2011/04/29

Pita Shoarma

O João levou-me a jantar a uma roulotte perto do campo de futebol do sacavenense. Fiquei no carro durante algum tempo porque, no banco de trás, dormia o mais pequeno, empanzinado de canja de galinha e feijoada que sobrara do almoço. Durante algum tempo, zelei pelo sono do mais novo e observei o João, tratando do nosso jantar, pedindo duas pitas shoarmas, uma cerveja para mim, um sumol de laranja para ele, orgulhoso de me proporcionar uma experiência ao estilo do Anthony Bourdain, homem que sabe ser do meu agrado. Ali estava o meu filho recém adolescente, moreno, tisnado do sol, olhos redondos, as mãos enfiadas nos bolsos, ao balcão da roulotte. Dois homens bebiam imperiais. Outros comentavam o jogo do Benfica. Os brasileiros tiravam tirinhas do naco de carne que rodava lentamente no espeto. Apreciavam, com extraordinárias vozes de falsete, as formas físicas da futura rainha de Inglaterra. O meu filho, percebi-o bem, estava feliz por estar ali. De vez em quando, enquanto aguardava pelo pedido, olhava-me de soslaio e, sorrindo, parecia dizer-me assim: isto é o que sou, digo Telémaco, Penélope, Ulisses, leio os livros que escolhes para mim, mas não me obrigues a ir a concertos, a exposições de pintura, poupa-me ao martírio do cinema francês, não me amachuques mais a virilidade, não me lixes a adolescência com a tua sensibilidade feminina.

(A Dá, muito intuitiva, diz frequentemente que o João é o meu filho preferido. Digo-lhe sempre que não, que não tenho filhos preferidos, mas tenho.)

2011/04/27

L' appartement



(São tão bonitos, os franceses. Também os há feios. Mas falam francês.)

Humilhação

Vou participar numa prova. É uma prova pequena, quase doméstica. Explicaram-me que é conveniente traçar um objectivo para cada prova. Já defini o meu. Não é terminar a prova. Estou habituada a correr mais do que a distância do percurso. Também não é terminar a prova em determinado tempo. Estou a borrifar-me para o tempo. O meu objectivo é terminar a prova antes dos cinco homens com quem vou correr. Dois deles são favas contadas. Duvido que cheguem ao fim. Um é fotógrafo e vai parar de dez em dez metros para tirar fotografias. O outro já dormiu comigo na mesma cama. Conheço-lhe a inaptidão física. Os outros três, é que me preocupam. Não são fumadores, não bebem tequillas noite fora e tenho-os encontrado, ao final da tarde, a treinar. O meu desprezo pelo género masculino é assumido. Aliás, humilha-me profundamente continuar a gostar de homens. Fosse eu uma mulher coerente com os meus princípios e já há muito me teria tornado lésbica. Adiante. Os homens não chegam aos calcanhares das mulheres. Quero, por isso, mostrar a estes cinco que sou melhor do que qualquer um deles. Quero chegar ao fim e vê-los atrás de mim, língua de fora, bufando de humilhação.

2011/04/26

Entranhas

Angustia-me que o psd não se apresente como alternativa credível e consistente ao eleitorado. Como muita gente, ando com o meu voto nas mãos, sem saber a quem o dar. A inabilidade e a fraqueza do psd não me dão vontade de rir. Dá-me vontade de chorar, de pegar na canalha e fugir para um país do sul. Há, porém, quem se delicie com a miséria do psd. Batem palmas. Soltam gargalhadas sonoras. Fazem comentários jocosos. Gozar assim com a sorte deste país é uma coisa um bocado ordinária.

(No sábado, escutei a Clara Ferreira Alves durante cinco minutos no Eixo do Mal. Não a ouvi durante mais tempo porque não fui capaz. Revolveram-se-me as entranhas, mas dissiparam-se-me as dúvidas.)

2011/04/25

José



(resíduos de lar.)

