No último dia do ano, fui ao psiquiatra. Estupidamente, tão estupidamente, pediu-me um balanço de 2015. Respondi-lhe que foi um ano de viragem, não pelo livro, mas porque a cura da minha depressão se iniciou e voltei a sentir-me bonita. Sou bonita, sou muito bonita. Já não é mau. Eu sou da América do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais. Depois, ainda mais estupidamente, pediu-me resoluções para 2016. Respondi-lhe que quero foder muito, escrever muito, voltar a Goa e aprender a falar francês. Também quero o João Pedro, mas isso não lhe disse. Quero amá-lo, senti-lo inteiro, em cima de mim, nem que seja nos intervalos da sua vida. Assumir este amor, obsessivo amor, envergonha-me. Minto ao meu psiquiatra.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2015/12/31
2015/12/30
Saudade
Ontem, antes de adormecer, enfiada na cama com o gato, li um conto da Sylvia Plath de que gostei bastante. No conto – “Caixinha dos desejos” –, Agnes vive angustiada por, ao contrário do seu marido, não ser capaz de reter os sonhos. Esquece-os, apenas lhe ficam sensações vagas, imagens desfocadas, borrões surrealistas. Não sei se foi do conto que li, mas esta noite sonhei muito. Tudo no sonho me pareceu belo, intenso, mas compreensível. Escrevo agora, ao final do dia e, mesmo assim, as imagens continuam a aparecer nítidas: uma loja de bules e cafeteiras de loiça (o Tea Corner em Margão), um rio de caudal largo, águas claras, luminosas (o Zuari que passa depois da várzea), um caminho escuro que atravessa uma floresta de árvores de folhas largas (o caminho que o meu pai fazia com a tia Amália para a escola). No sonho, atravesso a floresta de bicicleta, mas tenho dificuldade em equilibrar-me porque numa das mãos levo um tacho de comida para a tia Rosu (a mais velha dos irmãos, passava os dias deitada num catre imundo, a fumar charutos, a casa esquecida, os filhos ramelosos, o marido bêbado). Sei que tudo no sonho da noite passada está relacionado com Goa. A verdade é que, nas últimas semanas, tenho pensado muito em Goa. Os meus olhos ficam húmidos, as minhas veias estrangulam, sinto um peso no peito. Definho e entristeço. Tivesse eu dinheiro e compraria um bilhete de avião, entregava os miúdos aos cuidados do Reinaldo e fugia para Maina. Sinto falta do meu pai, da sujidade, da confusão, da neblina das queimadas, das vacas do Marlindo, do quintal a perder de vista, da Ligorina varrendo o chão, dos padres de batina, das chamuças compradas ao final da tarde, dos prédios feios de Margão, das pernas das minhas tias balouçando no alpendre, de almoçar no Tatu, de falar com o Rafael, meu tão querido Rafael, de escutar a sua mulher, Marianinha, rezar com fervor. Não aguento passar outro ano sem voltar a Goa. Na noite passada, o meu subconsciente, talvez querendo atenuar essas saudades, dolorosas saudades, foi um bom amigo: levou-me de volta para a minha Índia.
2015/12/29
Fome
As compras do mês eram sempre feitas na CoopAbril, a cooperativa de consumo que ficava no Largo dos Anjos. O dia do avio mensal era um dia particularmente alegre na vida de cada um de nós. Era certo e sabido que eu e os meus irmãos ganharíamos alguma guloseima. A minha tia, responsável por elaborar a lista de compras, alegrava-se por, depois de tanta solidão, ter uma família. Até o meu pai se alegrava: perante a significativa poupança que fazia ao comprar na CoopAbril esquecia nesse dia (só nesse dia!) o seu ódio à revolução. Mas é a alegria da minha mãe que melhor lembro. Recordo-me de a ver empurrar o carrinho pelos corredores da cooperativa com um entusiasmo febril que se notava nos olhos risonhos e no desembaraço dos gestos. Desde o instante em que escolhia um carrinho sem rodas perras até à hora em que, empoleirada num banquinho, recebia das minhas mãos frascos, pacotes, latas e os arrumava nas prateleiras mais altas na despensa, a minha mãe sentia uma exaltação de conforto e bem-estar. Era, percebo-o agora, uma alegria de causa definida, essa que sempre lhe chegava no dia em que, com a longa lista de compras feita pela minha tia, seguia connosco para o edifício da cooperativa. É que nesse dia, sobretudo nesse dia, a minha mãe esquecia a vergonha da fome disfarçada que passou na infância. Olhando as prateleiras cheias, sabendo que não tinha de fazer contas à vida para comprar tudo o que precisava e não precisava, alegrava-se com a certeza de nunca mais voltar a sentir fome. Hoje, rondando o Largo dos Anjos, olhando a garagem onde, na minha meninice, ficava a CoopAbril, depois de me despedir do Tiago, dei-me conta que a minha mãe envelhece e que isso não me deixa triste.
2015/12/28
Miudezas
No Pingo Doce do Parque das Nações, mesmo em frente do talho, à boca do corredor dos detergentes, há um pequeno escaparate com livros. Entre obras de Jodi Picoult, Júlia Pinheiro e Pedro Chagas, costuma estar também um exemplar do último livro do José Luís Peixoto. É lá, no Pingo Doce do Parque das Nações, enquanto dou instruções ao talhante vesgo - “ Deixe as miudezas, tire a cabeça e corte o coelho aos pedaços.” ou então “Quero uma perna de peru, mas, por favor, desossada.” -, que, aos soluços, tenho lido o último livro do José Luís Peixoto. A virgem e os pastorinhos. Os pastorinhos e a virgem. É uma leitura adequada para quem espera. Ligeira, irrelevante, sem chegar a ser propriamente desagradável. Às vezes, porém, interrompo a leitura para olhar a vitrina e as bancadas onde as carnes são arranjadas. Não percebo de cortes de carne, não sei avaliar se a carne que o rapaz vesgo me dá é boa ou má, mas gosto da sua luva de malha metálica, do ruído de facas e cutelos, de certos vermelhos desmaiados.
2015/12/27
Cerejeiras
No festival literário da Gardunha conheci o Pedro Eiras. Também há coisas boas nos festivais literários. Levou para o festival a mulher e as filhas. É um homem gentil, usa t-shirts às risquinhas, fala pausadamente, sorri muito, às vezes, fecha os olhos enquanto conversa. Comprei na altura o seu romance sobre Bach. Ainda não o li, porém, desde então, sempre que escuto Bach, lembro-me do Pedro. No dia de Natal, sozinha, a caminho de casa do meu irmão, escutava no carro os Concertos de Brandenburgo. A música erudita é um bálsamo na minha vida, mas continuo a sentir-me uma intrusa quando a escuto. Perante tanta beleza, tão extraordinária e sublime beleza, eu, descrente, ateia convicta, quase acredito em Deus e acho que isso diz muito sobre as minhas contradições. Parada numa rua feia da Alta de Lisboa, os prédios de habitação social sujos de fuligem, paredes grafitadas, olhando os negros que fumavam à porta do café Milenuim, pré-disposta a agoniar-me com os risos dos meus sobrinhos e o borburinho distante das conversas sobre Inglaterra, lembrei-me da descida da serra da Gardunha: campos de cerejeiras carregadas de frutos, eu e o Pedro sentados no pequeno autocarro ao lado do condutor, em conversa animada; atrás, a Sandra, a sua mulher, morena silenciosa e muito bonita, as filhas observando a paisagem.
2015/12/22
Natal
Ao fim da manhã, desconcentrada, com o nariz a pingar, olhos embaciados, interrompi o trabalho para ler dois contos de Tchekhov. Retirei da mala a edição de bolso que trago sempre comigo, simples e levezinha, comprada há alguns anos na Pó dos Livros. Durante dez minutos, o meu gabinete transformou-se: o vento soprou palavras de amor ao ouvido de Nádia e Pavel Ivanitch, funcionário velho, feio e muito parvo, correu ao pavilhão na expectativa de ali se encontrar com uma jovem loura de nariz arrebitado. Voltei a enfiar o livro na mala. “É incrível o poder da boa literatura!”, reflecti enquanto me levantava. Soltei as cuecas que se haviam enfiado no rego do rabo e pintei os lábios de vermelho. Muito regalada, consoladinha, saí depois para comprar uma agenda nova e vender à D. Maria de Jesus as duas últimas libras de ouro que me restavam.
2015/12/18
Beijinhos paternalistas
O Joaquim acabou o dia com o livro das quarenta ilustrações das canções do Sérgio Godinho. Passámos a noite no youtube. Respondi aos pedidos dos meus filhos. A Madalena pediu "Dancemos no mundo" e "Etelvina". O Joaquim pediu "O Galo é o dono dos ovos", "Charlatão", "Os demónios de Alcácer Quibir", "Alice no país dos matraquilhos", "O coro das velhas" e "Barnabé". Senti-me tão feliz, capaz como mãe, e, como sempre acontece quando escuto o Sérgio Godinho, tive com os meus filhos conversas absurdas:
-É o meu amor!
- Ó mãe...
-A sério, é o amor da minha vida!
- E o pai?
- O pai?! Credo.
- E o João Pedro?
- O João Pedro é o segundo amor da minha vida.
- És louca!
- Não sou. O Sérgio Godinho só me deu coisas boas!
- Ó mãe!
- Desde os meus dez anos! Não há amor igual!
- E casavas com ele?
- Claro!
- Apesar dele ser um velho?
- Gosto de velhos.
Nos entretantos, lembrei-me dos marmelos na fruteira da cozinha. Compro marmelos para os ver apodrecer.
