Pela manhã, a caminho de Almada, a chuva caindo sobre o rio, a cidade melancólica ficando para trás, pus-me a pensar nas razões pelas quais gostava de tentar escrever um livro. Não foi preciso muito tempo para perceber a razão principal: quero escrever apenas para impressionar o meu pai e os meus filhos. Aos olhos do meu pai, que me ama, sou medíocre. Sou uma promessa que nunca se cumpriu. Um desperdício de vida. Sucumbi à rotina dos dias e serei incapaz de deixar uma marca. Aos olhos dos meus filhos, sou o oposto. Cada um deles, para além do amor que sempre se tem a uma mãe, tem por mim uma admiração que me assusta. Quero escrever para que o meu pai deixe de me considerar medíocre. Quero escrever para que os meus filhos nunca comecem a achar-me medíocre.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2011/05/30
Família
Deixou cá a minha mãe, muito lacrimosa, preocupada com os medicamentos que não tomará e com as restrições alimentares que não cumprirá. Com a desculpa do problema das partilhas que urge resolver, meteu-se no avião e voltou à Índia. Levou muitas garrafas de uisqui e vinho do porto na bagagem que, desconfio, hão-de servir para subornar funcionários judiciais subalternos. Só regressará daqui a dois meses. Vai dando notícias pelo skype. Ontem, contou, foi à praia com a tia Maria, a Fátima, a Melinda e as meninas da casa. A tia Maria é a matriarca da casa de Maina e tem seis netos. Cinco, para seu desespero, enorme frustração, são raparigas. Cinco dotes, cinco casamentos que terão de ser por si planeados. Não é nada fácil encontrar cinco noivos católicos, de famílias brâmanes, com formação superior. É a conjugação destes factores - religião, casta, formação académica - que torna a procura tão difícil. Imagino. Na praia, a tia Maria, a filha e a nora, sentaram-se vestidas, debaixo de um enorme guarda-sol. O sol é inimigo, não pelas maleitas e degenerescências que provoca, mas pela escuridão ordinária que deixa no corpo e é coisa das castas inferiores. As meninas, Lara (a delicada), Ellaine (a bela), Rhia (a inquieta), Lhea (a invejosa), molharam-se até aos joelhos, gozando o mar enquanto lhes é permitido mostrar o corpo. Mais meia dúzia de anos, e, como as suas mães, terão de ficar vestidas debaixo do guarda-sol. Se quiserem tomar banho, terão de o fazer vestidas, a ganga inchando, uma armadura de chumbo selando-lhes o corpo. A nudez será privilégio do leito conjugal. Os seus corpos serão propriedade dos maridos engenheiros, médicos, advogados, farmacêuticos, católicos e brâmanes, assim seja a tia Maria capaz de as bem casar.
2011/05/26
Arma
Vesti um vestido branco, justo, de bom corte, e calcei umas sandálias de salto alto. No comboio, na rua, nos corredores do edifício, no tribunal, no portão da escola, senti olhares pousados em mim. Uma morena vestida de branco dá sempre nas vistas. Um advogado, magrinho, olhos aguados, cabelo ralo, de palavra fácil, apresentou-se com um galanteio. É um prazer trabalhar com uma colega tão bonita, explicou e sentou-se ao meu lado. Durante o julgamento deixei a toga aberta para que pudesse apreciar uma nesga das minhas pernas cruzadas. No final, quando despi a toga, senti que os quarenta aprendizes de polícia que assistiam ao julgamento me olharam como fêmea. O juiz foi cortês na despedida e, pareceu-me, se pudesse, teria lambido o meu braço. Acabei o dia, enfiada num pijama puído, a fumar no estendal, com a certeza de que não há nada melhor do que nos quererem pelo nosso corpo. O corpo é uma arma.
