Por desconhecer os exactos termos em que a vontade do meu marido seria posta em prática, nos últimos anos de casamento, deitava-me e adormecia. Quando o meu marido chegava ao quarto encontrava-me a dormir. Quase sempre deitava-se ao meu lado e dormia também. Mas, por vezes, procurava-me. Esse despertar, sem amortecimento de qualquer espécie, agredia-me com uma violência que ainda hoje, depois de anos de terapia, não sou capaz de explicar. Nunca me habituei a essa passagem brusca. Num instante, dormia, sonhava, e o mundo era diferente, um mundo de árvores prateadas, gigantes amistosos, torres encarquilhadas de livros, frases misteriosas que apareciam escritas na areia de uma praia deserta. No momento seguinte, era obrigada a largar esse mundo incompreensível, de delírio e insanidade, que tanto me seduzia. Acordava e fugiam os gigantes, desfaziam-se as torres de livros, apagavam-se as frases escritas na areia. Era como se alguém me arrancasse de um lugar protegido, puxando-me pelos cabelos, arrastando-me por um caminho de pedras pontiagudas. Sentia cada toque, cada apertão, cada sopro no pescoço. A barriga mole e transpirada do meu marido esmagava o meu ventre. Chegava então uma tristeza intensa que me dava vontade de chorar, mas, por vergonha, procurava pensar em assuntos que me distraíssem dessa angústia. Para fugir do choro, pensava nas pequenas decisões que tinha de tomar, organizava a vida imediata, planeava as compras, decidia o que faria para a marmita dos meus filhos: segunda-feira, bifinhos com cogumelos, terça-feira, salsichas com lombardo, quarta-feira, arroz de atum, quinta-feira, frango frito, sexta-feira, douradinhos com esparguete. Incapaz de pôr fim ao meu casamento, odiando-me por isso, muitas vezes, desejei apenas o agendamento estanque da minha vida íntima. Ao dia tantos do mês ou ao domingo ou sempre que um dos nossos filhos tivesse 100% a matemática. A periodicidade, imaginava eu, evitaria pelo menos a angústia da incerteza, a impressão da espera, sobretudo o terror do despertar.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2016/01/28
2016/01/26
Pagode chinês
O turco ajeita o postal da Basílica de Santa Sofia na parede de cortiça, depois faz tilintar os olhos em forma de gota que estão para venda num pequeno mostruário. Ao entregar-me as chaves, olha-me com desdém, não é capaz de o esconder. Toma-me por adúltera, uma mulher fácil, sem decência e sem salvação. Não me importo. Sei agora da importância de saber conjugar certos verbos. Conjugo certos verbos como se rezasse. Lentamente, inteira, com devoção: eu fodo, tu fodes, ele fode, nós fodemos, vós fodeis, eles fodem. Pego nas chaves, pago o quarto, subo ao terceiro andar. Alguém deixou os sapatos no corredor. São sapatos de homem, brilhantes e ligeiramente revirados na ponta. Aladino, cansado, dorme num dos quartos da pensão Istambul. Abro a porta, largo a mala em cima da cama, descalço as botas. Espreito as vistas. Outros olharam por esta janela, viram exactamente o que agora vejo: o alçado lateral da Igreja dos Anjos, o edifício amarelo da sopa dos pobres, um prédio forrado a azulejo, também os telhados retorcidos de um pagode chinês. Há poesia em cada homem, cada mulher. Volto para dentro, puxo os lençóis para trás e deito-me.
2016/01/23
2016/01/21
Cetim vermelho
O turco puxou uma baforada do narguilé. Chamou-me querida (numa intimidade que me incomodou) e deu-me a chave do melhor quarto da Pensão Istambul: janela para a avenida, cama larga com lençóis esticados, paredes pintadas a rosa chá, soalho encerado, dois conjuntos de toalhas presos com uma fita de cetim vermelho.
2016/01/20
Dona Doida
Por causa de um poema, um verso, decidi em quem votar no domingo. Agora, livre da angústia do voto em branco, depois de lavar o chão da cozinha, vou fumar. É o que me apetece fazer. Contemplar a noite e fumar. Isso e tentar encontrar inclinações parabólicas em linhas rectas.
