2008/02/29

Marjane Satrapi

Também fui ver o filme da Marjane Satrapi. A sala estava cheia. Apinhada de gente. Fiquei sentada ao lado de duas lésbicas. A lésbica inteligente passou o tempo a explicar à lésbica burra as minudências do filme. Até lhe explicou que Teerão era a capital do Irão. Insuportável, a lésbica inteligente. E riam muito, as parvalhonas. Com o seu riso exagerado, gargalhadas alarves em catadupa, queriam mostrar aos restantes iluminados que ali estavam que também percebiam a subtileza das piadas, a ironia do humor simples e inteligente. Esclareço: não sou homofóbica. Longe disso. Sou só muito democrática nas minhas embirrações.

Darjeeling Limited

Fui ver o Darjeeling Limited. A sala estava vazia. Eu e a minha solidão numa sala vazia. Coisa tão triste. Lembrei-me do atropelamento do João a caminho de Corturim perto da Roxane´s laundry. Procurávamos um riquexó que nos levasse a Benaulim. Íamos na beira da estrada, o João saltitando aos meus pés, como os gafanhotos dos verões da minha infância. E depois foi atropelado. Apesar de tudo, apesar de me ter morto por breves instantes, a Índia continua linda. O Adrien Brody também. Tem uns pés maravilhosos. Pés do herói indiano Sri Rama. Vi-o banhar-se nas águas verdes de Banganga e tinha uns pés assim.

Público

Vão perguntar ao Miguel Esteves Cardoso o que odeia no Público. Eu não sou o Miguel Esteves Cardoso. Mas respondo à mesma. Odeio as crónicas da Laurinda Alves à sexta-feira. Não percebo como é que lhe dão uma página inteira para discorrer sobre cuidados paliativos e grupos de oração. Odeio também um dos novos cronistas do P2, um tal de Kalaf Ângelo, que usa chapéu de coco. É um chato que acha que ser moderno e cosmopolita é sair à noite no bairro alto, jantar em restaurantes japoneses, fazer compras em mercados biológicos e frequentar lojas gourmet em busca de vinagres balsâmicos. Odeio, por fim, o facto do Público não ter uma secção de mensagens eróticas decente. Uma miséria. O Diário de Notícias bate aos pontos o Público nesta matéria. Lá se encontram as brasileiras com peitão XXL do Barreiro e os travestis, activos e passivos, da Ameixoeira. Uma variedade geográfica e descritiva invejável.

Sacavém

Houve um homicídio em Sacavém. Um toxicodependente matou os pais e depois suicidou-se. Vinha no jornal. Sacavém é terra de inquilinos comunistas que pagam rendas de 20 euros por casas que já não habitam - uns porcos, uns porcalhões, no dizer da minha sogra senhoria - e de gente sanguinolenta. Até a guarda é violenta em Sacavém. E também lá vive um serial-killer. Ainda há-de dar que falar. Noite fora, quando não está a retalhar corpos, escreve contos bukowskianos, monótonos, cheios de palavrões e africanas boazonas. Não gosto de Sacavém. Perdi lá a virgindade.

2008/02/26

Alaúde

Descia eu a avenida entretida a olhar os plátanos jovens, que já se cobrem das primeiras folhas, quando topei com uma colega do liceu. Estuguei o passo. Tudo nela continuava a transpirar a tristeza da sua adolescência: a permanente feita para dar corpo ao cabelo ralo, os dentes encavalitados a afunilarem-lhe o rosto, a insuportável monotonia dos castanhos no vestir, o castanho-escuro da saia a destoar do castanho-azeitona do casaco e do castanho outonal dos sapatos, o mesmo olhar de bicho assustado, que se esbofeteia sem remorsos e sem piedade. Tinha um pai autoritário que deixava papelinhos amarelos espalhados pela casa a lembrar as obrigações de recato, decência e empenho, próprias de uma rapariga da sua idade. Deixei-me ficar a olhá-la. Pouco depois, ainda eu me aninhava no conforto da maldicência, vi passar, do outro lado da avenida, um magnifico rabo com forma de pêra, descomunal, enorme, farto em carnes descaídas. A dona do rabo bamboleava apressadamente as nalgas, espartilhadas numas calças de ganga muito justas, afastando-as para longe de mim. Atraem-me os rabos grandes em forma de pêra, em forma de alaúde. É a atracção pelo grotesco do corpo. Acontece-me o mesmo com a magreza extrema das anoréticas e a feiura excessiva de certos pés. Hesitei entre seguir o rabo em forma de pêra ou deixar-me ficar ali a olhar a minha colega do liceu, tão pindérica no seu sobretudo castanho-azeitona. Tanto hesitei que, quando olhei em busca do rabo gigante, já não o vi. A vida está cheia de decisões difíceis que, muitas vezes, nos exigem rapidez e segurança. Sou incapaz de tomar tais decisões. Fogem-me os rabos em forma de pêra e o resto também.