Bifidus activo
Rafaela acordou cedo. Com um passo pesado dirigiu-se à casa de banho. Mal acendeu a luz, os bichinhos que se alimentam da escuridão, esgueiraram-se pelas frinchas do rodapé. Ainda tentou esmagar um com o seu pé paquidérmico, mas não consegiu. Sentou-se na sanita de olhos fechados e boca aberta. Sornou baixinho enquanto um jacto de mijo amarelo, morno, afogou os seus sonhos nocturnos. O ruído do filho a abrir as gavetas da cómoda fê-la despertar. Enfiou-se na cabine do duche e lavou-se com um gel de banho cujo aroma era anunciado na televisão como sendo exótico e oriental. Era o cheiro das cerejeiras do Japão que o anúncio prometia. Rafaela não resistia à poesia da publicidade. Por mais que o marido a incitasse a comprar marcas brancas, enchia sempre o carrinho do supermercado com os produtos mais caros que a televisão aconselhava. Dos cereais de fibra com frutos secos aos toalhetes hidratantes para limpar o rabo, das águas minerais com sabores a fruta às bolachas maria com antioxidantes, a sua despensa era um regalo para os publicitários, técnicos de vendas, especialistas em promoções e talões de desconto. Rafaela era um alvo fácil porque, como se costuma dizer, era burra que nem uma porta. Muitas vezes imaginava-se a ser abordada na rua para falar das propriedades do último iogurte com bifidus activo. Havia de falar com segurança das melhorias que notara no trânsito intestinal e também no desaparecimento da sensação de inchamento. Depois, enfiaria uma colher de iogurte pelas goelas abaixo e faria um sorriso encantador.
2011/05/25
Dimokransa
1) Pedro Lomba; 2) Luís Osório; 3)Nuno Costa Santos; 4) Mayra Andrade; 5) Mónica Marques. De Lisboa a Vila Nova de Famalicão são muitas horas a conduzir. Entretenho-me a fazer listas. Listas pequeninas.
Sansão (2)
Sento-me na cadeira. A menina coloca-me um resguardo preto gigante e, por cima, uma toalha cor-de-salmão. Lava-me a cabeça. Com as pontas dos dedos, executa movimentos circulares. Sinto-me nua, exposta, assim, sentada, de cabeça inclinada para trás, com uma mulher jovem a massajar-me a nuca. Há qualquer coisa neste gesto. Não me incomoda escancarar-me numa consulta de ginecologia. Abrir as pernas, sentir uma dedeira em latex, gelada, hirta, a percorrer-me por dentro. É um gesto asséptico e inócuo. Já a lavagem do cabelo sugere-me pensamentos impudicos e secretos. Quando termina a tarefa, a menina que lava as cabeças enrola o turco. Mal me sento, tiro a toalha e começo a secar o cabelo. Volto a olhar-me no espelho. Molhado, o cabelo torna-se ainda mais comprido. Pela primeira vez, consigo fazer uma trança, uma trança grossa, como se fosse a crina de um cavalo. Sempre gostei de penteados fora de moda, que ninguém usa, a não ser as velhas e as inadequadas. Gosto de tranças e de carrapitos, espirais de cabelo cheias de ganchos e elásticos, uma redezinha transparente por cima.
O cabeleireiro chega, por fim. Conheço-o. Não é a primeira vez que me corta o cabelo. Vejo-o muitas vezes, à porta do salão, no intervalo entre dois cortes, a fumar cigarros. Acho-o triste. Nunca o vi sorrir. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Depois de me cumprimentar pergunta, com um sumiço de voz, como quero o cabelo. “Curto, muito curto”. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Das duas uma. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e começar de novo, tornando-se numa outra pessoa, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Ele senta-se num banco alto, com rodas, e engole uma pergunta qualquer que estava prestes a fugir-lhe da boca. Começa a cortar enquanto cantarola baixinho uma canção. Tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga.
Sansão (1)
Sinto, de imediato, o cheiro enjoativo das tintas, dos champos, das ceras, dos vernizes, dos cremes-amaciadores, das máscaras capilares. Está quase vazio. Há apenas duas mulheres. Uma está sentada lá atrás e lava a cabeça. A outra está sentada em frente dos espelhos ovais. Uma rapariga de cabelo vermelho seca-lhe o cabelo. A mulher é velha. Usa um fato cor de cereja e uns sapatos rasos de pala. Pintou o cabelo de cinzento, com matizes azulados. Nunca percebi o que leva as mulheres velhas, quase mortas, a pintar o cabelo de azul, roxo, grená, cor-de-rosa. “Quero cortar o cabelo”, digo à rapariga que está na recepção. “Tem preferência por alguém?”, pergunta-me, enquanto fecha um livro de capa azulada que fala de anjos e demónios. Digo que não com um gesto. Indica-me uma cadeira. Dispo o casaco. Tiro os brincos. Retiro os inúmeros ganchos e elásticos que me prendem o cabelo. Enquanto me solto, olho-me. O meu cabelo está comprido, muito comprido, nunca o tive assim. É um cabelo forte e crespo. Tem uma ondulação indefinida que sempre detestei. Desde pequenina que o gabam. Por ser forte. Pela cor que tem. Piche, pez, breu, noite, alcatrão, escuridão, negrume.
Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates com frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo.
Sempre foi assim. Em criança, quando rumava ao cabeleireiro com a minha mãe, as cabeleireiras elogiavam-no sempre. Chamavam-se umas às outras para ver a força do meu cabelo. Eu sentia-me uma espécie de Sansão aprisionado num corpo de menina. A dona do cabeleireiro, uma senhora redonda e feia, com muitos anéis nos dedos, cujo nome não recordo, era quase careca. Por baixo dos poucos cabelos, via-se a pele lustrosa do crânio. Sempre que me via, sentada na cadeira, a fugir com os olhos para o chão para evitar conversas de circunstância, pegava nas madeixas do meu cabelo e dizia “Que sorte, a tua. Quem me dera ter um décimo do teu cabelo!”. Eu fazia-lhe um sorriso, muito forçado, sabe Deus o que me custava aquele sorriso amarelecido e falso, e desviava de novo o olhar para outro canto qualquer do salão. Para os carrinhos cheios de rolos, molas, escovas e tesouras. Ou para os escaparates com frascos bojudos, outros esguios, de cores variadas e apetecíveis. A verdade, porém, é que aquela mulher, gorda, de crânio lustroso, me assustava. Quando ela me dizia aquilo, eu, pequena, sentada na cadeira, imaginava-a uma Dalila feiosa e furiosa, uma espécie de feiticeira, capaz de me lançar um feitiço para se apoderar do meu cabelo.
2011/05/20
Calor de Agosto
Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento, escorrendo pelas paredes, metendo-se dentro das loiças do armário, espojando-se nos sofás, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a raiva não tivesse ardido como ardeu.
Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em silêncio e, sem se dar conta, encontrou alguma beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro, por causa do choro do menino, que tinha muitas cólicas, mas, sobretudo, por causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali, na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém, explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.
(Esta frase, lida num jornal, não me larga. Acho que nunca me largará.)
Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em silêncio e, sem se dar conta, encontrou alguma beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro, por causa do choro do menino, que tinha muitas cólicas, mas, sobretudo, por causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali, na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém, explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por favor, não me batas na cabeça”.
(Esta frase, lida num jornal, não me larga. Acho que nunca me largará.)
2011/05/18
Músculos
O grande romancista americano pesa que se farta. Hão-de os meus bicípites e tricípites braquiais andar mais inchados tal é o esforço matinal que faço para levar o saco do ginásio, o taparuere com as sobras do jantar, nos dias de aguaceiro, o chapéu de chuva e, debaixo do braço, aninhado, o grande romancista americano. Vale a pena o esforço porque o grande romancista escreve como poucos sobre o quotidiano, com enganadora leveza, como se fosse o quotidiano coisa de somenos, mas, de repente, sem que se espere, é incisivo e brutal. E depois, muito importante, sabe escrever sobre sexo. Trata o tema com habilidade que é coisa que a maior parte dos escritores não consegue fazer. Lembro, por exemplo, o Gonçalo M. Tavares e a forma asséptica, fria, gelada, como descreve o acto sexual. Gostando de o ler, tenho um certo horror ao homem quando o imagino na cama com uma mulher. Não há grande poesia na forma como o Jonathan Frazen escreve sobre sexo. Há, sobretudo, sinceridade. Dispenso a conversa das fezes feitas em chocolate que nunca me deu para devaneios e taras escatológicas. Mas ler sobre um homem que se deita sobre o sexo de uma mulher, esmagando-o com o rosto, para depois o escavar, como se dela se quisesse encher é um consolo na minha rotina. Leio-o e, instantaneamente, sinto os meus músculos adutores contraindo-se, contraindo-se, para morder o vazio.