2015/12/17
Half crazy
Suzanne takes you down to her place near the river /You can hear the boats go by /You can spend the night beside her /And you know that she's half crazy /But that's why you want to be there /And she feeds you tea and oranges /That come all the way from China /And just when you mean to tell her /That you have no love to give her/ Then she gets you on her wavelength/ And she lets the river answer / That you've always been her lover /And you want to travel with her /And you want to travel blind / And you know that she will trust you / For you've touched her perfect body with your mind.
2015/12/16
Lustre
Uma vez por mês, a pesada mesa de pau-preto era afastada para um canto da sala de jantar. A minha mãe colocava o escadote no meio da divisão e subia até ao último degrau. Assim empoleirada, procurando manter o equilíbrio, com um pano na mão, muito cuidado, limpava, um a um, os pingentes do lustre da sala de jantar. A tarefa, de tão delicada, exigia-lhe paciência. Passava o pano embebido em Ajax por cada pedaço de vidro, esfregando-os até que, libertos do pó acumulado de muitos dias, voltassem a brilhar. Estava naquilo muito tempo, seguindo uma ordem pré-estabelecida: começava por limpar a fila maior, junto ao tecto, ia descendo a cascata de vidrinhos até chegar à fila mais pequena que rematava com uma enorme bola de vidro. Quando terminava a tarefa, baixava os braços de cansaço. Talvez olhasse pelos vidros da janela e observasse, nos apartamentos do prédio em frente, outras mulheres que, como ela, arrastavam, limpavam, varriam, repondo, num afã dominical, a ordem do lar. Imagino que a comunhão com essas outras mulheres a entristecesse um pouco. Como eu, a minha mãe sempre foi muito sentimental, um pouco dramática, sempre sentiu um desejo de fuga. O periquito, com os seus guinchos, despertava-a desse torpor de reflexões inconsequentes. Ainda empoleirada no último degrau do escadote, chamava por mim.
- Anita, filha, vem depressa acender a luz!
Vinda do quarto, o coração acelerado, acorria ao chamamento: sabia que me aguardava um instante de maravilha, mas também o desempenho de uma tarefa importante. Assim que acendia a luz, a minha mãe sorria.
- Já viste Anita? Dá uma trabalheira limpar estes vidrinhos todos, mas vê como agora reflectem tantas cores!
Era verdade. Cada pedaço de cristal, como se de um pequeno sol se tratasse, reflectia todas as cores que eu conhecia: verde, lilás, vermelho, amarelo, laranja, azul. Semicerrava os olhos e, focada num dos brincos de vidro do grande lustre, procurava apenas o lilás. Gostava naquela altura do lilás. Era a palavra que designava a cor, tão diferente das outras, e a indefinição, a fluidez entre o roxo e o violeta. Se um pingente não reflectisse o lilás era sinal de que, na sua azáfama diligente, a minha mãe se descuidara e o deixara coberto de pó.
- Aquele ali não brilha, mãe!- Dizia-lhe e apontava para o local onde teria de voltar a passar o pano.
- Vá, agora, apaga a luz. Não podemos desperdiçar electricidade! É muito cara. - Respondia quando eu me calava, finalmente saciada de lilás. Eram tempos diferentes, de carestia, com cinco contos enchia-se um carrinho de compras, mas comíamos muitas vezes massa com atum, fatias de beringela panada, fiambrino, açorda de tomate.
Obedecia à minha mãe, carregava no interruptor, desejando que anoitecesse depressa para voltar a procurar o lilás no lustre da sala de jantar. Às vezes, porém, antes que desligasse a luz, a minha mãe pedia-me que aguardasse um pouco. Descia então do escadote e, sorrindo de um modo diferente, andava também ela à volta do candeeiro. Nesse instante, percebia que as angústias da minha mãe, os gritos que tanto me magoavam durante as discussões com o meu pai (vou lá acima e atiro-me cá para baixo!), enfim, toda a sua tristeza e raiva eram compensadas pela satisfação de ver o lustre da sala de jantar bem limpo. A minha mãe já não sorria para mim, sorria para a luz colorida dos vidrinhos. Espiava-a nesse arrepio de alheamento, sorrindo, esquecida de mim e dos meus irmãos, esquecida do meu pai, da tia Dé, esquecida de tudo e de todos. Olhava para a minha mãe encadeada pela luz e amava-a mais e mais e mais.
2015/12/12
2015/12/10
Cruzamento
No bairro do Armador, no cruzamento em frente da bomba da Repsol, por voltas das oito da manhã, costuma estar um homem a apontar as matrículas dos carros que por ali passam. O homem, velho e muito preto, usa botas de cordões desapertados e, esteja frio ou calor, veste sempre um casaco com capuz e forro quente. A pele do rosto é lustrosa e, de tantas horas ali passadas, imagino um cheiro de suor, urina, sujidade. Estou tão habituada a passar todos os dias pelo velho das matrículas que já pouca atenção lhe dou. A loucura só impressiona a início. Com o passar do tempo, uma pessoa habitua-se a tudo, à violência, também à loucura. O louco da rua Júlio Dinis também já não me causa estranheza. O pobre, escanzelado, muito sujo, de longas barbas imundas, é conhecido de toda a gente. A dona do café prepara-lhe o almoço. O magrinho que trabalha na farmácia e a judia da joalharia arranjam-lhe cigarros. O sapateiro, se o encontra mais sereno, fala-lhe de futebol. O cauteleiro brâmane, homem de muita prudência, recomenda-lhe calma. O louco fala sozinho, anda aos ziguezagues, delira. Muitas vezes, grita com violência, mas quem ali vive ou trabalha, no cruzamento da Júlio Dinis com a 5 de Outubro, trata-o com indiferença. Às vezes, lá de vez em quando, aparece um turista mais impressionável. Vendo o louco passar aos gritos, o turista pára de caminhar e, paralisado, fica a olhar para ele como se dissesse “Olha, vai ali um louco!”. Sempre que isso acontece, nós - eu, a judia da joalharia, a dona do café, o magrinho da farmácia, o cauteleiro brâmane - paramos também. Não para olhar o nosso louco, mas para olhar o turista. É a reacção do turista, espantado, amedrontado, mexendo nervosamente nos compartimentos secretos da sua fantástica mochila, que estranhamos.
Vermelho
Ao rever este filme, de que gosto tanto, percebi que a minha vocação, mais do que o meu destino, é ser só. Amo um homem que não me ama. Amo-o desde o dia em que pousou a cabeça no meu colo como se fosse um filho. Amo-o com uma certeza íntima e um ardor ambíguo. Às vezes, é um ardor feliz, outras vezes, não. O meu amor, porém, só lhe dá tesão ou talvez nem isso. É bastante triste.
2015/12/05
2015/12/04
Rapaz
A mulher parece um pombo: patas finas, plumagem cinzenta, peito insuflado. Cada vez que grita, chamando nomes ao árbitro, olha em redor, cheia de satisfação. A sua raiva incontida, primitiva e boçal, diverte-me mais do que me incomoda. Já o árbitro, lá em baixo, de olhar plácido, não consegue disfarçar o desconforto. Os seus gestos são tensos, parece um animalzinho ofuscado pela luz, hesita antes de erguer o braço para mostrar um cartão vermelho. Presto atenção ao jogo. Sigo movimentações, passes, remates. O Joaquim está sentado ao meu colo, a Dá encosta-se a mim e, assim, colada ao meu corpo, vai tirando fotografias. Beijo um, depois outro. Cheiro um, depois outro. Atento no chiar dos ténis dos jogadores no chão encerado do pavilhão. É um ruído estranho. Ouve-se uma buzina a marcar o fim da primeira parte. O João olha disfarçadamente para a bancada à nossa procura. Há muito tempo que não vínhamos assistir a um dos seus jogos. Acenamos-lhe. Mandamos beijinhos repenicados, gritamos o seu nome. Fingindo arrelia, o meu rapaz sorri.
2015/12/02
Entropia
Ia pela 5 de Outubro, a cabeça no poema que ontem li, quando me cruzei com o nazi gago, a beata careca e o gato das botas. Não vinham juntos, não, isso não. Encontrei um, depois outro, outro mais adiante. Continuam na mesma: o tempo não corrompeu as suas particularidades invisíveis. Quando os conheci, há muitos anos, se a lua se mostrava redonda e amarela, vinham à janela e uivavam juntos ao luar. Era bonito de se ver. A coincidência de encontrar o nazi das botas, a beata gaga e o gato careca na mesma rua, enquanto pensava em entropias poéticas e outras frivolidades, não me surpreendeu. A poesia, ensinou-me o meu amigo Ricardo Álvaro, não é um laço, é uma gravata colombiana.
2015/11/27
Abstinência
Para me livrar do longo período de abstinência literária, uma amável desconhecida aconselhou-me, via facebook, um livro do Miguel Real. Larguei um “foda-se!” para dentro, bebi, de trago, o vinho que restava no copo e acendi outro cigarro.
