e exclusivamente deles, que, tal como acontecia na minha casa materna, acabo por ser eu a beber a totalidade do dito remédio. Pego na tacinha, ignoro o facto de estar sã da cabeça aos pés e bebo o precioso líquido. Todinho. Até ao fim. Glu, glu, glu. Já está.
Xarope (3)
Mas, voltando à personagem principal deste texto, o xarope de cerveja preta, era suposto bebermos uma colher daquele milagroso líquido de quatro em quatro horas. Ou de cinco em cinco horas. Ou de seis em seis. Já não sei. Acontece que eu, vítima do vício da gula, adorava o sabor daquele xarope. Não lhe resistia. Cada vez que me apanhava sozinha na cozinha, longe dos olhares recriminadores da minha mãe e da tia Dé, à sorrelfa, engolia uma colher do dito xarope. Às vezes, engolia duas. Outras ainda, três. Era tão sequiosa daquele líquido que, muitas vezes, ignorando as regras da boa educação, alarvemente, bebia o xarope da tacinha. Emborcava-o, directamente, da taça de vidro. O certo é que, quando, antes de nos deitarmos, a minha mãe ia à cozinha buscar o remédio para nos tratar as maleitas, encontrava, quase sempre, a tacinha vazia. Quando a via assim, esvaziada, olhava-me com aqueles olhos de menina que Deus lhe deu e, sem falar, dizia-me "É mesmo tontinha, a minha filha".
Xarope (2)
A minha mãe vertia o xarope para dentro de uma tacinha de vidro. Deixava-o arrefecer em cima da bancada de mármore da cozinha, entre a batedeira, a picadora, o copo misturador, o um, dois, três. Ali ficava o líquido castanho escuro, quase preto, perdido no meio da panóplia infernal dos ajudantes de cozinha da minha mãe. Os pequenos electrodomésticos domésticos são a perdição da minha mãe. É uma espécie de vício, que ela não consegue controlar. Tem tudo. Já teve tudo. Iogurteira, faca eléctrica, abridor de latas eléctrico, máquina para fazer sumos, máquina para fazer batidos, torradeiras, tostadeiras, fritadeiras, grelhadores, micro-ondas com mil e uma funções, máquinas de café. Sei lá que mais. Até de Goa ela os traz. Há dois anos, veio carregada com uma maquineta enorme que é o seu maior orgulho. Quando a trouxe, perante o nosso espanto, apressou-se a explicar. " Ó filhas, é que esta máquina não existe em Portugal. Serve para fazer as massalas". Nós desatámos às gargalhadas. Como se as massalas, essas misteriosas combinações de especiarias, de cheiros intensos e paladares surpreendentes, que ela costuma fazer, não pudessem continuar a ser feitos no copo misturador da Moulinex. A tal maquineta passou a ocupar o meio da bancada da cozinha. Destronou, assim, de uma forma injusta, a velha e cansada batedeira que, durante tantos anos, incansavelmente, a ajudou na preparação dos bolos, das tartes, das tortas, das mousses, dos gelados, das bavaroises.
Xarope (1)
Mal dava por mim, combalida, a dar uma tossidela mais profunda, um cof-cof-cof prolongado, corria a pedir à minha mãe que o fizesse. Ela acedia. Começava por lavar muito bem uma laranja. Com um garfo ou uma faca, perfurava-a em vários sítios. Depois de estropiado, colocava o fruto dentro de um tacho pequeno. Adicionava-lhe de seguida uma cerveja preta e várias colheres de açúcar. Levava aquela mistela ao lume. Deixava, depois, o preparado ferver durante longos minutos até que ganhasse a consistência de um caramelo líquido. E, assim, em pouco tempo, estava pronto o xarope caseiro. O tal que nos aliviaria das tosses cavernosas, da expectoração incomodativa, interminável, que nos enchia os pulmões, os brônquios, os bronquíolos, a traqueia e todos os restantes órgãos do sistema respiratório de um muco esverdeado e pegajoso.