2011/04/20

Catinga

Três dias no sopé da serra. Os meninos brincaram com a neve. A menina espantou-se por ser gelada e branca. O menino deslizou, veloz, no seu trenó vermelho. Passaram horas na água tépida e sem vida da piscina. O pai conviveu com os colegas, gestores, directores, auditores, consultores. Ao jantar, conversaram, entre outras coisas, sobre técnicas de despedimento. Um homem de olhos pequeninos, sorriso boçal, afagando o seu black berry, gabou-se da sua perícia. "Não me custa nada ter de despedir alguém. Já estou habituado. Quando estive em Angola, despedi uma preta só porque ela cheirava mal". A mulher do homem de olhos pequeninos – vesga, cabelo impecavelmente arranjado –, afagando ela também o seu telefone, sorriu, orgulhosa da competência do marido. A mãe passou o fim-de-semana ausente, a roer as unhas que prometera deixar crescer, a fumar cigarros e a beber copos de vinho tinto, com vontade de adormecer e acordar noutro sítio qualquer.

(pretérito mais que imperfeito.)

2011/04/19

Tindersticks



(Trancão-Escultura José de Guimarães)

Semana Santa

Um grupo de mulheres reza o terço numa salinha de paredes envidraçadas. A ladainha sai-lhes da boca, monocórdica, espalha-se pela nave da igreja, abafa o ruído que vem de fora. Estão naquilo muito tempo. Largam ave-marias, pais-nossos e jaculatórias, em catadupa, mistério a mistério, percorrem a vida de cristo, do nascimento sem pecado à agonia de um corpo nu crucificado. Pouco antes da salve-rainha, quando estão prestes a terminar, as suas vozes ganham certo alento. Será fé ou simplesmente alívio? Por fim, lançam-se num cântico desafinado que me chega como uma massa indistinta, sem palavras ou significado. Emudece-lhes então a voz. Escuta-se o roçagar das saias, o som seco dos missais a fechar, o chiar das solas de borracha dos sapatos ortopédicos no chão encerado. Saem da salinha do terço, pequenas, apressadas, consoladas. As mulheres que rezam o terço são velhas. O corpo perdeu há muito a doçura das formas femininas, não têm anca, nem mamas, nem ventre. O corpo tornou-se numa carapaça baça, jaspeada, e os membros, levemente arqueados, truncados, lembram pinças e tenazes. Quando falam soltam bolhas de água de mar. Atravessam a igreja com os seus passos pequenos de crustáceo. Sentam-se nos bancos que ficam junto do altar. Esperam a missa das seis.

2011/04/18

Acordar

Foi assim durante muito tempo. O meu despertar era sempre igual. Acordava triste e desesperada. Procurava o corpo na penumbra do quarto, desejando não o encontrar. Talvez alguém, durante o sono, compandecendo-se da minha dor, o tivesse levado para longe. Quando o encontrava, ao meu corpo, adormecido a um canto qualquer, pontapeava-o com violência para que se erguesse. Como se fosse um vagabundo que se despreza. Erguia-se o meu corpo, tão estiolado, tão frágil, entrava dentro dele e corria à cozinha a arranjar os pequenos-almoços dos meus filhos. Habituei-me à tristeza, que é como a solidão, fere, mas deixa em nós qualquer coisa, bela e única, que não se sabe explicar. Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de cerveja. Nunca me habituei, no entanto, ao desespero, ao choro louco, ao conforto das imagens sombrias, um parapeito para saltar, um rio de água barrenta, os bolsos cheios de pedras, os pulsos cortados com uma lâmina, lágrimas de sangue empapando a alcatifa cor de laranja do escritório do meu pai, sessenta comprimidos letais tomados ao pequeno-almoço como no poema. Hoje, não sei explicar porquê, voltei a acordar triste. Não me importo que a tristeza volte. Se vier só, abro-lhe a porta, deixo-a instalar-se dentro de mim. É o desespero que me assusta.