2011/05/17
Bavaroise
Certa manhã, ninguém esperava, chegaram ao bairro camarário três camionetas de uma empresa de construção civil. Armaram-se rapidamente os andaimes, foram amarinhando pelas paredes acima como ervas daninhas, serpenteando em espirais, endemoninhadas. Assim que os prédios ficaram cobertos com uma talagarça de escoras e plataformas suspensas, o nº 1 do bairro camarário, edifício igual aos restantes que compunham o aglomerado, bloco maciço, quadrangular, de seis andares, três apartamentos de dois quartos por cada piso, começou a ser pintado. Um exército, pequeno e ordenado, de homens vestidos com fatos macaco azul petróleo, tratou de tudo com brio e profissionalismo. Lavaram as fachadas do edifício com máquinas de alta pressão. Com escovas de aço limparam manchas antigas de humidade e musgo. Taparam frestas, fissuras, rachaduras. No dia seguinte, quando voltaram, com trinchas e rolos gigantes, começaram a aplicar a primeira demão de uma tinta betuminosa, muito cremosa e espessa que, às crianças mais pequenas que por ali andavam, fazia lembrar mousses, bavaroises, sorvetes, outras doçuras a que não estavam acostumados, mas conheciam das rubricas culinárias dos programas de televisão.
2011/05/13
Bia e o mar (2)
Correu, pois, a menina à mãe que estava a fazer uma sopa de tomate para o almoço. Já fizera o refogado de tomate, cebola, alho. Já fritara o toucinho. Já lhe juntara água para fazer o caldo. Estava naquele momento a escalfar os ovos. A entrada repentina da Bia na cozinha, aos gritos, pedindo-lhe para ir à praia, posso ir, não posso?, posso?, deixe lá!, fê-la bater os ovos com mais força na borda do tacho, abriram-se duas gemas que se derramaram em fios. Acabou por ceder perante a insistência da filha. Apareceu-me à porta, muito encolhida, molengona, como costume, vestida de preto, a perguntar se a companhia da Bia não incomodava...
Chegámos à praia devia ser quase quatro horas. É uma praia pequenina. O areal estende-se entre duas arribas. É uma praia de rochas, algas, de caranguejos pretos espojados ao sol, onde há sempre barcos de carga na linha do horizonte e se vê, ao longe, o casario de Sines e as chaminés da central eléctrica. Fica perto da rotunda onde a prostituta anã, na torreira do sol, aguarda a chegada dos velhos de boina que a levam para o pinhal e a deitam na caruma. Reparei que a Bia se deixou estar, durante muito tempo, a olhar o mar. Abeirei-me dela. Explicou, então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que era a primeira vez que estava perto do mar. Já o vira de passagem, da estrada, quando fora a um casamento a Vila Nova, mas nunca estivera assim tão pertinho. Perante a minha surpresa, tentou justificar. O meu pai trabalha na oficina a semana toda e, ao domingo, gosta de jogar às cartas no café. A minha mãe não gosta da praia. O egoísmo dos pais da Bia aborreceu-me. De que serve ter um filho e não lhe mostrar o mar? Ou a noite? A aldeia fica a vinte quilómetros da costa e a Bia, nos seus dez anos, nunca vira o mar. A mãe nunca largou o parapeito da janela, o pai nunca largou a oficina, o irmão nunca despiu a farda para a levarem a ver o mar. Olhei a Bia com admiração e uma pontinha de inveja porque, ao contrário de mim, terá memória do momento mágico em que tocou no mar. Ficou a tarde toda dentro de água e eu de vigia com medo de tanto afoitamento. Só saiu para comer a sandes de presunto que a mãe lhe mandou para o lanche. Comeu-a a fugir, a tiritar de frio. Depois, voltou a enfiar-se na água, como se o mar lhe pudesse fugir, como se fosse coisa passageira, um acidente na sua vida.
(a Bia gostou do mar e o mar, tenho a certeza, gostou muito da Bia.)