2016/01/19
Artigo 804º
No ginásio, entre uma e outra aula, observo as quadras de squash: o desenho das linhas, as marcas das bolas nas paredes, as gotas de suor no chão, os gestos de vitória e frustração. Penso no artigo 804º do Código Civil, na pensão Istambul, em delícias turcas e romãs, naquele que gosta da poesia de Rimbaud e me mostrou, com tal entusiasmo, o início do concerto para piano nº 24 de Mozart. Vai ter um filho com uma mulher que o trata por “mor” e utiliza a expressão “esbardalhei-me”. O amor é tão lindo.
2016/01/18
Casa de frangos
A propósito de um texto do Manuel de Freitas na Cão Celeste, lido há alguns dias, hoje, quando voltava para casa, pensava nos dois tipos de leitores que me dão azia: os deslumbrados e os mete-nojo. Toda a gente conhece o leitor deslumbrado. Lê e impa, revira os olhos, entra em êxtase beatífico. Esse êxtase, claro, nunca é secreto, íntimo, é um êxtase partilhado, replicado, podendo, seria televisionado. Desde que pertença ao cânone literário, o leitor deslumbrado gosta de tudo o que lê. Está em toda a parte, este tipo de leitor. Dá-se um pontapé numa pedra da calçada e aparece um leitor deslumbrado. O leitor mete-nojo é mais difícil de encontrar. Circula em círculos restritos. Restritíssimos. Julga-se superior, já leu tudo, já nada o desafia ou entusiasma. Qualquer obra-prima é aborrecida, objecto do seu magnânimo tédio. O leitor mete-nojo é capaz, de uma assentada, sem justificar, só porque sim, desmerecer “A Montanha-Mágica”, “O Quarteto de Alexandria” e, sem excepção, a obra completa da Agustina Bessa Luís. Há que reconhecer: apesar de estúpido, o leitor mete-nojo é bastante audaz. Vinha nestes pensamentos, numa agradável espiral de irritação, e lembrei-me da história que a minha irmã me contou no sábado. Parece que um escritor e um poeta, ambos franzinos, escanzelados, andaram à pancada no bar da Barraca. Imaginava eu esse vigoroso duelo entre poesia e prosa, ria-me que nem uma perdida para dentro e para fora, quando, na rotunda de Moscavide, perto da casa de frangos, atropelei um ciclista.
2016/01/14
Óleo de romã
Fiz tudo o que faço antes de me deitar. Tomei banho, lavei os dentes e limpei o rosto. Apliquei com movimentos circulares um creme anti-envelhecimento que comprei numa perfumaria há pouco tempo. Foi caro, mas não resisti ao anúncio que passa na televisão: mostra uma mulher bonita, sorrindo. Nos segundos finais, enquanto o corpo da mulher é apertado num abraço, uma voz assegura que o creme, feito à base de extractos naturais de óleo de romã, promove o rejuvenescimento da pele. O que uma mulher viveu não tem de ficar marcado no corpo, apenas na memória, é o que diz o anúncio. É mentira, mas não há nada a fazer. A vaidade das mulheres sempre favoreceu o engano. Sei que tudo o que vivi, tudo o que ainda viverei, ficará marcado na minha pele, em cada ruga, cada sulco, cada mancha. O meu corpo apresenta as marcas próprias da idade que tem, mas o envelhecimento, este que agora começou, parece ser um segredo vergonhoso. Quero envelhecer devagar. Por isso, apesar de não acreditar nos efeitos visíveis após oito semanas de aplicação, todos os dias uso o creme de óleo de romã.