2008/02/24

Charles Aznavour-Il faut savoir

Il faut savoir

Depois de jantar, deixámo-nos ficar à mesa a beber uma garrafa de vinho tinto e a fumaçar os gauloises do Manuel. Ela colocou o Charles Aznavour no leitor de cds. Obriguei-a a repetir vezes sem conta o “Il faut savoir”. Quando o Manuel chegou, enfiado no anorak de forro xadrez, que conheço dos tempos em que ele era apenas meu patrono, sorriu. Disse qualquer coisa do tipo “as manas já estão alegrotas!”. Estávamos. A alegria da minha irmã deu-lhe para dizer, com ar pateta, que adorava o Sr. Frazão, colega de trabalho. A minha alegria deu-me para falar de sexo anal com o meu cunhado enquanto ele comia fatias de pão besuntadas de um queijo amanteigado. Gosto do Manuel. E eu nem sou muito de gostar de pessoas. Desprezo, genuína e autenticamente, quase toda a gente a conheço. O Manuel é a única pessoa que conheço que é capaz de falar, com interesse, sem dissimulação ou pedantismo, com qualquer pessoa e sobre qualquer assunto. Não há muita gente assim. Tanto fala sobre as guerras púnicas e a Anna Magnani como fala sobre futebol e técnicas de masturbação.

(Ainda bem que não fui ao concerto. Estava lá o Herman José com uma camisa cheia de tachas douradas.)

Domingo

Aos domingos, enchem-se os centros comerciais de homens sós e tristes. Trazem pelas mãos crianças que olham em silêncio. Dão-lhes sandes, gelados, gomas, copos de coca-cola, compram-lhes baldes de pipocas, levam-nas ao cinema. Às vezes, quase nunca, abraçam-nas para sentir de novo a mornidão dos seus corpos tenros. Entregam-nas ao final do dia às mães que as esperam para por fim à solidão que chega de quinze em quinze dias.

Geni e o Zepelim

As pessoas vivem amorfas e tristes por serem incapazes de questionar as três relações importantes das suas vidas. A relação com a morte. A relação com os filhos. A relação com a sexualidade. Mas coisa, menos coisa, foi isto que ele disse. Quanto ouvi tal panaceia, estremeci. É que eu questiono tais relações e nem por isso sou mais feliz. Quando o faço percebo que falho em todas elas. Falho na relação com a morte por cobardia e intermitência. Falho na relação com os filhos por excesso. Falho na relação com a sexualidade por tudo. E também dá-se amiúde aos velhinhos sem saúde e às viúvas sem porvir… Quem assim sabiamente falou foi o Eduardo Sá, o homem da voz feita de coisinhas boas, que, ao final da tarde, vira os dias do avesso com a Isabel Stillwel na Antena 1. Uma outra vez, já há algum tempo, dei por eles a discorrer sobre sexo e prazer. Segundo o Eduardo Sá, só há prazer, verdadeiro prazer, quando, numa relação de total confiança e comunhão, se penetra da superfície da pele ao fundo da alma. Desliguei o rádio e deixei-me ficar em silêncio a roer as unhas até o sabugo rebentar. Depois corri à cozinha em busca der uma faca de serrilha, suficientemente afiada e dolorosa, para cortar os pulsos. Escorreu sangue por todo o lado. Vi-me aflita para limpar as nódoas do tapete que está por baixo do lava-loiças.