Chegámos à praia devia ser quase quatro horas. É uma praia pequenina. O areal estende-se entre duas arribas. É uma praia de rochas, algas, de caranguejos pretos espojados ao sol, onde há sempre barcos de carga na linha do horizonte e se vê, ao longe, o casario de Sines e as chaminés da central eléctrica. Fica perto da rotunda onde a prostituta anã, na torreira do sol, aguarda a chegada dos velhos de boina que a levam para o pinhal e a deitam na caruma. Reparei que a Bia se deixou estar, durante muito tempo, a olhar o mar. Abeirei-me dela. Explicou, então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que era a primeira vez que estava perto do mar. Já o vira de passagem, da estrada, quando fora a um casamento a Vila Nova, mas nunca estivera assim tão pertinho. Perante a minha surpresa, tentou justificar. O meu pai trabalha na oficina a semana toda e, ao domingo, gosta de jogar às cartas no café. A minha mãe não gosta da praia. O egoísmo dos pais da Bia aborreceu-me. De que serve ter um filho e não lhe mostrar o mar? Ou a noite? A aldeia fica a vinte quilómetros da costa e a Bia, nos seus dez anos, nunca vira o mar. A mãe nunca largou o parapeito da janela, o pai nunca largou a oficina, o irmão nunca despiu a farda para a levarem a ver o mar. Olhei a Bia com admiração e uma pontinha de inveja porque, ao contrário de mim, terá memória do momento mágico em que tocou no mar. Ficou a tarde toda dentro de água e eu de vigia com medo de tanto afoitamento. Só saiu para comer a sandes de presunto que a mãe lhe mandou para o lanche. Comeu-a a fugir, a tiritar de frio. Depois, voltou a enfiar-se na água, como se o mar lhe pudesse fugir, como se fosse coisa passageira, um acidente na sua vida.
(a Bia gostou do mar e o mar, tenho a certeza, gostou muito da Bia.)
2011/05/11
Bia e o mar (1)
É a companhia da minha filha na aldeia. Têm a mesma idade, mas a Bia é robusta e grande. Andam sempre aos segredinhos, gostam de brincar às modelos e às secretárias, fingindo que são adultas, iniciando-se na coreografia de gestos forçados, fazendo beicinho, compondo a voz. O ano passado, andavam elas entretidas a experimentar sapatos velhos, perguntei à Bia se queria ir connosco à praia. A cara, redonda e sadia, de olhos claros, iluminou-se e correu a pedir autorização à mãe, a Maria da Luz, que é da minha idade, mas tem já dois filhos homens. Um deles é militar, esteve numa missão no Iraque e é assim uma espécie de herói da aldeia por ter estado naquela lonjura de areias, ruínas e camelos. A Maria da Luz também tem os olhos claros, mas é feia e desleixada. Usa sempre o cabelo oleoso e faltam-lhe vários dentes. É costureira, mas sem préstimo ou engenho, que a preguiça, tomando-lhe conta do corpo, a impede de aceitar até os trabalhos mais simples: chulear uma bainha ou substituir um fecho. A Maria da Luz gosta é de estar de janela, a olhar a rua, desde a escola primária até ao silos da suinicultura, rindo e falando com a Marisa, a dona do salão, e com a Preciosa que faz queijos e é mãe do Albano por quem tive uma paixão intensa no verão dos meus treze anos. Recordo que interrompia a brincadeira com as minhas primas com a desculpa de ter de ir beber água. Corria à cozinha, cujas janelas davam para os campos, e entretinha-me a olhá-lo no monte do moinho, ajudando o pai. Olhava-o e estremecia só de lhe imaginar o corpo suado, as mãos tisnadas do trabalho no campo, as pernas nuas roçando os fenos, as ortigas, as estevas. Mas a história do Albano merece outra atenção porque o amor que lhe tive foi um amor breve que não passou do desejo e por isso foi perfeito. Volto à Bia.
2011/05/10
Andorinha
Mostrei a tatuagem aos meus filhos. O mais velho, horrorizado, explicou-me que não tenho estilo para uma tatuagem. A minha filha do meio, indignada, arrepelando os cabelos, em estado de pura histeria, gritou-me que já não tenho idade para usar tatuagens. Valeu-me o mais pequeno que ainda encontra poesia nas coisas. Olhou o desenho, tocou-lhe e exclamou “Tens um passarinho tão bonito a voar no braço!”
Tarde de domingo
Encontro a mulher uma vez por ano na festa de aniversário de um sobrinho. Não pode ter filhos, tem o ventre seco, o bucho mirradinho, o interior cheio de peçonha. Todos os anos, se lamenta da má sorte, partilha técnicas de fertilização, queixa-se dos preços dos tratamentos. Este ano, à falta de filho, trouxe à festa uma cadela petit, focinho esborrachado, impecavelmente tratada, cão aristocrata, finíssimo, que já vi aquela raça em telas barrocas de tintas estaladas, aninhada nos braços leitosos de rainhas e duquesas. Chamou Margaret ao bicho. Corre a cadela Margaret com os miúdos pelos relvados. A mulher do ventre seco zela por ela com amor de mãe. Nunca a larga. Chama “Margaret!”, esganiçando a voz e levando a língua ao palato numa cambalhota atrapalhada que o nome estrangeiro obriga. Abre os braços à cadelinha quando a vê chegar, espavorida, língua rosada de fora. Explica aos meninos que a bicha está cansadinha, precisa de descansar. Limpa-lhe o focinho e as patas com toalhitas perfumadas.