2007/10/11
Anjuna
Viu passar-me no corredor. Disse-me qualquer coisa em mandarim. Depois em cantonês. Arregalou os olhos. Eu sorri. Exigi-lhe que traduzisse o que acabara de me dizer. Disse que não podia. Insisti. “Hoje está especialmente bonita. Se pudesse salvava-a desta cidade e fugia consigo para Goa, para a praia de Anjuna”. Eu dei uma gargalhada tolinha. Reparei, então, no Sr. Saraiva que, do biombo da secretaria, me espreitava as pernas. São infindáveis as maravilhas que uma saia travada preta e uns sapatos de salto alto clássicos fazem pela estima de uma mulher. Andei eu a fazer terapia durante um ano. Com o dinheiro que lá gastei podia ter comprado um guarda-roupa decente e resolvido o que em mim há a resolver.
Ornitorrinco
Or-ni-to-rrin-co. A menina leu a placa sibilando a palavra com calma. Depois esmagou o nariz contra as placas de plástico transparente que delimitavam a jaula. Era um bicho estranho, aquele. Tinha um bico como os patos, uns pés que se assemelhavam a barbatanas, o corpo coberto de pelos grossos e um rabo rectangular e achatado. E, lera a menina na placa, punha ovos como qualquer ave! Um bicho que era e não era. A menina ficou a olhar, durante algum tempo, para o ornitorrinco que, parado em cima de uma pedra, parecia alheio à estranheza que provocava nos que o observavam. Sabia o bicho que não tinha o privilégio da simplicidade. Os visitantes que o olhavam sentiam-se, muitas vezes, incomodados. Ou se é pássaro. Ou se é mamífero. Ou se é peixe. Não se pode é ser um bocadinho de tudo. Nem se pode ignorar a primordial importância das classificações, das divisões em espécies, grupos, géneros, segundo características pré determinadas. A menina repetiu o nome baixinho. Ornitorrinco, ornitorrinco, ornitorrinco. Era uma palavra difícil de repetir. Dizia-a e sentia a boca encher-se de pedras. Olhou em redor e não viu nenhuma cara conhecida. Procurou os colegas. Estavam já longe. A menina correu a juntar-se ao seu grupo. A professora deu-lhe a mão e censurou-lhe o atraso com um olhar brando. Depois continuou. E aqui estão os furões, as doninhas, as lontras e os texugos e as toupeiras.
(o Menezes é parecido com um furão, o Ângelo Correia com um texugo, o Eurico de Melo é uma toupeira, velha e cega.)
(o Menezes é parecido com um furão, o Ângelo Correia com um texugo, o Eurico de Melo é uma toupeira, velha e cega.)
2007/10/09
Cemitério
Não é legítimo comparar os tipos que, em Agosto, invadiram um milheiral com os que, agora, vandalizaram o cemitério judeu. Os activistas que invadiram o tal campo de milho são só imbecis. Já os outros, sendo imbecis, são também perigosos. Querer meter tudo no mesmo saco, como fazem alguns, é inaceitável.
Intimidade
Fui ao TNDM ver “A Minha Mulher”. A Mila gabara-me o texto, do José Maria Vieira Mendes, dizendo que lhe fazia lembrar Tchekhov. A Mila, a minha querida Mila, pode dizer estas coisas porque foi a mais bela Elena Andreevna que esta cidade conheceu. A mim, pobre coitada que só fiz de velha numa peça muito chata do Graham Greene, fez-me lembrar um filme do Woody Allen. Não digo qual.
Galinhas
Há muitos anos que vou sozinha ao cinema e ao teatro. E gosto. As companhias interrompem o sossego. Estragam tudo. Uma pessoa sai do lusco-fusco da sala, de olhitos piscos, e leva logo com uma bateria de perguntas parvas. As companhias, em regra, dão muitas gargalhadinhas. Parecem galinhas cacarejando furiosamente. Têm necessidade de acabar com a ficção. Querem a realidade de volta. Custa-lhes o silêncio. Eu gosto do silêncio.