2016/01/13
Nenhuma
É agora um advogado de sucesso. Guia um carro de alta cilindrada, usa botões de punho e, no Verão, passa quinze dias com a mulher e os filhos em Porto Santo. Leva também uma brasileira chamada Gabriela que, como fez questão de me explicar, para além de bonita, é exímia a engomar camisas e a fazer queijadas de leite e mel. Da vida, explicou-me ainda, espera apenas conforto, prazer e ganhar ainda mais dinheiro. Apreciei a sinceridade e deitei-me com ele. Impou em demasia, o que me perturbou bastante, mas isso não o fez perder a confiança em si próprio. Como a maior parte dos advogados que conheço, tem-se em grande consideração. “Vieste-te quantas vezes?”, perguntou-me no final. “Nenhuma.”, respondi pausadamente e pensei na mulata Gabriela. Imaginei o volume sensual do peito, a curva das nádegas, o cabelo crespo caído pelos ombros. Uma breve excitação chegou-me naquele instante e estremeci por dentro.
2016/01/11
Malhas caídas
Aproximo-me da mesinha de cabeceira e, com a ponta dos dedos, limpo a camada de pó que se acumulou na superfície. Abro a gaveta da roupa interior. Tudo está meticulosamente arrumado; ainda assim, resolvo inspeccionar os collants para ver se encontro malhas caídas. Introduzo a mão no primeiro par de collants, puxo a meia até chegar à costura do pé, depois faço a licra deslizar sobre os dedos muito esticados. Encontro uns que têm uma pequena malha na zona da barriga da perna, mas não os deito fora, ainda servem para usar por baixo de calças. Ter encontrado uma tarefa que, se for bem aproveitada, me preencherá o tempo faz-me sentir menos só. É bom estar aqui, sossegada no quarto, a realizar uma tarefa que, exigindo a minha concentração, me dá prazer. Sempre senti um prazer imediato na arrumação e na organização. Gosto de ter a casa limpa e flores nas jarras. Limpar bem a cozinha, organizar a despensa ou arrumar gavetas são tarefas que contribuem para a minha felicidade. Habituada a uma infância ruidosa, éramos muitos numa casa demasiado pequena, mal me vi no meu apartamento, organizei armários, gavetas e prateleiras. Mantive sempre essa disciplina. Na minha casa nunca há roupa suja em cima de cadeiras, camas por fazer, loiça lavada à espera de secar no escorredor, canecas lascadas, livros fora das estantes… Sei sempre em que gaveta está o corta-unhas e nunca me aconteceu não encontrar o boletim de vacinas do meu filho. A minha mãe dizia que a arrumação de uma casa revela muito da vida da mulher que nela vive. Acho que ela tinha muita razão. Recordo-me de que, há muitos anos, em casa da Luísa, espreitei para dentro da jarra chinesa que costumava estar no centro da mesa da sala de jantar. Espantei-me com a quantidade de coisas que ela conseguia guardar lá dentro: canetas, clips, recibos velhos, agulhas de croché, cadeados, parafusos cheios de ferrugem, fotografias, elásticos de cabelo, pulseiras, batons do cieiro, bulas de medicamentos, até brinquedos. Nessa tarde, senti o cheiro de coisas velhas que se soltava daquela lixeira em miniatura, mas não estranhei o conteúdo da jarra chinesa. Revelava a desordem da vida da minha irmã. A minha irmã sempre fez por transmitir aos outros uma imagem de solidez e conquista, mas, por dentro, estava como o jarra chinesa: cheia de entulho.
2016/01/10
2016/01/08
Pai
Michelle acabou o internato de cardiologia em Bangalore. Alvito rompeu o noivado por temer o vigor sexual da noiva. A mulher, uma desconhecida de Colva, já enterrou dois maridos. O bando de macacos dorme no extenso coqueiral que fica perto da lagoa. Houve uma grande festa para celebrar o vigésimo aniversário do casamento do Ricky e da Melinda. Toda a família foi convidada. Vieram os de Pondá, os de Pangim e os de Mapusa. Ron, na primeira madrugada do ano, depois da missa e do baile em Cavelossim, teve um acidente de mota. Partiu o fémur e deslocou o ombro. Álvaro, o arquitecto estrangeirado, passou as férias de Natal em Curtorim. Levou a namorada espanhola. Levou também três amigos berlinenses. A primeira colheita de cocos foi fraca. O terreno de Dicarpali, o mais bonito, o meu preferido (escutam-se os sinos da igreja de São José de Areal) foi vendido por trinta e seis laques. O Moreno discutiu com um vizinho por causa de um canteiro de arroz. Os cajueiros e as mangueiras ainda não floriram.