2008/02/22

2008/02/19

Paquistão

Há, entre os Bhuttos, uma mulher de que pouco se fala. Chama-se Fátima. Jovem, extraordinariamente bonita, com um rosto longo, tem a altivez própria das rainhas antigas. Neta de Zulfikar Ali Bhutto e sobrinha de Benazir, critica abertamente o sistema de dinastia política que impera no partido da sua família, o PPP. Diz, e com razão, que nenhuma democracia se pode construir com tão frágeis fundações.

Cuba

Quando se reformou do banco a primeira viagem que o meu tio Alberto fez foi a Cuba. Veio de lá maravilhado. Não eram só as praias, as mulatas, os mojitos e a música. Gabava sobretudo as maravilhas de um socialismo consolidado: o nível de instrução da população, os cuidados médicos, as escolas, o espírito solidário das pessoas. Quando me atrevi a falar-lhe da miséria do povo cubano, tratou de me olhar com a displicência própria da sua geração - que, como não se cansa de lembrar, fez o 25 de Abril - e logo a imputou ao embargo americano. A verdade é que a esquerda nunca escondeu a sua admiração pelo regime cubano. Atribuiu ao seu líder carisma e fez dele um herói da luta anti-americana. Assobiou, vergonhosamente, para o lado cada vez que apareceram notícias sobre os presos políticos, a censura, sobre os ataques à liberdade de expressão, sobre o sistemático desrespeito pelos direitos humanos. Os povos oprimidos só merecem a solidariedade da esquerda se a sua desgraça puder, de alguma forma, ser atribuída aos americanos. Os outros povos esquecem-se. A esquerda é perita em gerir solidariedades e apoios. Veja-se o caso do nosso José Saramago, homem tristemente preso no seu redil, incapaz de apertar a mão ao presidente Cavaco, mas tão fiel ao amigo Fidel. Só descobriu que Cuba era uma ditadura quando o regime não conseguiu esconder a execução sumária de três homens que procuraram na incerteza do oceano a liberdade que não podiam encontrar no seu país. Esta esquerda, bacoca e senil, sente hoje uma mágoa, um aperto no peito, um não-sei-quê de sincera ternura, perante a anunciada retirada de Fidel Castro da chefia do Estado e das Forças Armadas de Cuba. E continua a gritar “Socialismo ou morte! Hasta siempre comandante!" É estranho. E profundamente triste.

2008/02/18

Chuva

1) Esta noite, enquanto lá fora ribombavam trovões e o céu se desfazia em pingos grossos de chuva, sonhei com o Francisco José Viegas. Tinha carapinha de caracol solto, o que o favorecia, mas não sabia fazer filhós. Punha-lhes demasiada farinha, era avaro na aguardente e, decididamente, não sabia sovar uma massa. 2) Anda um carro de bombeiros na minha rotunda. A mulher do quarto andar do prédio em frente ligou outra vez o gás. Há um bombeiro empoleirado numa escada gigante. Os transeuntes formam pequenos grupos. Hoje, porém, é um péssimo dia para se suicidar. O aparato é menor. Da última vez, vieram três carros de bombeiros, dois da polícia e vários do instituto nacional de emergência médica. 3) Espero que a chuva tenha arrastado o serial killer de Sacavém. Dizem que as águas se amotinaram por lá, galgaram ruas e passeios, esbulharam estabelecimentos comerciais e casas, deixando um mar de lama por todo o lado.

2008/02/14

Fausto Bordalo Dias

Feira Nova

Vivemos numa época em que a vida se leva como se fosse um anúncio de telemóvel. É obrigatório estar preenchida com conversas animadas e com muitos amigos circunstanciais, com quem jantamos ocasionalmente para falar de filhos e viagens a países distantes, recomendáveis pelos spas dos hotéis e também pelos nativos risonhos e subservientes. Num tempo assim, atafulhado de alegrias e encontros, a tristeza não se confessa. Não se murmura sequer. A tristeza embaraça. Gosto do meu marido por ser a única pessoa a quem posso ligar a meio da tarde só para dizer que estou triste. Estou triste, digo-lhe e o bocal do telefone enche-se de papoilas, flores efémeras, e de borboletas negras que adejam, frágeis, antes de morrer. Ele consola-me com silêncio e um alfarrábio agustiniano que encontra numa venda de rua e me entrega quando chego a casa. O livro, bafiento, cheira ao restolho húmido dos campos de inverno, aos toros de oliveira queimando devagar nas fogueiras, aos rios caprichosos do norte. Cheira à vida e à morte dos outros. Vem o livro embrulhado num saco de plástico do feira nova e esse pormenor, sei, não o hei-de esquecer. Entre as folhas, traz dois postais amarelos do Rio de Janeiro, escritos, numa letra inclinada, por uma mulher chamada Maria Adelaide.