Cidade Proibida
Comprei o livro do Eduardo Pitta. O ambiente gay-chique, de engates no Lux e compras na Avenida da Liberdade, dá-me arrepios na espinha. Não gosto do Rupert, nem do Martim, nem tampouco do Vasco. Não gosto, confesso, do livro. Tenho pena. Gostava de gostar de o ler. Não sei bem porquê. Ficou-me só a vertigem erótica, brusca, que, por vezes, o romance transpira. (Não percebo a razão pela qual, na tábua de personagens, só as homossexuais e bissexuais têm direito a ser caracterizadas com base na sua orientação sexual. Cheira-me a discriminação.)
2007/10/08
Goa
Ela: O avô é indiano!
Ele: Não é nada!
Ela: É, é!
Ele: Não, sua parva! Ele já me explicou que é burguês.
Deixo de esfregar o tabuleiro e viro-me. Burguês? Só depois percebo que burguês é parecido com goês. Bem feito para o meu pai que insiste que ser goês é diferente de ser indiano. Goa, para ele, e para muitos, é um reduto de civilidade católica no meio da bárbara Índia. Não sei se é assim. O sistema de castas, odioso e insustentável, entrelaça também a sociedade goesa. Brâmanes, Chardós, Shudras. Uma talagarça de desprezo mútuo cobrindo tudo. Na boca do neto, o meu pai não é indiano. Nem sequer goês. É burguês. Não corrijo o João. Meto os Kaiser Chiefs a gritar no leitor de cds e damos início ao campeonato de atirar comida à boca. Atiramos pedaços de pão ou de fruta ao ar e tentamos apanhá-los com a boca. Eles ficam impressionados com a minha pontaria. A Madalena é deliciosamente batoteira. O João não. O chão da cozinha acaba repleto de quadradinhos de pêra e metades de morangos.
Ele: Não é nada!
Ela: É, é!
Ele: Não, sua parva! Ele já me explicou que é burguês.
Deixo de esfregar o tabuleiro e viro-me. Burguês? Só depois percebo que burguês é parecido com goês. Bem feito para o meu pai que insiste que ser goês é diferente de ser indiano. Goa, para ele, e para muitos, é um reduto de civilidade católica no meio da bárbara Índia. Não sei se é assim. O sistema de castas, odioso e insustentável, entrelaça também a sociedade goesa. Brâmanes, Chardós, Shudras. Uma talagarça de desprezo mútuo cobrindo tudo. Na boca do neto, o meu pai não é indiano. Nem sequer goês. É burguês. Não corrijo o João. Meto os Kaiser Chiefs a gritar no leitor de cds e damos início ao campeonato de atirar comida à boca. Atiramos pedaços de pão ou de fruta ao ar e tentamos apanhá-los com a boca. Eles ficam impressionados com a minha pontaria. A Madalena é deliciosamente batoteira. O João não. O chão da cozinha acaba repleto de quadradinhos de pêra e metades de morangos.
2007/10/07
Insónia
Não sei como aconteceu. Tal nunca me tinha acontecido. Senti o carro bater em qualquer coisa. Num corpo, talvez. Uma espécie de gemido entrou pelas frestas do vidro e segredou-me qualquer coisa ao ouvido. Fiquei à espera. Quando saí do carro percebi que havia uma poça de sangue no alcatrão. O sangue era espesso. Imaginei-o de uma mornidão confortável. Olhei em redor e para cima. Os prédios dormiam sossegados e o vento da madrugada restolhava nas árvores feias do bairro. Olhei em redor e não vi ninguém. Voltei para casa e adormeci. Dormi como há muito não dormia. Não sonhei com caminhos de poeira. Nem com compotas de amoras. Nem com o corpo que ficou na estrada de Sacavém.