(Venha, Ana Clara. Faz-me falta aqui.)
2016/01/07
Dinâmica do acidente
As hesitações da testemunha parecem aborrecê-la. Enquanto pede esclarecimentos, a procuradora mexe na pulseira que traz no pulso. É uma pulseira em malhinha de ouro branco, discreta, baça, tem apenas a graça do fecho amarelo. Talvez por estar um pouco larga, insiste em descair e esconder-se por baixo da manga larga da beca. Sempre que tal acontece a procuradora procura-a e volta a colocá-la na zona do pulso. Nesse gesto, sobretudo no modo estranho como, depois de a voltar a colocar no pulso, com contida perturbação, fica a acariciar a pulseira, tudo desaparece ou se esbate: a bandeira caída, os códigos, os volumes do processo, a chuva que bate nos vidros. Existe apenas a mão da procuradora, mão de cera, unhas pintadas de vermelho escuro, com uma pulseira de ouro branco no pulso. A pulseira - vê-se bem - foi um presente recente, certamente de alguém muito importante na sua vida, um noivo, um namorado, um amante (depois de árvore, amante é a palavra mais bonita da língua portuguesa). A procuradora faz um esforço para se manter atenta à dinâmica do acidente, mas, por baixo da negra beca, qualquer coisa nela se anima.
2016/01/05
Intimidade
Usarei a melhor blusa, os sapatos vermelhos, os brincos de ouro que herdei da avó goesa. Caminharei ao seu lado. Colocarei um pé a seguir ao outro. Em cada passo sentirei o peso exacto do meu corpo. Hei-de mostrar-lhe a estátua de Hanuman, as suásticas, as hortas em redor, o auditório forrado a alcatifa verde, a cantina escura. Chamarei a sua atenção para o tom das cadeiras de plástico do templo. É pela cor do plástico das cadeiras, a mostrar a fraca qualidade do material, que se percebe o embuste: o templo hindu não está localizado em Lisboa. Fica numa rua barulhenta dos subúrbios de Bangalore. Desceremos ao poço. Ao contrário do habitual, comerei com gosto, sobretudo as chamuças ainda quentes. Estarei atenta à maneira como come. Mostrar-lhe-ei como se partem aos pedaços os rotis e se misturam com o resto da comida. Hei-de rir quando provar o caril de legumes, aguado e sensaborão. Fará uma careta engraçada. Evitaremos temas pessoais. A intimidade nunca é por nós partilhada. Falaremos mal de escritores, críticos literários, jornalistas, editores. Para além da ausência e do falso desprendimento, a maledicência é o que nos une. Falarei com entusiasmo do conto do Dylan Thomas que li, sem nunca lhe confessar que, quando o li pela primeira vez, me imaginei deitada na cama ao seu lado. Numa intimidade de velhos, os óculos na ponta do nariz, os nossos pés a tocarem-se por baixo dos cobertores, imaginei-me a ler para ele aquele preciso conto. Maravilhoso conto. Ler em voz alto para alguém é sinal de amor. Leio em voz alta para os meus filhos. É uma outra forma de lhes dizer que os amo. Escutar-me-á falar e intimamente lamentará não me amar. No final, à despedida, um beijo apressado, a boca dele mal me tocando no rosto. Sentirei o seu cheiro. Seguirá pela rua, sem nunca olhar para trás. Ficarei a vê-lo, enfiado num casaco feio, caminhando apressado na direcção da biblioteca.