2015/11/26
Caminho
À beira da estrada que atravessa a montanha, num pequeno canteiro lamacento, uma mulher coloca pés de arroz na terra. Sozinha, vestida com um sari puído, já sem cor definida, a mulher é uma sombra, um traço quase invisível. Traz um alforge imundo a tiracolo. Desse alforge tira os rebentos, depois, de forma mecânica, enterra-os na lama. A visão da mulher causa desconforto. Costumo ser indiferente à miséria dos outros, centrada que vivo na minha pequenez, mas qualquer coisa naquela mulher me desarma. Talvez seja o alforge imundo ou a certeza de que os seus pés gelam dentro da água. O meu incómodo dura pouco. A habitual egolatria alcança-me como uma flecha certeira. Já os abutres, no céu de nuvens baixos, voam em círculos, à espera do banquete. Na estrema do terreno, perto de uma palafita de chapas de zinco, avista-se uma bananeira de folhas largas. O verde dessas folhas, atravessado pelo sol, é de tal forma esplendoroso que, perante tanta beleza e harmonia, rapidamente esqueço a miséria da mulher enterrada nas lamas. Sinto um doce aperto no peito, uma vontade passageira de chorar.
2015/11/25
Gunga Din
Li a mensagem do Tiago a desmarcar o nosso encontro. Fiquei irritada. Quem é que escreve a palavra “miasmas” numa sms? Senti-me também estúpida, muito estúpida. De manhã, por causa dele, maquilhara-me com cuidado, escolhera o sobretudo cintado preto e os sapatos de saltos altos que comprei em Bilbau. São bonitos, mas apertam-me os joanetes. Para me livrar da irritação, decidi ir ao cinema. Ao meio-dia, no Monumental, vira no jornal, passava “Um anjo sentado à minha mesa”, da Jane Campion. Saí a correr do escritório. Caminhei apressadamente enquanto falei com a minha irmã ao telefone. Falámos da nossa mãe, do aniversário do Pedro, dos bilhetes para a festa de Natal. Cheguei cansada, cheia de dores nos pés. Na parede do Monumental, um cartaz anunciava a reposição das três cores do Kieslowski. Dezembro vai ser um mês bom: hei-de rever o velho juiz, com ele beberei copinhos de aguardente de pêra. Era capaz de amar um velho assim, que me confessasse, não as suas glórias, mas a sua mesquinhez, não a sua força, mas a fragilidade porosa dos seus ossos. Um velho que me oferecesse copinhos de aguardente de pêra. Mal as luzes da sala se apagaram, libertei-me dos sapatos de saltos altos. Aguentei o filme durante três horas. Não é grande coisa. A actriz que faz de Janet Frame, com as suas momices de louca, irritou-me. Adormeci quando é internada no hospício. Ando cansada e os estereótipos dão-me sono. Os loucos não são assim. Acordei com o grito de uma anã. Voltei a acompanhar a história da escritora neozelandesa. Janet já não tem os dentes podres e conhece um velho escritor que gosta de apanhar banhos de sol nu. O velho dá-lhe vários e preciosos conselhos para que possa desenvolver a sua arte. “Tens de libertar-te dos subúrbios. Não podes escrever no meio de acomodados e burgueses”, diz o velho. Que parvo! Na confortável escuridão da sala de cinema vazia, ri-me de tamanha estupidez. Há velhos e velhos. Quando o filme terminou, contrariada, voltei a enfiar os pés nos sapatos de saltos altos. À saída, a luz de inverno animou-me. Parei no Galeto. Comi dois croquetes ao balcão. Bebi uma imperial. Voltei para o trabalho. No cruzamento da Avenida da República com a João Crisóstomo, num semáforo, perdi a capa de um salto. Continuei a andar. Manca e dorida. Ao bater nas pedras da calçada o salto do sapato fazia um estranho ruído metálico. Lembrei-me do bico de um melro a bater no vidro do carro do meu pai, numa manhã de neblina, em Goa. Para não me esquecer, para nunca me esquecer, sentindo o frio no rosto, repeti para dentro: Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din, Dylan Thomas, Gunga Din…
2015/11/19
Amendoim
Deixei o último romance da Elena Ferrante a meio. De repente, sem perceber muito bem a razão, deixei de ter interesse na história de Lina e Lenuccia. Passou um mês. Desde então, para além de um pequenino livro do Amos Oz sobre fanatismo (“tornei-me escritor por causa da pobreza, da solidão e dos gelados.”) e de alguns poemas de Álvaro de Campos, lidos na vã tentativa de os explicar ao meu filho João, não li nada. Mesmo nada. É como se uma bruxa me tivesse lançado um feitiço. Sinto um vazio, um vazio que me paralisa e estupidifica, mas que não consigo contrariar. Em vez de ler, vejo televisão: novelas, concursos e programas de culinária. Vejo também alguma pornografia, sem grande entusiasmo, mais por desfastio do que propriamente por necessidade. Ontem, pensando neste longo período de desintoxicação literária, enquanto experimentava uma receita que aprendi na televisão – barras de chocolate preto com amendoim salgado -, percebi finalmente como posso livrar-me do vazio, desta incompreensível e absoluta desnecessidade de ler.
2015/11/13
Mar
Não pego num livro há mais de três semanas. Não sou capaz. Ler faz-me sentir e faz-me pensar. Não quero sentir e não quero pensar. Quero ser apenas engraçadinha. Desejo, sem condescendência ou paternalismos, ser a rapariga que ontem seguia na carruagem quase vazia do comboio. Tinha formas voluptuosas, unhas em garra e um lindo cabelo escuro. Saiu na estação de Entrecampos. Não tenho fé, nem sei rezar, mas acredito na salvação. Uma evidência: o facto de desprezar os crentes que conheço não tem de me afastar de Deus. De manhã, a caminho da escola, o Joaquim disse:
- As rotundas das cidades, de todas as cidades do mundo, são lugares tristes.
Acho que o meu filho tem razão. As rotundas das cidades, de todas as cidades do mundo, são lugares tristes. Nanni Moretti olhou-me de frente enquanto ajeitava o laço. Beijei-o na boca, depois no feio nariz, por fim nos olhos cansados. Sou uma casa habitada. Não conheço a geometria da solidão. No domingo, quando o Reinaldo vier buscar os miúdos, meto-me no carro e vou ver o mar. Quero muito ver o mar: chegar à beirinha da água, arregaçar as calças, largar meias e sapatos, molhar os pés.
2015/11/12
Goldmonexx
Não tenho dinheiro para me aguentar até ao final do mês. Enquanto não chega o cartão de crédito que pedi, fui à Goldmonexx, na Amadora, penhorar duas libras de ouro e a salva de prata que um tio do meu ex-marido nos ofereceu quando casámos. Esperava encontrar atrás do guichet de vidro, de nariz adunco, olhos malvados, uma velha parecida à que atormentava Raskólnikov. Imaginei a velha, má, cínica, diabólica, ali, na Goldmonexx da Amadora, a esfregar as mãos de contente quando me visse entrar, pobre mãe de família, envergonhada dos seus apertos. Quando dei de caras com um homem de meia-idade, cabelo branco e ralo, feições regulares, vestido com um simples pulover preto, senti alguma desilusão. Novamente dei conta de que a literatura deturpa – e de que maneira! – a realidade. Na vida real nem os prestamistas têm ar de prestamistas. Apesar do aspecto desinteressante, da ausência de fibra literária, o homem foi amável e eficiente. Fez-me assinar um papel e, sem conversas, passou-me um rolinho de notas que me apressei a enfiar no bolso invisível da mala.
Apanhei o comboio de volta para Lisboa. Na carruagem quase vazia, vendo os subúrbios passar, pensando no bilhetinho que à noite escreveria ao Joaquim, senti-me tranquila, em paz, liberta de preocupações. Assumir a minha miséria afinal não custou nada. É só dinheiro. Depois de anos sombrios, de tão pesada angústia, acho que sou finalmente feliz. É um sentimento estranho. Não estou habituada a sentir-me assim. No próximo mês, precisando, vendo as pulseirinhas, os fios, os crucifixos que as tias do meu ex-marido ofereceram quando os miúdos nasceram. “Cristo salva!”, costumavam dizer as tias nos seus conciliábulos. Cristo salvar-me-á: não na cruz, mas na pequena balança digital do homem da Goldmonexx.
2015/11/04
Cheiro
Comem as papaias, as mangas, as vagens do tamarindo, também os frutos das pequenas árvores que o tio Filipinho plantou junto do muro rendilhado. Roubam as aparas de coco que secam ao sol. Às vezes, anda a Juanita a estender roupa, aparecem de surpresa e, atrevidos, talvez imitando gestos observados nos homens da aldeia, levantam-lhe a saia do sari. Gritam permanentemente. Quando o fazem mostram dentes raiados de castanho e as altas gengivas muito cor-de-rosa. Durante a tarde, em vez de procurarem uma sombra, juntam-se em cima do telhado, grupos de quatro ou cinco, e, como se fossem gente, falam animadamente. O Moreno e a Michelle, que vivem no apartamento do primeiro andar, andam com os nervos à flor da pele. Queixam-se que não conseguem dormir a sesta. Pediram por isso à tia Maria que, no piso térreo, mandasse preparar o quarto que era do tio Babai. Um quarto amplo, junto da cozinha, habitado por cristos padecentes e nossas senhoras de olhar triste. Já o meu pai, cansado dos trabalhos nas repartições públicas de Margão, dorme sossegado. Liga a ventoinha, deita-se, fecha os olhos. Conta que, apesar da distância, consegue sentir o cheiro da minha mãe. Concentrado nesse doce cheiro, o cheiro da minha mãe, rapidamente adormece. Não escuta a alegria dos macacos que desceram da montanha e invadiram a aldeia.