2007/10/06
Wittgenstein
Não me tenho em grande consideração. Tal deve-se, em parte, ao facto de ser frígida. Ser frígida é como ser maneta ou perneta. Um aborrecimento. Por muito que uma pessoa encare com normalidade a deficiência que tem, sente sempre que lhe falta qualquer coisa. Todavia, há momentos em que a minha estima se descontrola e galopa, num trote desenfreado, estrada acima. Como, por exemplo, quando faço um bóbó de camarão decente, quando corro dez quilómetros ou quando percebo que não sei, nem quero saber, quem foi o Wittgenstein.
Deus
Ainda não percebi se o meu filho acredita em Deus. Ter um pai crente e uma mãe descrente, que disfarça, sem habilidade, a ausência de fé, não ajuda a assentar ideias sobre o assunto. Ando a ganhar coragem para chegar perto dele e, de chofre, como se fosse a coisa mais natural do mundo, lhe perguntar se acredita em Deus. Não sei que resposta me dará. Mas sei a pergunta que me fará (e tu, mãe? acreditas?).
2007/10/04
Gardel
Algerozes, peanha, sótão, Chelas, leques, charola, Benfica, rio, silêncio, bruma, gelosia, pagela, viço, discjoquei, bailis, canja, nardos, plátanos, faias, olmos, loendros, limoeiro, terrina, copos, cristal, Cláudia, Graça, Álvaro, Nuno, Cristiana.
(Os livros, os que interessam, sangram como gente. São farpas que se enterram na carne.)
(Os livros, os que interessam, sangram como gente. São farpas que se enterram na carne.)
Pontuação
Não sou capaz de utilizar pontos de exclamação. Cada vez que escrevo uma frase e a faço terminar num ponto de exclamação, fico a olhar para ela. Ela também me olha. Muitas vezes, penso “Se esta frase terminar num ponto de exclamação nunca poderá ser dita por mim”. Por isso, quase sempre, acabo por substituir o ponto de exclamação pelo ponto final. De vez em quando, releio o texto e, em determinada frase, arrisco utilizar, de novo, o ponto de exclamação. Esta batalha entre pontos - o final e o de exclamação - dura, por vezes, muito tempo. Quase sempre sai vitorioso o ponto final que, triunfante, retira toda a emoção que determinada frase poderia ou quereria transmitir.
Há, no entanto, quem use e abuse do ponto de exclamação. As pessoas querem mostrar vidas cheias de emoções, boas e más, e por isso usam e abusam do ponto de exclamação. Mas quantas destas pessoas não terão vidas desinteressantes tal qual a minha? Há até quem utilize mais do que um ponto de exclamação na mesma frase. Isso enerva-me tanto! (agora tinha mesmo de utilizar um ponto de exclamação. É que não me enerva muito. Enerva-me muitíssimo). Para exprimir surpresa, excitação, seja lá o que for, basta utilizar um ponto de exclamação. Quando leio uma frase que termina numa sequência, por vezes, interminável, de pontos de exclamação, penso logo em gente histérica, a quem, se pudesse, administraria doses cavalares de sedativos e tranquilizantes. Ou, então, esbofetearia até sangrarem o entusiasmo pelas fissuras da pele. Se eu fosse um ponto, um sinal, seria, definitivamente, as reticências. Tal como as reticências nas frases, também eu estou sempre a marcar uma interrupção na vida, sem coragem para lhe completar o sentido.
2007/10/03
Nojo
Uma colega perguntou-me, há tempos, se conhecia um bom dentista para miúdos. Dei-lhe indicação do médico que trata da boca dos meus filhos. Ela marcou uma consulta para a filha de cinco anos. Hoje, em conversa, perto da máquina dos cafés, já não sei a que propósito, voltei a gabar o médico. Avisei-a que não lhe estranhasse os modos, era um homem muito feminino, uma borboleta delicada, com infinita paciência para as lamechices das criancinhas. A minha colega quase que se engasgou com o capucino de fingimento que a máquina lhe depositara nas mãos. Perguntou-me se o médico era homossexual. Expliquei-lhe que não sabia, mas que já o encontrara no teatro duas vezes com um homem que parecia ser o seu companheiro. A minha colega soltou um espontâneo “ai, que nojo!”, depois disse que ia desmarcar a consulta. Tive pena da minha colega. Deve ser profundamente triste ser-se assim.