2016/01/04
Açucenas
O ruído de um carro a chegar à praceta desperta-me. Dou-me conta da atmosfera um pouco triste do quarto, a luz quebrada pelo abajur do candeeiro, sombras nas paredes, a janela ligeiramente aberta. Quero regressar aos meus pensamentos, mas o instante de revelação que ainda há pouco me fez sorrir passou. Levo a mão ao cabelo, pego numa madeixa e enrolo-a nos dedos. Não tenho mais nada para fazer, tratei dos meus filhos, planeei refeições, passei a ferro, mesmo assim continuarei aqui, acordada, à espera que o sono chegue. Coloco os braços sobre a barriga e, com as palmas das mãos, aliso o tecido do pijama. Aproximo-me da janela. O ano chegou com calor e trovoadas, o céu sempre baixo, carregado de água. As nuvens abatem-se sobre o rio e os apartamentos enchem-se de um estranho calor húmido. Lá fora, abafa, quase parece uma noite de Verão, a brisa é ligeira e as gotas da chuva rodopiam à roda da luz. Puxo as calças do pijama que insistem em descair e observo a rua. Os prédios, de quatro andares, têm uma cor que nunca consegui definir. Verde acastanhado ou castanho esverdeado. Há roupa a secar nos estendais: calças, camisas, meias, toalhas, lençóis. No segundo andar do prédio em frente, um rapaz descasca uma laranja e atira as cascas para a rua. Mais acima, a sombra que espiei na noite da passagem de ano continua a fumar. Desvio o olhar para as oliveiras da praceta, fixo o canteiro onde crescem fetos e patas de cavalo. Entre os fetos, uma mancha amarela, luminosa, mas pouco nítida. No canteiro há quatro ou cinco bolbos antigos de açucena que todos os anos, pela Primavera, florescem muito perfumados. Talvez este ano tenham florido mais cedo por causa do calor. Amanhã, quando sair, logo cedo, apanharei uma flor para colocar no solitário que está no aparador da sala. Ficará aquela haste cheia de campânulas, libertando doces aromas, mostrando-me uma beleza pura. Olho o relógio. Meia-noite. Vim cedo para o quarto, devia ter ficado mais algum tempo na cozinha, não sei bem a fazer o quê, talvez a arrumar a gaveta dos talheres. Depois de arrumar tudo, ainda pensei em ler os folhetos dos supermercados, no entanto, a ideia de acabar o dia sentada à mesa da cozinha, comparando preços, pareceu-me triste. Volto a observar o canteiro. Afinal enganei-me... As açucenas não floriram. Que pena... A mancha amarelada que se vê no canteiro é apenas uma fronha caída dos estendais. Olhando o pedaço de pano, vem-me à memória um detalhe que julgava esquecido: a cor do vestido que Isabel, mãe de um colega do meu filho, usou numa festa de final de ano lectivo. Era, recordo, um vestido drapeado, com ombros largos, exactamente daquela cor, um amarelo vivo, cheio de brilho. Estranho a recuperação da minha memória. Há tantas coisas de que gostaria de recordar, e, do nada, por causa de um pedaço de pano, fui lembrar-me da cor do vestido de uma desconhecida.
2016/01/03
Sobrancelha esquerda
Comprei uma garrafa de vinho verde, um maço de cigarros e uma caixa de bombons recheados com licor. À uma da manhã, já tinha fumado metade dos cigarros e bebido a garrafa de vinho. Nem dei pelo ano passar. Foi por essa altura que comecei a sentir saudades do João Pedro. Fiquei num pasmo silencioso a olhar para a parede da cozinha, atenta à sujidade nas juntas, aos desenhos dos veios vermelhos no brilho lacado dos mosaicos. Depois sentei-me à secretária e escrevi-lhe um longo mail, cheio de palavras vulgares, frases vulgares, a dar-lhe conta do meu amor e explicando o que faria se o apanhasse na cama. Bebi um resto de vinho que tinha no frigorífico (acho que de pacote), fumei um cigarro e decidi deitar-me. Apesar de trôpega, fiz um saco de água quente. A minha cama é grande e não consigo adormecer com os pés frios. Despi-me e enfiei-me debaixo do edredão. Adormeci rapidamente. Às cinco da manhã, acordei com falta de ar. Levantei-me com dificuldade. Aos encontrões pelo corredor, caminhei até à cozinha para ir buscar a bomba da asma. Inalei três vezes, o suficiente para dilatar bem os pulmões. Vi-me reflectida nos vidros da porta, cabelo despenteado, nua da cintura para baixo, com a bomba da asma na mão. “És a mulher mais patética que existe à face da Terra”, pensei. Voltei ao quarto, já sem falta de ar, mas cada vez mais zonza. A meio do corredor, perdi o equilíbrio, caí no chão. Ao tentar amparar a queda, apoiei-me na estante. O gato de loiça, comprado em Jaipur, caiu da última prateleira. Bateu primeiro na minha cabeça e depois partiu-se no chão. Fiquei deitada, na penumbra, a dizer palavrões, triste por se ter partido o gato de loiça. Algo de muito violento explodiu dentro de mim e comecei a chorar aos soluços. Através da janela do quarto da minha filha, conseguia ver os prédios em frente. Numa varanda, debruçada no parapeito, uma mulher fumava. Ao vê-la, apenas um vulto, uma sombra, parei de chorar. Levei a mão à testa e percebi que sangrava. Voltei à cama. Acordei como acordo depois de noites de bebedeiras solitárias. Envergonhada, humilhada, mas, deste vez, com um golpe na cabeça. Um golpe aberto, mesmo por cima da sobrancelha esquerda.