2015/11/03
2015/11/02
Renda preta
O Miguel vem a Lisboa na próxima semana. Mandou-me um mail a dizer que gostava de almoçar comigo. Não ando com cabeça para almoços, mas estou disponível para encontrar-me com ele, ao final do dia, num hotel ou numa pensão limpinha. Não me deito com um homem há muito tempo. E preciso. Avisei-o que, se aceitar o meu convite, terá de ser ele a pagar o quarto. Nos últimos meses, por causa dos manuais escolares, dos aniversários dos rapazes, das múltiplas inscrições em actividades extra-curriculares, das vacinas para o gato, do arranjo do carro, tenho pouco dinheiro. O meu amigo ainda não me respondeu, mas eu já fui adiantando serviço: tirei o buço, os pêlos das pernas, das axilas e das virilhas. Os meus ombros estão dourados do sol. Decidi que, se nos encontramos, usarei as cuecas de renda preta que comprei para ir a um festival literário. Imaginava que, à semelhança do que acontece lá fora, os festivais literários portugueses eram locais de animado convívio. A Mila chegou a dizer-me que alguns, mais a norte, eram mesmo uma pouca-vergonha de fornicação e bebedeiras. Acreditei no que a minha querida amiga me disse e, ingénua, fui na expectativa, não só de escutar poetas, escritores, editores, jornalistas da especialidade, mas também de, a um ou outro, mostrar as minhas cuecas de renda preta. Ouvi intervenções interessantes, passei a admirar ainda mais certos escritores (e a detestar ao ponto da náusea e da regurgitação outros), conheci homens inteligentes, amáveis, sedutores, mas sexo que é bom e faz tão bem à saúde nem vê-lo. A desilusão que apanhei foi de tal ordem que, na volta, meti as cuecas de renda preta no fundo da gaveta e jurei não voltar a um festival literário. Nunca mais voltei a usá-las. Na próxima semana, se deus-nosso-senhor quiser, volto a dar-lhes uso. Quando me despir para o Miguel, quando desapertar lentamente os botões das calças, as cuecas de renda preta cumprirão finalmente o seu destino: serão mostradas a um escritor.
2015/10/28
O amor
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina. O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos. Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina. O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso. O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala. O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
2015/10/23
Fogo azul
Falavam sobre o Piketty, sobre os pré-rafaelitas, sobre o espólio do Eduardo Lourenço. Eram capazes de falar sobre esses temas durante muito tempo, num tom natural, nada forçado, mostrando interesse autêntico em tais assuntos. Enquanto ouvia aquelas pessoas falar - investigadores, professores universitários, doutorandos, pós-doutorandos -, experimentava alegria, exaltação, deslumbramento, também algum desconforto. Apesar do esforço, muitas vezes, não era capaz de acompanhar as conversas, desconhecia factos, sentia-me perdida perante os autores e livros referidos. Quase sempre, por isso, para não mostrar o meu desconhecimento, remetia-me a um silêncio prudente.
Mas um dia a minha ignorância libertou-se e revelou a sua triste dimensão. Passados alguns anos, se penso nesse episódio, ainda sinto o peito apertado. Almoçávamos no refeitório da biblioteca: eu, o João e um amigo do João, um professor universitário. Esse professor tinha um estatuto diferente no grupo que habitualmente frequentava o refeitório da Biblioteca Nacional. Pela sua carreira académica, pelos artigos escritos em jornais e revistas, era tratado com deferência por todos os outros: calavam-se para o ouvir e raramente o contrariavam. Nesse dia, o João e o amigo entretinham-se com as conversas do costume; eu, como sempre, escutava-os em silêncio e sentia um amor profundo pelo meu namorado. A certa altura, já não sei a que propósito, um deles mencionou que no tempo da ditadura era necessário ter uma licença para usar um isqueiro. A exigência, de tão absurda, pareceu-me brincadeira. Duvidei do que diziam e devo tê-lo feito com espanto genuíno. Não podia ser verdade. Era, asseguravam que era, diziam e insistiam, arregalando os olhos. Por fim, depois de muita birra, pouco convencida, anui. A conversa avançou para outros temas. Até que o João cruzou o olhar com o amigo e os dois começaram a rir. Não conseguiam parar de rir. O assunto de que falavam não se prestava a risos. Percebi nesse instante que se riam de mim.
Senti vergonha, muita vergonha, não só de não saber que durante o Estado Novo era necessário ter uma licença para usar um isqueiro, mas de tudo o que sou, das minhas raízes, dos meus pais, do bairro suburbano onde cresci, dos vestidinhos comprados nos saldos da Zara, do meu esforço para parecer uma mulher que não sou. Senti sobretudo vergonha do meu desejo de pertencer a um mundo de saber, conhecimento, cultura, habitado por homens e mulheres que liam os livros certos, escutavam os discos certos, sabiam falar dos filmes certos. Odiei o João naquele instante, odiei-o bastante, senti por ele um ódio primitivo, um ódio capaz de um gesto imprevisto. Voltei a sentir ódio igual poucos dias depois, na última noite que passámos juntos. Já na cama, depois de observar atentamente a lombada dos livros pousados na mesa-de-cabeceira, fui para o beijar, para o abraçar e ele, sem uma palavra, afastou o rosto e virou-se para o lado. Na manhã seguinte, recordo-o, levantei-me muito cedo, vesti-me e saí em silêncio. Sentei-me na entrada do prédio a chorar. Sem me tocar, o homem que eu amava fora capaz de me fazer sentir suja, impura, desprezível. Exactamente como me sentia quando o meu marido me possuía sem cuidar da minha vontade. Acho que se, naquela manhã, tivesse um isqueiro à mão, o tal isqueiro para o qual entretanto aprendera ser necessário ter uma licença, antes de sair do apartamento, teria feito uma pilha com os livros de sociologia e, sem hesitação, teria ateado um lindo fogo azul.
2015/10/16
Espelho
No balneário do ginásio, encontro uma rapariga muito parecida com a Régine Chassagne. Por causa da rapariga do balneário, magra, nudez branca, virginal, sem mácula, esta semana, voltei a ler "A Bíblia de Néon", obra escrita por John Kennedy Toole aos dezasseis anos. Voltei também a ouvir os Arcade Fire. Esqueço-me do quanto gosto de os ouvir, esquecida de tudo, presa apenas às palavras. Os Arcade Fire são a única banda que escuto como se estivesse a ler um livro. So can you understand?/Why I want a daughter while I'm still young/I wanna hold her hand/And show her some beauty/Before all this damage is done.
Esferovite
Faltam dez minutos para a aula de natação terminar. No tanque mais pequeno, o Joaquim coloca as pernas sobre o rebordo e, com um impulso, tenta dar uma cambalhota. Mal termina o exercício, procura-me com o olhar. Faço-lhe um leve aceno com a mão, como que a dizer-lhe "Estou aqui, sou a tua mãe e vi a cambalhota que acabaste de fazer". Gaivotas e peixinhos de esferovite, presos por um cordel, pairam sobre a água. Volto a ler. Procure as razões que o levam a escrever; verifique se elas lançam raízes nas profundezas do seu coração, pergunte e responda a si mesmo se morreria caso o impedissem de escrever. E acima de tudo: pergunte a si mesmo no mais silencioso da noite: tenho de escrever? As cartas que Rilke escreveu a Kappus fazem-me sonhar. Sentada nas bancadas, embalada pelo ronco permanente do sistema de ventilação da piscina, convenço-me de que, com paciência, muito trabalho, um dia escreverei um bom livro. Imagino-me com obra publicada, lida, admirada. Imagino-me finalmente liberta do vazio da vida quotidiana. Essa possibilidade deixa-me de tal forma embriagada de alegria que demoro algum tempo a reparar que Pedro, encostado às grades de protecção da bancada, continua a olhar para mim. Conheço-o do recreio da escola: miúdo feio, de olhos papudos, carapinha sempre despenteada, corpo atarracado a fazer lembrar um texugo furioso. Olha-me de viés, desconfiado. Talvez se tenha apercebido da minha exaltação interior. Sinto vergonha dos meus pensamentos delirantes. Levo a mão ao coração invertido de filigrana que uso sempre ao pescoço. Como um exorcista mostrando a cruz a uma alma possuída, aponto o coração de filigrana a Pedro.
2015/10/15
Quinta da Fonte
Nas encostas da serra, entre o casario clandestino, há quintas abandonadas, cumeadas floridas, oliveiras, figueiras, pinheiros, ribeiros de águas profundas, rebanhos de cabras apascentados por raparigas de cabelo comprido. O bairro, vários blocos de apartamentos pintados de amarelo, surge depois da última curva de Camarate. A primeira visão do bairro, imponente e desoladora, impressiona-me sempre muito.
Mal saio do carro, trémula de excitação, respiro fundo. Dora estende uma toalha de quadrados vermelhos no pequeno jardim da praceta principal. Com cuidado, distribuí por pratinhos de papel o que vai tirando do cesto: empadas de galinha, pastéis de massa tenra, triângulos de pão de forma barrados com pasta de sardinha, fatias húmidas de bolo de laranja. Do cesto de verga, herdado de uma tia holandesa, tira também fruta, uma garrafa com limonada e dois copos de vidro fosco que reserva para essas ocasiões. Olho em redor e rapidamente, muito rapidamente, entro num êxtase inexplicável. Há tanto para ver no bairro! Velhas debruçadas à janela. Estendais vergados pelo peso de colchas e toalhas turcas. Homens, encostados a muros, mudos, quedos, sem nada para dizer uns aos outros. Ciganos de um lado, cabo-verdianos de outro. De vez em quando, a porta do templo adventista abre-se e, aos pares, saem mulheres de bíblias nas mãos. As poucas lojas que existem no bairro têm grades nas janelas e nas portas. Escutam-se constantemente gritos magníficos. De tão absorvida pela vida do bairro sou ingrata para Dora. Mastigo os pastelinhos que, com tanto esmero, ela prepara na véspera sem lhes sentir o sabor.