Eduardo Sá
Nunca poria os meus filhos nas mãos de um psicólogo que usa um penteado patético para esconder a careca.
2007/10/01
Hana-bi
Mamã, o que é uma vagina?, pergunta de rajada, sem me olhar, enquanto traga com sofreguidão os pedaços que farinheira que encontra no prato de cozido. É um outro nome que se dá ao pipi das mulheres, digo-lhe, consciente do ridículo da minha resposta. Enfio uma colher de sopa de espinafres na boca da estrela da tarde. Que sorri, maravilhada, ao ouvir a palavra pipi. Ele dá uma gargalhada. Daquelas que só ele sabe dar. Uma gargalhada que parece fogo de artifício a rebentar. Da boca, saem-lhe fogos de benguela, petardos e foguetes. Que nome tão estúpido!, diz, cansado de tanto rir. Eu, mãe e mulher, consciente do valor primordial da vagina, defensora da superioridade vaginal, riposto. Digo-lhe que pénis é um nome tão estúpido como vagina. Confiante, continuo a alimentar a estrela da tarde. Ele parece não me ouvir. Continua interessado no prato de cozido. Já comeu toda a farinheira. Dedica-se, agora, a procurar os pedaços de chouriço. Olha-me com olhos de desafio. Por fim, pergunta-me o que é um pénis.
(Era tão querido quando era pequenino. Agora, está à beira de se tornar num adolescente imbecil.)
(Era tão querido quando era pequenino. Agora, está à beira de se tornar num adolescente imbecil.)
Menezes
Há uma arrogância muito grande na elite social-democrata que agora vaticina o descalabro do PSD. No Luis Filipe Menezes vêem um monstro populista. Nos seus apoiantes uma matilha esfaimada prestes a enterrar o dente no primeiro naco de carne que encontrarem. Nas bases, que elegeram democraticamente um líder, uns tolos ignorantes e dementes. A coisa não andará muito longe da verdade. É certo. Porém, o que não se suporta é que os que agora apregoam loas ao Marques Mendes sejam os mesmos que nunca o apoiaram abertamente. Concederam-lhe o apoio como quem dá uma esmola. Trataram-no com displicência, como um mal menor. Petulantes, convenceram-se de que bastaria um pequeno esforço, uma pequena indicação, um breve sinal, para que o povo laranja, obediente, reelegesse o candidato por eles escolhido. Enganaram-se. Bem-feito.
2007/09/30
Prédio
O prédio onde os meus pais moram, a pouco e pouco, começa a ser um prédio de viúvos e viúvas. A vizinha do 6º direito disfarça a solidão com copinhos de licor de café. O coronel do 1º direito esperou que a mulher morresse, tanto que demorou, para casar com uma loira de rugas fundas e voz nasalada. O Sr. Ribeiro passa os dias a caminho do supermercado. Vejo-o chegar, carregado de sacos. A D. Lúcia sempre que me apanha no elevador gaba-me a beleza do marido. Era um belo homem, era um grande homem, diz ela, enquanto eu baixo os olhos. O marido dela era muito pequeno, quase anão, mirrado, encolhido como um roedor. A D. Odete, que fez arranjos de costura a vida toda, educa os netos à medida que as filhas se divorciam e arranjam novos companheiros. Entristeço ao vê-los. Sou mais filha que mãe.