2016/01/02
45
Fui à Culturgest, assistir ao concerto de Ano Novo da Orquestra Metropolitana. Ao meu lado, Gema, uma senhora de cabelo bem arranjado e camisola bordada, mexeu-se com alegria ao som de valsas e polcas. A determinada altura, ensaiou mesmo um magnífico bailado com as mãos: movimentos cheios de sedução burlesca que me fizeram lembrar Nanni Moretti, entre croissants e croquetes, a dançar enquanto espia a Silvana Mangano na televisão. A sua alegria contagiou-me de tal forma que ignorei a mulher sentada à minha frente. Passou o tempo a fazer comentários arrogantes sobre como se percebia que o público, pelas suas reacções, não percebia nada de música clássica. Pobre mulher, tão empertigada na sua culturazinha de merda, horrorizada por o povo desconhecer a etiqueta do aplauso. Foi um belo serão. Mas, apesar da alegria de Gema (ouvi o marido chamá-la pelo nome, também o vi pousar-lhe a mão nos ombros), valsas e polcas não me fizeram esquecer “Smoke gets in your eyes”, dos Platters. O olhar da Charlotte Rampling enquanto, depois de 45 anos de casamento, dança com o marido. Assim que cheguei a casa, descalcei-me, pus o cd a tocar e dancei para o gato.
Amanhã
Virado a sul, com uma grande janela de vidros de correr e caixilhos de alumínio, o quarto é a divisão mais quente da casa. Maria sente o ar pesado, o calor agarra-se à pele e parece empastar-lhe o cabelo. Volta a sentar-se na beira da cama. Respira fundo. Pensa no dia de amanhã. Logo cedo, tem aula de hidro-ginástica na piscina. Não se pode esquecer de levar os chinelos, custa-lhe sentir nos pés a água suja do chão do balneário quando não os leva. Durante a manhã, continua a pensar, precisa de telefonar ao canalizador para ver a infiltração na marquise da sala. Um fio de água aparece no tecto, mesmo por cima da trepadeira de folhas enceradas, escorre pela parede e desagua no chão de tijoleira. À tarde, se não estiver muito calor, talvez pergunte à Graça se não quer ir consigo às compras. A toalha plastificada da cozinha precisa de ser substituída e já há algumas semanas que o marido se queixa do ruído das cadeiras da sala, riscando o soalho. Comprará também borrachinhas novas para os pés das cadeiras. Se a ourivesaria da avenida não estiver fechada, talvez mande alargar a aliança. Continua a apertar-lhe o dedo. Maria sente-se entusiasmada com a perspectiva de ter um dia preenchido, mas, ao pensar no instante em que entrará na loja e pedirá as borrachas para meter nos pés das cadeiras, não é capaz de deixar de sentir uma íntima tristeza. Olha em volta. O seu quarto reflecte uma coerência que não a aborrece, pelo contrário, tranquiliza-a.
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