2011/04/15

Entorse

Por culpa dele torci um pé. Era altura do Natal. Andava eufórica porque, pela primeira vez, os meus pais me tinham autorizado a passar o fim de ano com um grupo de amigos. Uns dias antes, uma amiga oferecera-me uma cassete, preciosa, que ainda hoje guardo. De um lado, gravara várias canções do "Escritor de Canções" do Sérgio Godinho. Do outro lado, gravara outras tantas do "Por este Rio Acima". Ouvi esta cassete vezes sem conta, centenas de vezes, milhares talvez. As canções do Fausto punham-me em estado de euforia. Despertavam em mim uma vontade desenfreada de dançar. Ignorando os olhares trocistas do meu pai e os gritinhos preocupados da tia Dé - ó filha, olha que tu cais! - punha-me a dançar as canções do Fausto, bem no meio da sala, sob o olhar severo das divindades hindus, trazidas pelos meus pais da Índia. Mulheres serpentes. Homens com quatro braços e rosto de elefante. Ganesh, Shiva, Krisna, com os corpos delineados, esculpidos na madeira perfumada do sândalo, olhavam-me com espanto, não reconhecendo aquele dançar tão diferente do das suas terras longínquas. Era um dançar não contido. Não me limitava a abanar a anca ou a mexer os pezinhos. Aquela música entrava dentro de mim e fazia mexer todas as partes do meu corpo. Cheguei mesmo a aprender alguns passos de folclore que se adequavam perfeitamente ao ritmo daquelas canções. Foi num desses devaneios pela dança tradicional, entre saltos e pulos, com os braços no ar, a dar uma pirueta, que torci um pé. Ainda me lembro das gargalhadas da mana, da aflição das minhas mães, do meu pânico perante a iminência de, por causa de uma entorse (mas que entorse!), voltar a passar o fim de ano na companhia dos meus pais com doze passas na mão.

Tenho certo orgulho no episódio da entorse. Assim como tenho um orgulho um bocado parvo em gostar das canções do Fausto como gosto. Não sou capaz de o ouvir sentada numa cadeira como se estivesse a assistir a um recital de piano. Faço sempre figuras tristes nos concertos. Canto as canções aos gritos e danço. Comovo-me com a limpidez da sua voz e com a poesia das suas palavras. Se, no Sérgio Godinho, gosto da capacidade de se adaptar a novos ritmos e a novas sonoridades, no Fausto, gosto precisamente do contrário. As canções de agora podiam ser as canções de ontem. E vice-versa. É por gostar tanto das suas canções que me entristece um país que lhe não reconhece o valor. Dos meus colegas de faculdade, do círculo de amigos de então, muitos deles de esquerda, seja lá o que isso for, nunca conheci nenhum que amasse verdadeiramente o Fausto. Mentira. Havia um: o Rui. Mas o Rui era um caso muito especial. De direita, conservador, precocemente alcoólico, monárquico, excessivo em muita coisa, amava, acima de tudo, acima dos rótulos e das etiquetas, a música, os livros e as palavras. Já os outros, os semi-etilizados que, como eu, deambulavam pelo Bairro Alto, que se deslumbravam com o PSR, diziam gostar do Fausto. No entanto, o único disco que lhe conheciam era o "Por Este Rio Acima". Sim, pá, claro que gosto!”, e bebiam mais uma pinguinha de cerveja para acicatar o ser revolucionário. Um tipo de esquerda sabe que tem meia dúzia de obrigações a cumprir. Uma delas é dizer que gosta do José Mário Branco, do Fausto e do Sérgio Godinho. Gosto do "Navegar, Navegar". Quando diziam isto, tornava-se claro, óbvio, cristalino, que não conheciam a ponta de um corno da discografia do Fausto. O Fausto merecia veneração, devoção, admiração, reconhecimento. Digo mais. Merecia outro país.

(À conta do facebook - que previsivelmente abomino e dispenso - a minha irmã fez chegar este texto antigo ao Fausto. Diz que o leu e sorriu. Meu rico cantor maldito. Viesses tu à minha beira e mimava-te como a um gaiato pequeno.)

2011/04/14

Mariana das Sete Saias



(amo este homem, mas é que amo mesmo, e amo esta canção.)

Reflexão Dominical

Foi então que resolveu aproveitar as noites de domingo para pensar. Não há assunto que a intimide. Espanta-se com os seus pensamentos, alguns de inesperada elevação, outros assim-assim, outros maçadores que lhe entram pela cabeça dentro sem pedir autorização. Em certa ocasião, não foi há muito tempo, deu consigo a pensar na dívida pública. O marido em cima dela, como uma lapa agarrada a uma rocha, ela a pensar na crise financeira e no FMI. Assustou-se. Quando está na cama com o marido, à espera que se despache, Odete gosta de reflectir sobre assuntos que tenham a ver com a ocasião. Pensa em sexo e em tudo o que possa estar relacionado com o tema. Por exemplo, no passado domingo, enquanto esperava o orgasmo do marido, debruçou-se sobre a seguinte questão: um transexual que se apaixona por uma pessoa do mesmo sexo é heterossexual ou é homossexual? Pensou, pensou, pensou muito e não chegou a conclusões satisfatórias.

