Perguntaram à Maria do Rosário Pedreira a razão pela qual não há novas escritoras. Ela explicou, mais coisa, menos coisa, que as mulheres, mais do que os homens, se dedicam à leitura. Têm, por isso, padrões de exigência literária elevados que não se compadecem com escritos medianos. Talvez seja assim. Encontro, porém, razões mais simples para a falta de jovens escritoras. As jovens mulheres são mães. A maternidade, que é um consolo, uma satisfação, tem corpo de sanguessuga, é um bicho hematófago que se alimenta de nós, chupa-nos o sangue e o resto. Ao fim do dia, quando adormece, a maternidade deixa apenas uma carcaça cansada. É verdade que os jovens escritores também são pais. Mas ser mãe é tão diferente de ser pai. A propósito do lançamento do seu último livro, a Filomena Marona Beja, nova escritora velha, explicou isso mesmo. Começou a escrever velha depois de se livrar do maravilhoso fardo da maternidade. Só quando os filhos se fizeram à vida e lhe largaram as saias pode dedicar-se à escrita. Quando lhe li a entrevista sosseguei. Vivo na expectativa de que me aconteça o mesmo. Hei-de escrever quando for velha e livre! Imagino muitas histórias. A história da pensão imperial. A história da promessa. A história do taxista angustiado. A história dos prédios do bairro camarário pintados de fresco. A história da sandes de salsichão enfiada no bolso do presidente da câmara. A história da mulher que comia gelados. Outras. São pequenas histórias, esquissos sem corpo, que flutuam na minha cabeça como fantasmas. Sei que poderia escrevê-las com competência, o que, nos tempos que correm, já não é mau. Não as escrevo porque à noite, quando finalmente a noite se alonga e o silêncio trepa as paredes do quarto, não resisto à exaustão. Fecho o interruptor e adormeço. Não é por cobardia que não há jovens escritoras. É por cansaço.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2010/06/03
Ana
Ana abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis, espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?
Ana cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Ou por que foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois, senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Deixei. Ficámos assim, imóveis, tocandomo-nos, durante alguns minutos. O homem saiu, por fim, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só. Despida de mim.
Ana ri. Continua: As horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não tenho de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho que estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho sempre os olhos enxutos.
Ana cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Ou por que foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois, senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Deixei. Ficámos assim, imóveis, tocandomo-nos, durante alguns minutos. O homem saiu, por fim, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só. Despida de mim.
Ana ri. Continua: As horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não tenho de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho que estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho sempre os olhos enxutos.
Calma
Hoje está muita calma, era assim que a minha avó Felicidade costumava dizer nos dias de muito calor. Estava habituada às palavras estranhas que, volta e meia, lhe saiam da boca: talego, galheta, caço, friginada, zorra, alcagoita. Porém, aquele hábito de chamar calma ao calor era coisa que me confundia. Hoje está muita calma, dizia ela, e aconchegava o lenço preto que trazia à cabeça. A minha avó é a única morta que me faz falta.
Nossa Senhora
Em frente da Igreja de Nossa Senhora de Fátima há uma loja de artigos religiosos. Vendem de tudo: recordações para a primeira comunhão, velas baptismais, livros de orações, bíblias, rosários, terços, imagens de santos, fotografias do papa, presépios. Nas vitrinas perfilam-se santos e santas, todos feitos em gesso, pintados à mão com cores mortiças. Há também nossas senhoras, pálidas, ligeiramente verdes, que brilham no escuro. A loja é de uma senhora velha que costuma sentar-se num banquinho perto de uns reposteiros de veludo azul. Abana-se com um leque para espantar o calor para a rua. Ao balcão, atendendo os poucos fregueses que entram na loja, fica a filha, solteira, feia, tímida e ligeiramente belfa. Alguém devia salvá-la.
2010/06/01
Filho
O meu filho mais velho tem da política uma visão simples. Os bons são muito bons. Os maus são terríveis. Não há cá meios-termos, não dá guarida à mediania que é a pior forma de mediocridade. Idolatra o Nelson Mandela. Odeia, visceralmente, o Salazar. Por mais que lhe falem do descalabro da primeira república e dos cofres cheios de ouro, o miúdo não encontra préstimo ou valor na ditadura. Muito pelo contrário. Faz muitas vezes a contabilidade dos mortos do Estado Novo e inclui sempre, para meu orgulho, os africanos que morreram na guerra colonial. Despreza o Sócrates, o José Eduardo dos Santos e o Hugo Chavez. Gosta do Obama. O meu marido que é meio de direita, conservador, revira-me os olhos quando o escuta chamar nomes ao Salazar. Eu não digo nada, mas acho que o João está no bom caminho. Pensa pela cabeça dele. Está longe de ser um protectorado da sua mãe. Por exemplo, por mais que falemos sobre o assunto, não concorda com casamentos entre pessoas do mesmo sexo e, do pouco que lhe expliquei sobre o conflito no médio oriente, não vai à baila com os israelitas. Desconfia deles. Ontem, à hora do jantar, enquanto abocanhava um pedaço de frango de fricassé, referindo-se ao ataque aos barcos turcos, disse mesmo que os israelitas deviam ser todos fuzilados. Nunca lhe imponho as minhas ideias ou opiniões, mas, desta vez, tenho de falar com ele. É certo que só tem onze anos, idade propícia a arrebatamentos ingénuos, mas custa-me muito vê-lo fazer análises e comentários ao nível dos que são feitos pela maior parte dos comentadores políticos portugueses.
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