Observo e penso e penso assim: mais lindo que o amor entre raças só o amor entre espécies. Uma coisa enternecedora. Varro o horizonte à cata da minha prole. O mais novo galopa. Trota como um potro. Já esfolou os joelhos, já rompeu as calças, já comeu folhas e formigas, já escorropichou duas garrafas de minis que encontrou abandonadas, ficou a plateia de mães horrorizada, ai que o menino se perde, coitadinho, e a mãe não lhe diz nada, desgraçada. O mais velho joga à bola a um canto do jardim e ensina palavrões aos primos mais novos. A minha filha está a quatrocentos quilómetros e, expliquei a quem por ela perguntou, despacha-me com três frases quando lhe telefono. Está tudo bem. Não te preocupes. Beijinhos, mãe. Olho a plateia de mulheres. Estão sentadas em cadeiras de plástico; comem folhadinhos de salsicha, bebem bebidas coloridas. Não dão por isso, mas trazem o corpo estafado. A maternidade cansa e mói em silêncio. É como um veneno que se bebe sem se dar conta. Há nelas uma felicidade genuína, uma maternal plenitude de confiança e experiência que me aborrece até à náusea. Muitas, olhando-me e à mulher da cadelinha, hão-de achar a vida madrasta, o destino muito vil e cruel: eu, displicente, deveria ser a dona da cadelinha aristocrata; a mulher do ventre vazio, amorosa, amável, tão disponível para participar nas tertúlias femininas sobre receitas da bimby e pediatras, deveria ser a mãe dos meus filhos. Compunha-se um bocadinho o mundo e fazia-se justiça na tarde de domingo.
Observo e penso e penso assim: mais lindo que o amor entre raças só o amor entre espécies. Uma coisa enternecedora. Varro o horizonte à cata da minha prole. O mais novo galopa. Trota como um potro. Já esfolou os joelhos, já rompeu as calças, já comeu folhas e formigas, já escorropichou duas garrafas de minis que encontrou abandonadas, ficou a plateia de mães horrorizada, ai que o menino se perde, coitadinho, e a mãe não lhe diz nada, desgraçada. O mais velho joga à bola a um canto do jardim e ensina palavrões aos primos mais novos. A minha filha está a quatrocentos quilómetros e, expliquei a quem por ela perguntou, despacha-me com três frases quando lhe telefono. Está tudo bem. Não te preocupes. Beijinhos, mãe. Olho a plateia de mulheres. Estão sentadas em cadeiras de plástico; comem folhadinhos de salsicha, bebem bebidas coloridas. Não dão por isso, mas trazem o corpo estafado. A maternidade cansa e mói em silêncio. É como um veneno que se bebe sem se dar conta. Há nelas uma felicidade genuína, uma maternal plenitude de confiança e experiência que me aborrece até à náusea. Muitas, olhando-me e à mulher da cadelinha, hão-de achar a vida madrasta, o destino muito vil e cruel: eu, displicente, deveria ser a dona da cadelinha aristocrata; a mulher do ventre vazio, amorosa, amável, tão disponível para participar nas tertúlias femininas sobre receitas da bimby e pediatras, deveria ser a mãe dos meus filhos. Compunha-se um bocadinho o mundo e fazia-se justiça na tarde de domingo.
2011/05/03
Calipo de morango
Quando voltou da escola encontrou a casa comida pelo fogo. Havia uma multidão à porta que se calou quando a viu chegar, mochila às costas, lambendo um calipo de morango. A multidão ficou a olhá-la enquanto caminhava. Uma velha interrompeu o silêncio e o vazio. Agarrou-se a ela a chorar. Ai que desgraça, Luzia, que estás sozinha no mundo!, soluçava a mulher. Aquela sina, de total solidão, tomou-a a sério. A seguir, mostraram-lhe os corpos carbonizados dos pais.