A cama, é nisso que hoje pensa, mostra como as mulheres são seres mais evoluídos e inteligentes do que os homens. Parece a Odete que a arte do fingimento, essencial à sobrevivência das mulheres na cama, exige sofisticação. Foram precisos anos e anos de evolução da espécie humana para as mulheres chegarem ao patamar de fingimento em que estão hoje. Desconfia que as mulheres primitivas, as australopitecas e pitecampropas, cada vez que eram penetradas, grunhiam, urravam, arranhavam, arrancavam o pelame, desesperadas com tamanha dor e desilusão. Odete não tem dúvidas de que muitas, depois do coito, pegaram numa marreta e, com os músculos da vagina ainda a latejar, fizeram justiça pelas próprias mãos. À conta da pureza dessas primitivas mulheres, não sabiam fingir, não sabiam padecer em silêncio, deve ter havido muita mortandade nos tempos antigos. Foi preciso uma evolução grande para as mulheres aprenderem a fingir.

É assim que Odete pensa enquanto espera. O marido, entretanto, já lhe puxou as cuecas para baixo e já aproximou o volume duro do pénis. Odete continua. As mulheres foram, ao longo dos tempos, apurando o fingimento. Aprender a gemer, a impar, a revirar os olhos foi um marco decisivo na evolução. Ficam os homens mais excitados e o martírio acaba depressa. As mulheres, conclui Odete, aprenderam a fingir e essa aprendizagem, essa especialização, apurada e íntima do seu género, mostra que, para além de abnegadas, dão o que têm e o que não têm, são inteligentes. Afinal, remata, a cama mostra que as mulheres são mais sofisticadas e inteligentes do que os homens. É no preciso instante em que termina o seu raciocínio, talvez um pouco confuso, que o marido a penetra. Com violência, enterrando-se nela, no seu buraco escuro de paredes ásperas. Custa-lhe sempre esse momento. Odete não se habituou ainda a ter aquele pedaço de carne dentro de si. Reconhece então que de pouco vale às mulheres a inteligência e a sofisticação. O que interessa é a força física de um corpo capaz de amedrontar outro.

2011/04/13

Mulheres Cantoras

Fiz um esforço para acabar o último livro da Lídia Jorge, eu que gosto de a ler. Nem a morte de Madalena Micaia me tocou, nem a ambição voraz de Gisela Batista me assustou. E estremeci quando encontrei escrita a palavra que mais odeio na língua portuguesa. É uma palavra inócua, com um significado insignificante, mas não a suporto. Não sou capaz de a dizer, muito menos de a escrever, e se alguém, falando comigo, a soltar da boca, fica marcada a ferro e fogo. O facto da Lídia Jorge ter escrito a tal palavra é coisa que me desgosta profundamente. Hei-de matar a desilusão que é este livro assim como mato a desilusão que, por vezes, trazem as pessoas que amo. Lido o livro, gostei do epílogo. Pouco mais.

2011/04/12

Dia Mau



(efeitos secundários da poesia.)

Câmara Lenta

Estavam quatro negros magníficos, de uma negritude muito intensa, quase azul, a jogar basquetebol no pavilhão do estádio universitário. Sentei-me a olhá-los. Jogavam sem empenho, utilizando apenas uma tabela, movimentando o peso do corpo com agilidade, mas sem eficácia. Volta e meia, soltavam gargalhadas ruidosas que vinham em cascata. Falavam numa língua que não consegui identificar, era uma língua corrida, de vogais muito abertas. Apenas uma vez um dos jogadores pareceu concentrar-se no jogo. Fez pontaria à tabela, a bola desenhou um arco perfeito e entrou no cesto. Nesse instante, não sei como o fiz, os meus olhos desaceleraram e consegui ver o negro azul em câmara lenta.