2007/09/28
2007/09/27
Chuinga
No quiosque da estação peço uma pastilha. Apetece-me uma chuinga. É assim que a minha mãe chamava, e continua a chamar, às pastilhas elásticas. Quando era pequena ficava a olhar-lhe para a boca e a pensar na estranheza da palavra que de lá fugia. Chuinga? Só mais tarde percebi a origem da palavra que, volta e meia, bailava na boca da minha mãe. Chewing-gum. Olho para as prateleiras das pastilhas. Uma panóplia de sabores. Ananás, azul explosivo, coca-cola, maçã, algodão doce, melão, morango, laranja, amora e por aí fora. Assusto-me com tanta variedade. Reparo, então, num daqueles boiões que antigamente se usavam nas mercearias para guardar rebuçados e caramelos. Está cheio de pastilhas, melhor dizendo, de chuingas maçadoras, de forma rectangular. Têm um rótulo pouco colorido, pouco apelativo. Estão definitivamente remetidas ao esquecimento. Ora, eu não gosto de discriminações. E nestas coisas sou sempre pelas minorias. Mesmo quando a minoria é imbecil, torpe, composta pelos proscritos, pela escumalha. É um defeito meu. Peço, por isso, à senhora do quiosque uma pastilha daquele frasco. Uma pastilha diferente da maioria alegre e explosiva de babulicious, gorilas e boomers. Desembrulho-a e meto-a à boca. Primeiro, estranho-lhe o sabor. Tem um sabor antigo, levemente decadente, que identifico depois. Sabe a circo, à feira popular, a Setúbal, aos gelados de cone que um velho espanhol, de olhar lascivo, vendia nos portões do ciclo preparatório.
2007/09/26
Umbigo
O umbigo é uma coisa muito feia. Acumula bocadinhos de cotão, cria crostas pequeninas e quando a gente enterra nele um dedo traz um cheiro sujo, levemente azedo. Nem os mais atentos conseguem mantê-lo limpo e asseado. É a cova que esconde o nosso corpo. É um ponto que se esquece. Faz lembrar a cratera de um vulcão. É uma costura. Um remate. Um ponto final cheio de interrogações.
Aninhas (lembrete)
Aninhas aplicava-se no engano, na dissimulação, no engodo, na traição. Não praticava o adultério com leviandade ou despropósito. Pelo contrário. Esforçava-se. Nunca desperdiçava oportunidades. Estava sempre atenta e disponível. Empenhava-se em iludir o marido como outras mulheres se empenham em ser boas esposas, boas mães, boas cozinheiras, boas profissionais. Quanto mais conhecia outros homens mais gostava do seu.
PSD
Há duas coisas que me atormentam no PSD: a primeira é o corte de cabelo dos seus barões, a segunda é a mediocridade dos seus candidatos a líder. Eu, confesso, até gostava de me empenhar na vida partidária, discutir, vestir a camisola, militar, participar no debate político, assumir, de uma vez por todas, depois de tantos anos de vagabundagem, que sou social-democrata. Não consigo. Acanho-me, envergonho-me. Nos dias que correm é-me mais fácil assumir a algidez do que a simpatia partidária.
2007/09/24
Goa
Não sei explicar a noite. Não gosto da noite. Só as noites em Goa me trouxeram sossego e felicidade. Assim que o meu pai adormecia, corria a buscar uma cerveja ao frigorífico e fugia para o terraço. Arrastava uma cadeira para a beirinha do estendal, afastava as roupas tesas que a Caetaninha deixava estendidas pela manhã e acendia um cigarro. Esse era o instante preciso em que a noite se transformava. Tornava-se mais intensa, ficava com corpo de mulher e eu encostava-me nela. Passei as noites ali, no terraço, olhando a linha da estrada que leva ao Seminário de Rachol. Escutava os ruídos: pássaros, matilhas de cães passando nas várzeas, o vento afagando as folhas do tamarindo, chupando-lhe o azedo dos frutos, o sacolejar da cerveja dentro da garrafa, os deuses brincando junto do tulsi, a ventoinha no quarto do meu pai. Pelas frestas do telhado chegava-me, por vezes, o ressonar da tia Maria e os soluços do Cristo falante. Chora o Cristo falante noites inteiras porque tem saudades do tio Rosário. Eu sei que tem. À noite, o mundo reduzia-se aos seus sons e na sua penumbra só eu existia.
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