“Ana, não estão bons os rissóis que fiz com as sobras do rolo de carne?”, perguntou-me num certo domingo de sol brando. Olhei-a um pouco atrapalhada. A visão dos seus cabelos louros, longos, caídos sobre as costas, naquele instante, fez-me crer na existência de bosques encantados onde as árvores falam aos pássaros e, no lento desabrochar das flores, se apaga todo o terror, toda a dúvida, todo o cansaço do mundo. Puxei-a para perto de mim. Abracei-a. Senti o seu cheiro, a temperatura do seu corpo, os pequenos seios subitamente firmes por baixo da linda blusa azul que lhe ofereci quando fez trinta e oito anos. “És uma mulher extraordinária. Para além de saberes fazer rissóis de carne, gostas do que é belo.”, soprei-lhe ao ouvido. Dora reclinou a cabeça e esperou que a beijasse.
2015/10/06
Duas gemas
Passou a costureira brasileira a caminho da igreja. Parada no semáforo do cruzamento, os sapatos novos a morderem-me os pés, fiquei a vê-la passar. Sexualidade é diferente de genitalidade. Protágoras era sofista. A maiêutica é uma etapa fundamental do método socrático. Ler no tempo certo, não agora que finalmente envelheço e sou bastante tola. Tenho quarenta e três anos. Se vivesse nas margens do Limpopo, onde não se conhece o parto sem dor, seria já avó. Como bolachas de arroz tufado e, se me cruzo com um homem elegante, respiro superficialmente, como um peixe à tona de água, para disfarçar a flacidez abdominal. Às vezes, endoideço e desejo ser amada. Outras vezes, acho que o amor é um sentimento vulgar, que apenas humilha: vive-se melhor sem amor. “Abraça-me com toda a força que tiveres”, pedia ao Reinaldo e ele cumpria o meu desejo. Estrangulava-me. As minhas faces explodiam, violáceas, sentia o peito esmagado, escutava os ossos estalar. “Continua, não pares!”, ordenava. À beira do precipício, prestes a desfalecer, sossegava quando pressentia o vazio definitivo. À noite, enquanto faço o jantar, encontro tesouros extraordinários: ovos com duas gemas, um caracol na alface, gorgulho na lata do arroz, manchas de bolor nos cogumelos. Fico a olhar as gemas sem saber muito bem o que fazer, paralisada por pensamentos absurdos. Tenho uma casa, um carro para passear ao fim-de-semana, um ordenado que paga as contas. Os meus filhos são bonitos e inteligentes. O gato é meiguinho, cheira a pó e sabe escutar. Levo-o para a cama e - exactamente por esta ordem – leio-lhe um poema, uma carta e um conto. Que mais posso querer? Não é bom? Não é tão bom? Não é esta a vida que a lucidez aconselha? Tenho tudo o que sempre desejei e mais ainda. Tenho à minha frente, num aborrecimento que comove, um ovo com duas gemas.
2015/10/05
Boxe
Vários homens caminham à volta do campo de futebol, uns de calções curtos e tronco nu, outros de capuz na cabeça por causa da morrinha que cai. Três rapazes ensaiam movimentos de boxe. Um negro musculado, de torso triangular, exemplifica como se soqueia. É um entendido. Percebe-se pela postura do corpo, também pela precisão e controlo que imprime aos seus movimentos. Para além de entendido, é canhoto. Protege o rosto com o braço direito, com o esquerdo desenha sucessivas semi-elipses. Escrevo a palavra semi-elipses, sem saber se é assim que se escreve, com hífen, e recordo o escantilhão de curvas que no ciclo preparatório usava para desenhar flores de gordas pétalas nos cadernos. O negro repete várias vezes o movimento até que pára a beber água. É a vez dos outros rapazes tentarem. São desajeitados e flácidos. Sinto uma estranha proximidade àquele grupo, aos rapazes que observo da janela do oitavo andar. Dois homens fardados, guardas certamente, encostados a um muro, conversam enquanto observam a lição de boxe. De que se falará no pátio do estabelecimento prisional? A oficial de justiça boceja de aborrecimento. O seu bocejo é um aviso de que o meu recreio terminou. Largo a janela e volto à sala de audiência. A advogada da parte contrária, uma mulher nova e bonita, tem um pequeno piercing no nariz. De Código Civil aberto, curvada sobre a bancada, completamente alheia à beleza que a rodeia, continua a tirar notas. Estranho o furor, tanta diligência. Nunca fui assim. Abre-se a porta dos magistrados. Vejo o chão alcatifado de um corredor iluminado, depois uns sapatos pretos bem engraxados. É o juiz que finalmente chega.
2015/10/02
Amor
No primeiro dia de aulas a professora pediu que os meninos escrevessem um texto. O Joaquim escreveu assim: “Eu fui passear à chuva à tarde e não avia ninguém só um pescador que parecia mau mas era bom e mostrou-me dois peixes e ensinou-me tamam a pescar e disse que os peixes comen minhocas que fazem um casulo”. Fiquei impressionada com o texto. Mal os mais velhos entraram em casa, cansados dos treinos, imobilizei-os na entrada para que o escutassem. O João, rapaz pouco dado às letras, o sentido prático sempre a vir ao de cima, deu uma moeda ao irmão e prometeu que, cada vez que escrevesse um bom texto, lhe daria um euro. A Madalena, muito doce, a pele coberta de magnésio, parou para libertar o cabelo de grampos e elásticos e depois deu-lhe um abraço apertadinho. À noite, como é costume, o Reinaldo telefonou para saber dos miúdos. Contei-lhe as novidades a fugir e logo perguntei “Queres que te leia a primeira composição que o nosso filho fez?”. “Claro”, respondeu e percebi que a revelação desse facto o emocionava. Fiz um esforço para que a voz saísse cristalina. Enquanto lia para o meu ex-marido, ao final do dia, na cozinha, o gato roçando as minhas pernas, senti-me serena, liberta, feliz por o Joaquim ter escolhido escrever sobre o primeiro dia de chuva, feliz pela alegria sincera dos irmãos mais velhos, feliz por, depois de tudo o que passámos, sabermos partilhar o amor pelos nossos filhos.
2015/10/01
Três vértebras
Em breve esquecerei o rosto de Santo Estevão e tudo o que li sobre “O enterro do Senhor de Orgaz”. É sempre assim. O último quadro que procurei estudar com alguma profundidade foi “A Ronda da noite”. Fi-lo para perceber o livro da Agustina Bessa-Luís. Que sei ainda sobre essa obra? Sei que foi uma encomenda dos arcabuzeiros de Amesterdão, sei que há quem diga que a estranha criança, vestida de branco, é Saskia (?), a mulher do pintor entretanto falecida, sei que alguém leva um frango à cintura e que isso tem um qualquer significado, sei que o quadro originariamente teve outro nome, não me recordo qual, sei que lhe chamam “A Ronda da noite” apesar de não representar uma cena nocturna, sei que a tela original, gigante, teve de ser cortada porque não cabia na parede onde os arcabuzeiros a queriam colocar. Sei afinal muitas coisas sobre o extraordinário quadro de Rembrandt. Talvez a minha memória esteja finalmente disciplinada e, aos poucos, comece a reter o que é importante. Tenho pena de esquecer o que leio com interesse e entusiasmo. Alguma coisa fica, claro, quase sempre o pormenor estranho, insólito, que, à primeira vista, me parece irrelevante. Desde as aulas de filosofia, quando li alguns textos de “A Câmara Clara”, que sei que tudo o que vejo, escuto, leio tem um puctum, um pormenor que me atrai e não esqueço. Daqui a uns anos, por muito disciplinada que a minha memória se torne, pouco recordarei do que li ontem sobre o quadro de El Greco, mas lembrar-me-ei quase de certeza das três vértebras da grande odalisca de Ingres (no artigo referiam-se as 36 vértebras da odalisca como exemplo dos truques e artifícios que os pintores usam para atingir determinado efeito). Espanta a odalisca de Ingres, não só pelo olhar distante, sobranceiro, pela nudez muito branca, mas sobretudo pelo comprimento das suas costas. Parecem não ter fim. Ingres pintou uma mulher com três vértebras a mais. É o que se diz. É o que dizem os entendidos em pintura e anatomia. É o que vinha no jornal de ontem no artigo escrito por aquela rapariga que foi colega de curso da minha irmã. As três vértebras são o puctum do artigo que ontem li. É quase meia noite. Não tarda nada, ouvirei os sinos da igreja de Nossa Senhora de Fátima.
(Não é fácil escrever com um gato que insiste em passear a sua felina elegância por cima do teclado do computador.)
(Não é fácil escrever com um gato que insiste em passear a sua felina elegância por cima do teclado do computador.)
2015/09/25
2015/09/24
Raiz africana
Enquanto o escuto, enquanto o observo, a perna sempre a tremer, pergunto-me muitas vezes “Mas é este o homem que amo?”. Com desapego, sabendo do amor que lhe tenho, fala-me das namoradas que teve depois de mim: uma que tinha uma podenga que largava pêlo, outra que vivia no Brasil, outra que gostava de fado, outra ainda que se alimentava só de rebentos e lavava os dentes com uma raiz africana. Fala-me dessas mulheres sem maldade, incapaz porém de perceber que, quando o faz, me faz sofrer. Entre o sofrimento e alguma desilusão, sei agora que o João me faz mal. Ao revelar-se destrói o homem que amo.