Cicciolina

A escolha do Fernando Nobre para ser cabeça de lista do PSD pelo círculo eleitoral de Lisboa e, em caso de vitória do partido, indicado para o cargo de presidente da Assembleia da República não é má. É péssima. Voltamos ao mesmo. É uma opção determinada pela fome de ganhar meia dúzia de votos. Os estrategas do PSD pretendem com tão miserável opção captar o voto de certa esquerda arejada - essa que vive em apartamentos de tectos estucados, passa férias em hotéis de charme e lê, com certo despeito, os livros da Agustina. A última coisa que o PSD deve fazer é entrar nesta engrenagem, lançando nomes, mais ou menos mediáticos, para ir buscar um voto ali, outro acolá. Não tarda nada, metem nas listas um homossexual, não pelo seu mérito, mas porque querem chegar ao eleitorado gay. Metem uma qualquer actriz de olhos bonitos, não pelo conhecimento que tenha sobre os assuntos de estado, mas para chegar aos intelectuais diletantes que se passeiam pelos teatros e auditórios. Antes uma Cicciolina, de sorriso imbecil, uma fiada de flores frescas na cabeça, que vá passear as tetas para o parlamento. É um péssimo arranque. É para o seu eleitorado que o PSD se deve voltar e esse quer sinceridade, alguma decência. Ao PSD, se o souber fazer, compete assumir aquilo que é. Sem querer parecer-se com o PS. É altura de mostrar as diferenças e não as semelhanças.

2011/04/11

Mosto

Pagava o preço no guichet da entrada. Atrás do vidro engordurado, um velho aprumado registava-lhe o nome num caderno de folhas de papel almaço. Entrava no bar. Um balcão longo em forma de s. Uma escuridão que se colava aos corpos. Olhava as raparigas disponíveis. Não lhe interessava se eram bonitas ou novas. Aturava a flacidez das gordas e a lassidão das velhas. Não procurava beleza, muito menos volúpia. Procurava apenas quem soubesse fazê-lo sofrer. A dor e a humilhação eram-lhe essenciais para continuar vivo. Gostava de cabedal, pregos, maquilhagens agressivas, lábios negros. Apreciava, sobretudo, saltos que se pudessem enterrar na carne, rompendo a fragilidade dos vasos capilares cutâneos, deixando-lhe marcas violáceas durante toda a semana. Escolhia a mulher que usasse os saltos mais altos e mais finos. Feita a escolha, pedia para ser levado para o gabinete de veludo preto onde uma panóplia de objectos – correntes, algemas, chicotes, chibatas, vendas, trelas -aguardava uso. Despia-se e deitava-se no chão. Pedia à mulher que caminhasse sobre o seu corpo. Explicava. Era preciso que o atravessasse sem hesitações. Sem medo. Devia caminhar como se caminhasse sobre um caminho conhecido, uma estrada de alcatrão, uma vereda de terra batida. Quando chegasse ao centro, onde o sexo se erguia, marmoreado, como uma coluna jónica, devia pisá-lo. Que o pisasse bastante, com força, vigor, como se estivesse no tanque de um lagar. O seu corpo feito mosto.

Um dia, porém, um salto agulha, talvez mais fino, talvez mais longo, enterrou-se no fuste do seu pénis. Sangrou. Levou quatro pontos. Jurou nunca mais voltar. Na semana seguinte, mal a ferida cicatrizou, voltou ao guichet de vidros engordurados, que a vida, a sua, era demasiado simples para poder aceitá-la. Não sabia viver sem sofrimento e sem humilhação. Nessa noite, a noite do seu regresso, rejeitou os saltos finos. Escolheu uma mulher que calçava umas grotescas botifarras de plataforma. Pediu-lhe calma. Queria continuar a sofrer, sim, mas com moderação. A mulher enfiou-lhe uma trela de pregos e entreteve-se a passeá-lo pelo bar. Ganiu a noite toda de satisfação. E ladrou afavelmente a um homem de cabelo grisalho que lhe fez uma festa.

(A sondagem da Universidade Católica que dá 33% ao PS diz muito sobre as taras deste país. Sempre defendi a anexação a Espanha.)

2011/04/07

Além do que se vê



(Lisboa-Olhão da Restauração)

2011/04/06

Infiltração

Tenho uma infiltração na cozinha. A água aparece a um canto, mesmo ao lado do lava-loiças, um fiozinho de água que nasce entre os azulejos brancos. Escorre parede abaixo e desagua no chão de mosaicos pretos e brancos. Ponho-me a fumar e a olhar para o fio de água que nasce na parede, para o lago que se vai formando no chão. Reconheço que, de vez em quando, me faz falta um homem, não na cama que tenho mãos habilidosas, competentes, trepam-me pelo corpo abaixo como bichos nocturnos. Faz-me falta um homem para o resto.

2011/04/05

Less



(Fui correr para o estádio universitário. Detestei.)

