2007/02/21

Guiomar

Guiomar abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis e espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo até que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?

Guiomar cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Eu deixei. Ficámos assim, imóveis, durante alguns segundos. O homem saiu, pouco depois, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só.

Guiomar ri. Continua: Sabe, as horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Sabe porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não preciso de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho de estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho quase sempre os olhos enxutos.

(copy/paste)