2015/09/23
Técnica
Marina voltou ao semáforo da Avenida EUA. Parece-me que apurou a técnica. Raramente deixa cair os malabares e atira-os agora com novas variações. Continuo a achá-la bonita. Tudo nela é redondo: os olhos, a boca, o rosto, as formas do corpo. Hoje, trazia uma gargantilha de prata (talvez fosse apenas uma imitação, mas tinha o brilho luminoso da prata) e, nos braços, várias fiadas de pulseiras coloridas.
Fitzroy Road
Na breve biografia que aparece na contracapa de “Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos”, como é hábito nos seus livros, refere-se que Sylvia Plath, suicidando-se em casa, com gás, teve o cuidado de proteger os filhos (o suicídio, para além de poético, é um bom trunfo, ajuda a vender um autor). Sempre me causou estranheza tal preocupação. Há qualquer coisa que não bate certo. Por que quis Sylvia proteger os filhos se, com a sua morte, causou a maior violência das suas vidas? Uma mulher que pensa na morte, que a deseja, no delírio próprio dos suicidas, nessa embriaguez que embaraça assim que a lucidez volta, se os tem, pensa nos filhos. Sabe que não há nada mais devastador para um filho do que a revelação do desejo de morte da própria mãe. Como sobrevive uma criança a esse abandono? Quase sempre, para o bem e para o mal, a maternidade impõe-se e tolhe a liberdade da mulher. A mulher hesita, recua, culpabiliza-se.
Os filhos salvam e, ao mesmo tempo, condenam a mãe suicida. Por sua vez, a mãe suicida, quando decide ficar, salva e, ao mesmo tempo, condena os seus filhos. Pode passar o resto da vida a ensaiar sorrisos, a fingir alegria e normalidade, pode até tentar transformar-se noutra mulher, libertando-se da angústia, do aborrecimento, do desespero, mas dificilmente conseguirá esconder o desejo de fuga que um dia sentiu. Haverá uma altura em que um olhar, uma frase, uma palavra, até um simples gesto, revelará a dimensão da sua loucura. Viva ou morta, a mãe suicida é o carrasco dos seus filhos. Faz-lhes mal vivendo, faz-lhes mal morrendo. Acho que uma mãe suicida nunca consegue proteger os seus filhos. É por isso que, por mais que reflicta, não consigo perceber a preocupação de Sylvia Plath. Na manhã de 11 de Fevereiro de 1963, vedou completamente o quarto dos filhos com toalhas molhadas, deixou leite e pão doce perto de suas camas, abriu as janelas do quarto. Nevava nessa manhã de Inverno. Fazia muito frio. Quando abriu a janela, Sylvia deve ter olhado por instantes a rua. Talvez tenha sentido o vento no rosto, nos cabelos, na curva do pescoço. Voltou para a cozinha, tomou vários comprimidos e deitou a cabeça sobre uma toalha no interior do forno, com o gás ligado.
2015/09/16
Soletrar
Primeiro dia de chuva. Atravessamos o bairro e, depressa, muito depressa, chegamos à beira-rio. Não se vê ninguém. Até aqueles que correm, detestáveis novos super-heróis, desapareceram. As águas, batidas pelo vento, estão muito agitadas. A neblina, de um branco sujo, limita o horizonte. Naquela zona do parque, quando há sol, vê-se o casario de Sacavém e da Bobadela. Nos dias mais claros, se focarmos o olhar, é mesmo possível ver o recorte do arvoredo na recta do cabo. Hoje, porém, com a chuva, a linha do horizonte diluiu-se, desapareceu. Entre o céu e a terra, entre o céu e a água, não se percebe o que começa ou acaba. A beira-rio, sempre ruidosa e alegre, transformou-se noutra paisagem, adquiriu uma beleza agreste, solitária, misteriosa. Caminhamos pelos relvados e rapidamente os nossos pés ficam molhados. O Joaquim apanha folhas e pedras que mete no bolso do impermeável. De tão feliz, em vez de andar, o meu filho galopa como um potrozinho.
No passadiço de madeira, no pontão junto da estátua da princesa, um rapaz vigia três canas de pesca. Quando nos vê, como se intuísse o nosso desejo de proximidade, faz um gesto para avançarmos. De uma caixa azul tira um casulo. Do casulo tira uma minhoca. Mais parece uma centopeia, tem a cabeça achatada, patinhas que se movem numa euforia que causa repulsa. O rapaz enfia a minhoca na ponta do anzol, fá-la deslizar pela curva do gancho, explica que tem de ficar assim, bem presa, caso contrário, os peixes serão capazes de a tirar e fugir em liberdade. O rapaz continua a falar com o Joaquim. Explica-lhe o seu ofício. Inclina-se agora sobre a protecção de metal e puxa um cesto de rede. Mostra a pescaria do dia. Dentro do cesto há dois peixes muito diferentes. Ainda estão vivos. O maior, esverdeado, assemelha-se a um tamboril. É feio: olhos esbugalhados, a pele lisa, barbatanas curtas, a cabeça enorme, desproporcionada em relação ao resto do corpo. “É um xarroco não é?” pergunto. O rapaz olha-me com espanto. Não conhece as minhas idiossincrasias: tivesse eu tempo e cabeça e aprenderia o nome de todas as árvores, de todas as flores, de todos os monstros que habitam as águas escuras e profundas do rio.
O outro peixe mexe-se no fundo do cesto. É bonito. O fole das guelras, de um vermelho escuro, muito intenso, faz-me lembrar as dálias que na minha infância cresciam no canteiro da vizinha Idalina. É um peixe magnífico, um peixe de luz. O seu corpo, coberto de escamas prateadas, luminosas, quase brancas, saltita, estremece com brandura. O rapaz tira-o do cesto e, com cuidado, coloca-o nas mãos do Joaquim. “Sabes como se chama? Tem um nome engraçado. Chama-se rabeta…” O rapaz ri. Enquanto aconchega a gola do casaco ao pescoço explica que uma rabeta é uma corvina pequena. O Joaquim continua a pegar no peixe prateado, mas, de súbito, os seus olhos ficam inquietos. A palpitação que sente nas mãos é, simultaneamente, um sinal de vida e de morte. Talvez o meu filho pressinta isso mesmo e por isso se apresse a colocar o peixe no cesto. Começa a trovejar. Caem pingos grossos, pesados, redondos. Despedimo-nos do rapaz. Aceleramos a passada. O vento, cada vez mais forte, vira o guarda-chuva do Joaquim que, assustado, o larga. Corremos para o apanhar. Voltamos a rir.
(À noite, quando lhe aconcheguei a roupa, falei-lhe ao ouvido: nunca te esqueças do passeio de hoje, do primeiro dia de chuva, do peixe nas tuas mãos, do sorriso do pescador, das palavras novas que aprendeste a soletrar.)
2015/09/11
Cheiro
Há dois meses que eu e o meu pai pouco ou nada falamos. No domingo, porém, por causa do aniversário do João, há almoço de família. É a primeira vez que nos voltamos a sentar todos à volta de uma mesa. Vou fazer feijoada. É barato, saboroso e dá pouco trabalho a fazer. Os miúdos mais pequenos vão odiar a minha escolha. Ralharão comigo, farão caretas engraçadas quando lhes disser o que é a comida. O Roberto e a Lurdes vão trazer o vinho, a Susana as sobremesas. Espero que nesse dia a minha mãe não trema muito das mãos, que espante ou pelo menos finja espantar os seus próprios demónios, que os seus olhos se alegrem com as brincadeiras dos netos. Avisei a tia Dé que não se esquecesse de trazer uma travessa de peixinhos da horta e também os livros da Elena Ferrante que lhe emprestei. Ninguém faz rissóis e peixinhos da horta como a tia Dé. Acabado o almoço, na altura do café, depois de os miúdos fugirem para o pátio, colocarei um cd do Charles Aznavour. Quando se começar a escutar o “ Il faut savoir”, o Manuel Ricardo fechará os olhos, cantará baixinho a canção e lembrar-se-á da sua mãe. Sentirei então uma felicidade muito pura e autêntica por a minha irmã ter encontrado um homem assim.
O meu pai deixou de me falar por causa de um texto que aqui escrevi: um texto duro, talvez desnecessariamente duro, mas no fundo apenas um texto escrito por uma filha que, por sentir nunca ter sido amada pelo pai, deseja sê-lo. Não deixa de ser estranho que um homem de oitenta anos, bastante conservador, não se sinta incomodado quando a filha escreve sobre bebedeiras solitárias, pornografia, masturbação, orgasmos, fodas em quartos de hotel e se ofenda quando essa mesma filha decide escrever sobre o amor (ou sobre a sua ausência). No domingo, quando o meu pai chegar, rosto fechado, o desprezo habitual tão evidente no olhar, cumprimentá-lo-ei como sempre faço. Beijá-lo-ei no rosto e farei uma festa nos seus cabelos crespos e ondulados. Nesse instante, quando os nossos corpos se aproximarem, aproveitarei para sentir o seu cheiro.