Aninhas

Porém, naquela manhã, talvez porque a rapariga lhe esfregasse o couro cabeludo com movimentos circulares mais firmes, pondo naquela massagem uma intensidade que não era habitual, deu por si a deitar contas à vida. Ia fazer quarenta anos. Quarenta anos. Tinha um casamento sólido, dois filhos, uma carreira de sucesso como analista sénior numa empresa de auditoria americana, viajava frequentemente na companhia do marido, conhecia o mundo através das janelas dos hotéis de cinco estrelas, vivia num apartamento espaçoso no centro da cidade com vista para os jardins da fundação. Tinha uma empregada interna, competente e silenciosa, que compensava na perfeição a sua falta de vocação materna. Quando chegava a casa, encontrava os filhos com banho tomado, o pijama vestido, já jantados, os trabalhos de casa feitos, as dúvidas tiradas, preparados para dormir. Nem uma nódoa de sopa nos pijamas, nem um vestígio de birras, nenhum choro, nenhuma lágrima. Abria a porta do apartamento, pousava as chaves do carro no móvel da entrada, beijava os filhos, sentia-lhes o cheiro perfumado da cosmética infantil francesa. Tinha sempre a sensação de que aquelas crianças não lhe pertenciam. Esse sentimento não a incomodava. A empregada idolatrava-a. Achava-a a mulher mais bonita da cidade. Imitava-lhe certos gestos e expressões. Aninhas era-lhe imensamente grata, embora nunca o demonstrasse. A empregada suportava o fardo da maternidade e poupava-a à vergonha de um fracasso. Se um dia os filhos falhassem, saberia que a culpa não fora sua, mas da empregada que os educara.

2011/04/04

Inquietação



(de Lisboa a Braga.)

2011/04/03

Raízes

Sou filha de um indiano e de uma alentejana, sou irmã de um negro, tenho raízes cruzadas, profundas, fasciculadas. Como já por aqui escrevi, as minhas raízes, fixando-me aqui, neste país, neste lugar, atravessam mares, desertos, cordilheiras, para me alimentar de outras cores, outros sons, outras palavras, imagens muito diferentes. As minhas raízes fazem-me aquilo que sou. Sou mestiça. O que é bom e mau. Estou bem em todo o lado e não estou bem em sítio nenhum. Desde muito cedo, na escola, na família, por causa dessas minhas raízes, arranjei muitas chatices. Os únicos sopapos que levei do meu pai, goês, conservador, foi à conta da urgência de acabar de vez com discriminações que me pareciam intoleráveis. Aos vinte anos, tornei-me dirigente de um movimento anti-racista, participei em reuniões, conheci gente, bebi muitas cervejas. Aos vinte e três cansei-me da luta anti-racista. Larguei o movimento, acabei o curso, casei, passei a engravidar de três em três anos. Os filhos que entretanto tive e o resto deixaram-me pouco tempo para militâncias. A minha única militância, a mais importante, é educar os meus filhos, explicar-lhe o mundo. O racismo, a intolerância, no entanto, são as únicas questões que me fazem despertar da letargia dos quase quarenta e que me fervem o sangue.

E o sangue ferve-me sobretudo quando topo com o paternalismo dos activistas anti-racistas, dos jornalistas politicamente correctos, das abordagens facciosas. Tenho nojo - é mesmo esta a palavra - dessa gente que tudo desculpa, que justifica atitudes, que apaga a responsabilidade individual, a liberdade das decisões. Os negros são todos bons selvagens. A miséria das mulheres ciganas aceita-se em obediência a um determinismo cultural. O ataque à jornalista Lara Logan na praça Tahrir é coisa que se esquece. Não existiu. O racismo profundo dos indianos, tão triste e patético, plasmado todos os dias nas propostas de casamento que aparecem nos jornais indianos, onde engenheiros informáticos pedem noivas clarinhas, quase brancas, de castas compatíveis, também se esquece. Não é racismo. É uma herança milenar. Entre um admirador confesso do Le Pen e da sua filha e um activista anti-racista, quase que prefiro o primeiro. O primeiro é racista e assume-o. Posso abertamente contestá-lo. O segundo, sendo racista, tendo entranhado no corpo a forma mais abjecta de racismo, esse paternalismo que faz lembrar a caridadezinha cristã, está convencido de que não o é. Dá muito mais trabalho contestar um activista anti-racista do que um racista.

2011/04/01

Companheiro



(Fui a este concerto e chorei. Às vezes, muitas vezes, tenho saudades da mulher que fui.)