Cansaço
Gosto de correr por causa da minha sombra reflectida no chão, guiando-me no percurso, antecipando a minha passada. Gosto de correr porque o faço só e a solidão é como o cor-de-laranja e o amarelo. Fica-me bem. Gosto de correr por causa do rio, do crepúsculo na outra margem, dos pássaros marinhos, do ranger das tábuas, dos chineses que chegam para jogar a sorte no casino. Gosto de correr por causa dos homens e das mulheres com quem me cruzo e que também correm. Uns mais velozes, outros menos, todos partilhando o prazer de cansar o corpo. Sobretudo, gosto de correr por causa desse cansaço que fica por dentro e faz lembrar outros cansaços.
2011/05/02
Ground Zero
Faz-me confusão que se celebre a morte de alguém como se se tratasse da vitória de uma equipa num campeonato de futebol. Os sorrisos de satisfação, os gritos de ordem, os abraços, os cartazes celebrativos, causam-me repulsa. Talvez seja necessário experimentar a perda para celebrar com alegria e um copo de espumante na mão a morte de um algoz. Durante o dia, perante a minha incapacidade de perceber a alegria dos nova-iorquinos, procurei encontrar alguém cuja morte me fizesse celebrar no meio de uma multidão. Passei o dia nessa busca. No comboio, enquanto corria com os meus ténis novos, alados, no portão da escola. Percorri a lista de ditadores sanguinolentos, de políticos abjectos, de ódios de estimação televisivos. Esmiucei a memória à procura de quem ao longo da vida me magoou profundamente. Pensei em padres pedófilos, em carrascos, em parricidas, em loucos, nos assassinos e violadores de velhinhas alentejanas, em homens que batem em mulheres e as matam dizendo que as amam. Não encontrei ninguém cuja morte me alegrasse. E, no entanto, cresci numa casa em que, volta e meia, de roda da televisão, parecia uma fogueira, se desejava frequentemente a morte e se explicavam métodos de eleminação. O meu pai sempre foi adepto do fuzilamento. Escutava as notícias e, de vez em quando, punha-se a rosnar entre dentes. A gente já sabia o que vinha a seguir. Carregava o cenho e expressava o desejo de fuzilar esquerdinos, comunistas, revolucionários, sindicalistas, pervertidos, homossexuais. A tia Dé, de volta do fogão, o avental engomado, pés de criança enfiados em chinelos de corda, não era grande adepta do fuzilamento, método asséptico, breve, quase indolor. Cada vez que ouvia notícias de pedófilos, de traficantes, de violadores, cerrava os punhos sobre os estufados de peru e, cuspinhando, fazendo uma careta, dizia que se os apanhasse, a esses malandros, lhes havia de picar o corpo como uma cebola. Muito picadinhos, dizia. Depois, explicava, havia de os dar a comer a uma matilha de cães. Habituei-me aos fuzilamentos do meu pai e aos picadinhos da tia Dé. Passados tantos anos, continuo a escutar-lhes com agrado as sentenças pesadas. Sinal de que estão perto de mim.
2011/05/01
Testículos de galo
Encontrei o escritor na fila da mercearia no domingo em que voltei com os miúdos para o apartamento. Eu vinha em ruínas, o corpo cheio de culpa, a garganta estrangulada por muitos nós, como se a liberdade fosse pecado, uma ignomínia intolerável. Entretive-me a espreitar as compras do escritor: três laranjas, uma pasta de dentes, um pacote de massa fresca, uma lasagna congelada. Nesse dia, não sei por que razão, decidi passar a comprar o jornal também ao domingo.
Canja de galinha
Tiro a gordura amarela da canja, uma placa lisa e brilhante que se formou pela noite, com o frio. Mexo o caldo gelatinoso afastando os cotovelos de massa. Procuro corações, moelas, fígados para a Dá, ovinhos só de gema para o Joaquim, pedaços de carne escura para o João, patas e pescoços para mim. Uma canja boa faz-se com um galinha velha, de carnes rijas, antigas, que só amaciam depois de muito tempo de cozedura. Enquanto reparto o caldo pelos pratos lembro a fadiga que antigamente me chegava aos sábados e aos domingos. Rondava o apartamento, os meus gestos eram mecânicos, neles não havia alegria, sequer amor, encontrava teias e carrascos em cada canto, grades nas janelas, o sol nunca entrava, havia musgos e bolores por toda a parte.
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