2015/09/10
Roseira da China
Para além da foxcrime, vejo agora o tlc. Passo horas a ver programas sobre anões, meninas com tiaras sobre lindos canudos de cabelo loiro, noivas ciganas, homens virgens de pintelhos já brancos, mulheres hediondamente obesas mas que, ainda assim, monstruosas, são amadas. Ontem, já tarde, vi um programa sobre uma mulher que injectou proteína de vaca nas mamas. Magra, velha, cheia de peles bambas, a mulher carrega duas exaltantes mamas do tamanho de melões pelas ruas feias de Los Angeles. Não leio e não escrevo. Passo os olhos pelo jornal, logo de manhã, sem interesse. Não tenho opinião sobre nada. A fotografia do menino afogado não me comoveu e o ruído sobre as eleições irrita-me, mas pouco. Na semana passada, depois de outra noite de fuga no estendal, desmarquei a consulta com o psiquiatra. Esta semana ainda não fugi para o estendal, mas voltei a desmarcar a consulta. Telefonei à Ana Paula, a amável recepcionista do consultório, pigarreei, e, num tom falso, numa voz que não era a minha, desculpei-me com os filhos. Sinto-me ausente, desligada de tudo e de todos, de mim própria, da minha vida. Já não sonho sequer. Sou uma assombração, uma sombra, um borrão de tinta, sou a raiva impotente, uma porta fechada, a gargalhada louca, o silêncio, o esplendor da mais triste miséria. Pudesse ser outra coisa qualquer e escolheria apenas ser os versos do poema: Vem subir a álea do jardim, Luriana Lurilee. A roseira da China floresce, uma abelha zumbe ali.
2015/08/06
Lagarto preto
Focada na cintilação do ecrã e nos papéis espalhados pela secretária, nem uma vez levantei os olhos para espreitar o azul na janela do gabinete. Reli o parecer, pareceu-me bem escrito, juridicamente fundamentado. Ao fim do dia, quando atravessei a 5 de Outubro, a caminho do cinema, senti-me tranquila. Dá-me prazer cumprir os meus deveres: fazer bem o meu trabalho, pagar as contas no início do mês. Parei na livraria. Comprei vários livros do Petzi. Para o Joaquim e para os meus sobrinhos mais pequenos. Vão abraçar-me e, felizes, dizer “Obrigado, tia Ana!” quando no sábado lhos oferecer. Amorzinhos do meu coração. O livreiro, coisa estranha, não conhecia “ Os três mal-amados”. Ficou de o tentar arranjar. O Carlos é o melhor livreiro de Lisboa e continua a roer as unhas. Quando cheguei ao cinema tive um desgosto. O filme com a Juliette Binoche já não está em exibição. Contrariada, bufando, acabei por ir ver um filme espanhol bastante mau. É uma merda, mas descobri uma canção tão bonita. La ninã de fuego. Que maravilha! A determinada altura, quando Bárbara entra na porta do lagarto preto, para o sacrifício, também se escuta uma das Gnossiennes de Satie, acho que a primeira. Lembrei-me de Nosferatu, da sua sombra assustadora projectada numa parede e de como nunca me meteu medo. Voltei a atravessar a 5 de Outubro para ir buscar o carro. A meio da avenida, perto de uma porta de ferro forjado, muito linda, toda aos arabescos, cruzei-me com um homem e uma menina que levava preso por um cordelinho um balão azul. De súbito, olhando-os, deu-me vontade de chorar. Chorei. Quando entrei no edifício da Caixa, o segurança reparou nos meus olhos cansados, velhos, cada vez mais pequenos, borrados de rímel, mas não disse nada. Voltei para casa em silêncio, na cabeça, um torvelinho de pensamentos sombrios. Aqueci o feijão guisado que sobrou do jantar de ontem. Fumei dois cigarros. Bebi dois copos de vinho. Tomei banho. Ainda pensei em ligar ao Ricardo para falar um pouco, não estou habituada a estar sozinha à noite, mas não fui capaz. Telefonei aos meus filhos.
2015/08/04
Lâmpada
Esta noite, nunca tinha acontecido, acordei para escrever uma frase. Não propriamente uma frase, mas a sua estrutura, a sua forma. Uma frase composta, interminável, com sentido, sem sentido, morfologicamente pobre, despida do seu corpo, adjectivos, substantivos, mas com as vírgulas exactas, as pausas exactas, a cadência certa. Uma frase para ser lida em voz alta. De manhã, quando acordei (de um pulo porque, por causa do vinho e dos comprimidos, não escutei o despertador), fui lê-la. Pareceu-me ultrapassada, antiquada, aborrecida, sobretudo pretensiosa. Já não se escreve assim. Hoje em dia, a forma pouco interessa. Diz-se muito, mas tão pobremente, tão desconsoladamente, faz-se uma literatura que não cuida da elegância e da beleza. Por exemplo, há palavras que, de tão feias, nunca utilizarei. Javardo. Esgalhado. Reverberação. Prefiro ter pouco ou nada a dizer, mas fazê-lo de forma a embalar quem me lê. A música de um texto é importante. A frase que escrevi era sobre um nariz. Encontrei também, junto do caderno, a lâmpada do candeeiro da mesinha de cabeceira. Não me lembro de a ter tirado.
2015/07/30
Passinho de dança
Jogamos futebol na cozinha enquanto ouvimos o Frank Sinatra. Baliza a baliza. O combinado é, antes de cada remate, cada um ensaiar um passinho de dança. O Joaquim joga bem à bola e é um excelente dançarino. Fica o menino contente e eu também. Nos intervalos dos remates, danço agarrada ao meu filho, sinto-me feliz, e lembro o homem que amo. É um homem bonito. Parece que é feliz com uma mulher dez anos mais nova do que eu. Falava-me dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont e eu, tola, deslumbrada, amava-o mais e mais e mais. Antes de o conhecer não gostava do Frank Sinatra e agora gosto. O João nunca me amou e, no entanto, estupidamente, sinto que me deu tudo, que nenhum outro homem me poderá dar o que ele me deu. Puta que o pariu.
2015/07/23
Caminho da manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
2015/07/22
Santa Luzia
Viana do Castelo vista de Santa Luzia, elefantes do circo banhando-se no rio Lima, as nossas sombras na álea de plátanos, gente melancolicamente louca, Sherlock Holmes e a mulher bonita, canteiros de begónias e petúnias, o prato de cavalas grelhadas na casa de pasto, raparigas espanholas fotografando-se junto do dinossauro de bucho na Calle Urzaiz. A muleta do gerúndio. Estar longe, sozinha com os meus filhos, fez-me sentir diferente. Aos poucos, quase sem dar por isso, espantei o vício de me banquetear com a minha própria dor. Partimos sem planos. E correu tudo bem. Senti-me invencível. Ouvimos o Benjamim Clementine, os Arcade Fire e comemos arandos secos. Tomámos banho na foz do rio Minho. Jogámos ao olho do cu, espojados na relva de um jardim. O Tiago expulsou o João Pedro e, durante duas noites, habitou os meus sonhos. Dormi sem acordar para fumar ou comer. Regressámos saciados, entontecidos de tanto amor, felizes por nos termos uns aos outros.
Na volta, a Graça e o Jorge, um romeno de dentes de ouro, tinham pintado a casa. O apartamento pareceu-me outro, luminoso, maior, limpo. A viagem pelo Minho fez-me largar a Teresa Veiga e voltar à Agustina. Ontem, enquanto a Madalena e o Joaquim viam a telenovela (o mais velho andava a monte), deitei-me com o Pedro Lumiares e a Semblano. Ema, muito linda e tola, debruçou-se na varanda do Romesal e deixou cair uma flor. Carlos adormeceu no baile das Jacas, as meias com baguete, de elásticos laços, descaíram, deixando-lhe à mostra os pêlos das pernas. Triste figura, a de um corno. Sublinhei palavras. Himeneu. Gineceu. Hissope. Palavras estranhamente belas. Diverti-me com as conhecidas contradições da narrativa agustiniana. Afinal, Ema é frígida ou sente prazer? Ou é uma frígida que busca o prazer? E Tomásia de Fafel é muito feia ou apenas moderadamente feia? Perguntas sem respostas. Nada disso interessa. Adormeci com a certeza de que desperdiço tempo que não tenho. Ver séries na foxcrime é bom, mas ler é decididamente o melhor remédio para me sentir viva.
2015/07/01
Dá-me
dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
Carlos Edmundo de Ory
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
Carlos Edmundo de Ory
2015/06/30
À fresquinha
Fui à pastelaria comprar um palmier coberto. Sentei-me cá fora, no muro do hotel Barcelona, à fresquinha, a comê-lo. O grande leopardo vermelho do reclamo luminoso olhou-me com os seus olhos coruscantes. Passaram pessoas à minha frente. Passaram também táxis, camionetas, autopullmans cheios de turistas. Passou o cão coxo e passou o poeta. Ao vê-los passar, nem sei bem por quê, tentei recordar o poema preferido do João. Não consegui. Só sei que fala de amor, de uma pedra e de uma faca. A minha vida começa a ser apenas esquecimento. Penso nisso, no esquecimento, assusto-me e não sossego. Tentei então recordar o grito abafado do João quando certa vez lhe fiz uma mamada na casa de banho da Biblioteca Nacional. A minha memória não é sensível à poesia, nem ao amor, mas é perita em guardar o que é sórdido, vulgar, ordinário. Foi um esforço em vão. Deu-me vontade de chorar. Desfiz-me em lágrimas, ali no muro do hotel Barcelona, sentada à fresquinha enquanto comia um palmier coberto. Chorei durante muito tempo. As lágrimas escorreram e formaram um grande lago no cruzamento da Avenida de Berna com a 5 de Outubro. Felizmente, o grande leopardo vermelho, aturdido com o meu choro, saltou do reclamo luminoso. Lambeu docemente a minha cara e, depois de lançar um extraordinário rugido, engoliu-me. É um bicho bondoso.