Gesto

Haviam de decepar as grávidas que passam a vida a afagar as barrigas. É um gesto de insuportável lamechice. Pensam as pobres que o amor a um filho nasce assim, num instantinho, de repente, por dá cá aquela palha, só porque a cópula foi bem sucedida e um feto lhes saracoteia no ventre. Só amei os meus filhos, só tomei consciência de que era amor que lhes tinha, muito depois de os expulsar do corpo.

2008/02/11

Teresa Torga

Mandela

Tive o primeiro diário aos doze anos. Tinha uma chave pequenina, de dentes muito recortados, uma capa nacarada, feiíssima, com uma princesa barroca, dançando alegremente num jardim de arbustos. Lá confessei os pecados de criança, a noctívaga compulsão masturbatória, a chatice rotineira do ciclo preparatório, as precoces discussões com o meu pai que, volta e meia, me enchia de sopapos por eu falar mal do Salazar. Um dia, já não sei a que propósito, resolvi fazer uma lista dos meus heróis. Lá estão: Jesus Cristo, Bryan Adams, Luther King e Nelson Mandela. A ordem, suponho, foi aleatória. Sempre que releio aquele diário, o primeiro, sinto um certo constrangimento, uma vergonha miudinha que me cobre o corpo e me faz enrubescer as faces. Não tenho, porém, vergonha dos dislates juvenis que lá escrevi. Nem sequer renego o amor pelo Bryan Adams. O que me embaraça é a caligrafia redonda de adolescente. A letra de imprensa em detrimento da letra manuscrita, que aprendi a desenhar, elegante e cuidada, com a professora da primária. Pior, em cima do cada “i”, a fazer de pinta, uma enorme bola, muito redonda, muito gorda, muito insuportável. Uma vergonha.

(Em 1990 um dos meus heróis, de menina e de sempre, foi libertado. Descobri nesse dia que se podia chorar de emoção e de alegria e que era bom. Faz hoje 18 anos.)

Obamamania

O meu pai é indiano, a minha mãe é portuguesa, o meu irmão é negro. Eu sou tricolor, branca, castanha, negra, porque herdei também o breu do meu irmão. As questões da raça e da discriminação sempre as senti na pele como minhas. Vem este intróito a propósito do crescente e histérico frenesim que se tem gerado à volta da candidatura do Barak Obama. Dizem os seus apoiantes que ele é uma lufada de ar fresco, que herdou os dotes de oratória do Luther King, que é capaz de galvanizar as multidões, que recolhe o apoio do clã Kennedy, que é negro e, por ser negro, a sua eleição poderá significar um sinal de mudança e tolerância no mundo. Tamanho disparate dá-me cabo dos nervos. Não gosto de dinastias, desconfio sempre da eloquência dos discursos e acho que escolher um presidente por ser negro é pior do que rejeitá-lo pela sua cor.

2008/02/06

Under My Thumb-The Rolling Stones

Ácido Muriático

Expliquei o meu problema à senhora da drogaria: o cheiro que fugia dos canos e se espalhava pelo apartamento como uma gaze invisível, o cheiro que, logo pela manhã, me afagava o nariz, com mãos pútridas, e me fazia correr à casa de banho para vomitar os sonhos da noite. Escutou-me a senhora da drogaria em silêncio e aconselhou-me ácido muriático. Muito velha, falando de olhos fechados, explicou as vantagens do ácido em relação à soda cáustica. Atrás dela, que me pareceu uma feiticeira cheia de sabedoria, uma pitonisa capaz de resolver os mais intricados enigmas do mundo, prateleiras carregadas de detergentes e diluentes. Mal cheguei a casa corri à casa de banho. Abri o ralo e deitei o líquido para matar o bicho dos canos. Ouvi gemidos de agonia. Tal como avisara a pitonisa da drogaria o cheiro desapareceu imediatamente. Milagroso, pensei. E meti a garrafa do ácido à boca. Fervilharam-me as goelas e o corpo ardeu-me por dentro.