2015/06/22
Mãos
Todas as segundas-feiras, à hora do almoço, na quietude do gabinete, quando apenas se escuta o ronco do ar-condicionado e, ao longe, por vezes, os passos pesados da Rosalina, pego na tesoura do papel e corto as unhas bem curtas. Recolho as que caem na mesa e meto-as no caixote do lixo. Fico depois a admirar as minhas mãos de dedos curtos, grossos, unhas de menina, limpas, com pequenas manchas brancas, sem saber o que fazer a seguir. Às vezes, tiro um livro da mala e leio. Outras vezes, como hoje, fico simplesmente paralisada, a olhar o azul do céu. Gosto muito das minhas mãos. Com mãos tudo se faz e se desfaz.
2015/06/20
Líbido
Na altura, a revelação da verdadeira razão da vinda para Portugal da Maria de Lurdes caiu como uma bomba e cobriu de vergonha a minha família goesa. Passados alguns anos, a história está quase esquecida, ninguém fala do assunto. “Acabou por ter sorte, casou com um veterinário de Benaulim, tem um filho e uma filha, muito bonitos, quase brancos, mas continua completamente louca…”, explica o meu pai e, quando pronuncia a palavra “louca”, faz uma cara de nojo que acentua a sua fealdade. “Louca?”, pergunto-lhe, divertida com a conversa. O meu pai parece hesitar, olha fixamente Parvati, a segunda consorte de Shiva, enquanto calça os ténis que comprámos há dois anos em Nova Deli. “É tarada. Só pensa em sexo”, acaba por responder e explica os contornos da vergonhosa líbido da sobrinha. Dotada de um desejo insaciável, uma fogosidade intensa, parece que a minha prima não dá descanso ao marido. O veterinário, de tanto lhe acudir, sente-se esgotado, tão esgotado que até já pediu ajuda ao Marlindo. O Marlindo, também meu primo, psiquiatra numa plataforma no mar do Dubai, receitou-lhe uns comprimidos e, beato, baboso, devoto, mandou-o rezar o terço logo de manhã. Nada fez efeito. “O marido da Maria de Lurdes nem parece o mesmo. Encontrei-o na festa da tia Maria e, de tão chupado, está irreconhecível.”, remata o meu pai e, sem mais, sai para a sua caminhada. Corro atrás dele, custa-me acompanhar a sua acelerada passada. O meu pai é um velho mau e formidável. Ao lado dele, sou feliz; miserável, mas feliz. Caminho e, na noite que cai, sinto-me afortunada pela família que tenho. Há de tudo: ninfomaníacas, deprimidos, maníaco-depressivos, mitómanos e até um primo esquizofrénico. Assim é que é bom. Detestaria ter uma família onde só houvesse gente estupidamente sã, insuportavelmente feliz.
2015/06/18
Jói de laranja
O psiquiatra diz que devo contrariar a solidão. Aconselha-me a estar com outras pessoas, conhecer outras pessoas, falar com outras pessoas. Inscrevi-me por isso num clube de leitura. É organizado por uma associação recreativa que funciona num palacete em Xabregas. Servem bolinhos secos de pacote, jói de laranja e chá preto. No primeiro encontro, foi hoje, falei com uma rapariga ruiva e uma outra, de caracóis largos, que se atrapalhou a dizer o nome de um dos livros do Italo Calvino. A ruiva cheira a suor, tem os dedos dos pés gordos e enclavinhados, mas é simpática, ri-se bastante. A dos caracóis nem por isso, parece uma monja, tem um ar pesado, circunspecto, próprio de quem considera a literatura um assunto sério, intocável, essencial. “Nunca deixo um livro a meio”, disse com voz enfadonha quando lhe expliquei que cada vez tenho mais dificuldade em acabar uma história. Até dia 4 de Julho tenho de ler “O Baile”, da Irene Nemirovsky. Li-o há coisa de um ano, sei que gostei de o ler, e, no entanto, não me lembro da história, nem sequer de uma personagem, de uma frase ou de uma palavra. Pergunto-me: leio para quê?
2015/06/17
Sainete
No Festival Literário da Gardunha, conheci o João Ricardo Pedro que, ao almoço, enquanto comíamos, desconsolados, um bacalhau desfeito numa cama de puré, explicou ter a certeza de que na vida apenas escreverá três ou quatro romances. Lembrei-me do Albert Cossery, escritor egípcio que fez a apologia da preguiça e do ócio. Cossery viveu até aos 90 anos e deixou apenas oito romances escritos. Foi um escritor de uma qualidade singular, raríssima, original. Se fazia a apologia da preguiça e do ócio não era por ser madraço, ou desprendido, mas por ver nestas atitudes o veículo essencial para uma actividade interior intensa de reflexão sobre a vida e o mundo. Numa das suas entrevistas, estranhava aqueles escritores que escrevem cinco páginas por dia. Referindo-se a esses escribas, explicou: “Não escrevem, apenas redigem um texto qualquer. Eu escrevo uma frase. Simplesmente, reviro-a vinte vezes para conseguir dizer alguma coisa.” Às vezes, passeando pelas livrarias, folheando este e aquele livro, fico com a sensação de que são poucos os autores que reflectem sobre aquilo que escrevem e amadurecem as suas obras. Têm competência narrativa e pouco mais. Talvez muitos desses escritores sejam pressionados pelas suas editoras para publicar, não sei, talvez outros tantos procurem na escrita um certo prestígio social. Ser escritor dá muito sainete. Se me perguntarem o que sou e eu disser que sou bancária, ninguém me ligará, mas se disser que sou escritora, todos arremelgarão os olhos de admiração, pouco ou nada importando se o meu trabalho é bom ou mau. Acontece que os leitores, os verdadeiros leitores, não são tolos, são exigentes e inteligentes. Percebem quando um livro é um grande embuste. O que mais para aí há são livros que são grandes embustes. Quando falo de embustes não me refiro a esses livros que enchem as montras e os escaparates das livrarias. Esses, sendo o que são, pelo menos são autênticos, não aspiram à qualidade que a literatura, a verdadeira literatura reclama. Falo de um outro tipo de escrita, que se demarca dessa primeira, que goza até essa outra, a tal que é ligeira, light, mas que, bem vistas as coisas, muitas vezes, tantas vezes, não é muito diferente. Poderia enunciar uma mão cheia de autores, premiados, lidos, consagrados que melhor fariam em estrangular a voz e manter-se calados. E se não digo nomes é apenas por cobardia. Ser cobarde faz parte da minha natureza. Ao ouvir o João Ricardo Pedro dizer que apenas escreverá três ou quatro romances senti-me envergonhada por, cedendo à minha própria vaidade, miserável vaidadezinha, ter publicado uma colectânea de textos de um blogue, mais ainda por ter ficado magoada com a apreciação que a Lúcia fez do romance que escrevi.
2015/06/16
Feijão-frade
Faltam-me os dois últimos molares da arcada superior. Apodreceram há alguns anos e tive de os arrancar. A sua falta, não me desfeando o sorriso, dificulta a mastigação de certos alimentos. Para além de me faltarem esses dois dentes, aos quarenta e três anos, já tenho um implante e uma coroa. Hoje, à hora do almoço, enquanto chupava uma casca de feijão frade dos dentes, fui novamente assaltada pelo medo de ficar desdentada. É um medo relativamente recente. A Virginia Woolf aos trinta e poucos anos arrancou três dentes de uma assentada. Esse facto, chegado ao meu conhecimento através da leitura do seu diário, impressionou-me muito. Até então, sempre que a convocava aparecia-me pela frente uma rapariga vestida de branco, sorriso quase imperceptível, olhos plácidos, caídos para o chão, o cabelo escuro apanhado sem preocupação. É assim que Virginia aparece na sua fotografia mais famosa. Já não consigo imaginá-la assim, etérea, ausente, como um espectro. Se penso nela, e penso muitas vezes, vejo apenas um corpo doente, apodrecido. Uma mulher velha, enlouquecendo devagar, cada vez mais triste, cada vez mais feia.
2015/06/15
Lava
A Madalena está no treino, os rapazes estão no pátio a jogar à bola com o miúdo que se mudou para o apartamento do lado. Deambulo pelos quartos, pela sala. Tudo nesta casa está velho, gasto, há azulejos partidos, tacos levantados, as paredes estão sujas, precisam de pintura nova. Gostava de mudar de casa, de começar noutro sítio qualquer, mas não tenho nem dinheiro nem energia. Pego no livro que ando a ler. Memento Mori, da Muriel Spark. Não estou a gostar muito. Sinto uma picada por baixo do braço. Apareceu-me a menstruação esta manhã. Dói-me, como sempre, a mama esquerda. Volto à cozinha, espreito o bolo de banana que prometi fazer ao Joaquim. Leva bicarbonato de sódio em vez de fermento. Talvez por isso esteja tão bonito, a forma cheia. O dia termina, lá fora já quase não há luz. É a hora da solidão e do silêncio. A hora da metamorfose. Passo a ser nada, apenas o vazio. Gostava de me transcender pela escrita. Ser mais qualquer coisa através da escrita. Na semana passada, enquanto corria, surgiu-me uma ideia para um livro. É uma ideia boa, cheia de força, mas tenho medo de me sentar em frente do computador e de começar a escrever. O Deniz disse-me um destes dias que a sua amiga T. pontua melhor do que eu. Fiquei a pensar no assunto. Pontuar bem um texto é muito importante. Já não há quem pontue bem um texto. Quem escreva uma frase com absoluta correcção. Sinto-me triste, sozinha, a solidão pesa-me, estranhamente, porém, não quero estar com ninguém. Quero apenas abrir uma garrafa de vinho e beber dois ou três copos. Bebo demais. O vinho dá-me paz, adormece-me. Tenho comichão na mão. Acho que estou novamente com escabiose.
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