Melena

A direita despreza o seu estilo, a sua pronúncia, os tiques chavianos de apontar o dedo aos ricos e poderosos. Colhe os aplausos de certa esquerda, que aprecia o estilo trauliteiro, truculento e inconsequente. O Carlos Magno, que é seu amigo (mas de quem é que o Carlos Magno não é amigo?) assegurou no Contraditório da Antena 1 que o novo bastonário pensa muito no que diz. Fiquei mais sossegada. Há, porém, duas coisas que me inquietam. Uma é que o homem que acusa a justiça de ser fraca com os fortes e forte com os fracos diga que a investigação levada a cabo no caso Casa Pia pretendeu a decapitação do partido socialista. Parece que, no caso Casa Pia, o bastonário, como quase toda a gente, está mais preocupado com os fortes do que com os fracos. A outra é o penteado. Agora que é bastonário, em vez do lustro untuoso da brilhantina, que lhe dava uma certa graça de merceeiro, cai-lhe, revolta, uma melena sobre a testa. Estremece a melena cada vez que levanta a voz.

2008/02/05

Swarovski

A Rafaela fez extensões e colocou unhas de gel. Foi a prenda de Natal que pediu ao marido. Agora, para além da banda gástrica, tem um mar de coisas postiças pelo corpo. Hoje, pela manhã, caiu-lhe uma unha perto da fotocopiadora. Foi uma aflição. A gente ouvia-lhe os gritos pelo corredor, pedindo que ninguém pisasse a sua rica unhinha. Quando finalmente a encontrou, voltou para a secretária, tomou um calmante e ligou para a manicura, uma brasileira chamada Débora, que mora na Brandoa. A Débora, pelo que percebi, é especialista, não só na colocação de unhas de gel, mas também na decoração das mesmas. Explicou que era normal o decesso das unhas de gel, que, mais cedo ou mais tarde, as marotas partiam e davam lugar às verdadeiras, tão insignificantes, autênticas e rosadas. A Rafaela acalmou-se e disse, juro que disse, que já não podia viver sem unhas de gel. Fez marcação para colocar novas unhas, desta vez incrustadas com cristais swarovski. Eu estremeci. Mal posso esperar.
(não suportaria o tédio da minha vida sem esta mulher.)

2008/02/02

La Saraghina-Fellini's 8½

Candidaturas bicéfalas

Com as devidas distâncias, a Hillary Clinton, ao permitir os empolgamentos do seu marido Bill na campanha eleitoral, faz lembrar a Cristina Kirschner, habilidosamente utilizada pelo seu Nestor para continuar à frente da presidência da Argentina. Estas mulheres, padecentes do síndrome evita peron, fazem-me espécie.

Mãe

Via passar os carros funerários, quando era pequenina, e achava-os lindos. Eram pretos e compridos. Passavam por mim, lentos, sempre envoltos num halo de sofisticação e cerimónia. Através dos vidros fumados via coroas de flores, colchas debruadas a fio dourado e mulheres pesarosas, tão bonitas nos seus vestidos de luto. Um dia, enquanto esperávamos na paragem de autocarro perto do hospital onde trabalhava, expliquei à minha mãe que gostava daqueles carros. Ela olhou-me com horror durante longos segundos e depois largou um Ai filha, não digas disparates! Em surdina, disse que aqueles carros levavam os mortos aos cemitérios. A minha mãe falou da morte como se a morte não fosse coisa dos vivos. A morte acontecia aos outros, aos indigentes, aos doentes, aos muito velhos, inevitavelmente, aos quase mortos. A atitude da minha mãe, em relação à morte, foi de tal distância que, na minha cabeça de menina, me convenci de que ela, tão viva, nunca me morreria. Aos trinta e cinco anos continuo convencida de que a minha mãe nunca me morrerá.

(Começam a morrer as mães da minha geração.)