2007/03/30

Possidónio

A morte marcou-lhes o caminho. Conheci o Possidónio à saída do cinema. Vinha a sair da sala um do king com a minha irmã - era um filme do Almodovar, lembro-me agora - quando deparei com a M. Ela apresentou-me o homem que a acompanhava, um antigo pretendente da Costa de Caparica. Já velho. Alto e seco. Triste apesar dos sorrisos corteses. O cabelo encrespado e pintado. Parecia saído de uma revista antiga, de um tempo passado. Cheirou-me a mofo, ao bolor das casas velhas. Olhei-lhe o preto do cabelo, incapaz de esconder a velhice que lhe habitava os olhos e as mãos. Depois de duas ou três frases despedimo-nos. Nunca mais o vi. Através da M., porém, conheci a sua vida. As suas bizarrias. Era meticuloso com a alimentação, a higiene. Conheci a sua solidão. Também a sua morte. Entre fragas, precipícios e abismos. O mar lá em baixo, furioso, um demónio frio de águas agitadas, chamou-o com juras falsas. Disse-lhe assim “Vem, vem agora, vem sem medo, que apagarei toda a tua dor”. Ele foi. O corpo foi descoberto muito tempo depois. Inquieto-me sempre que penso nessa madrugada e na dor que o mar engoliu. Tenho medo do mar. Sempre tive. Está cheio da dor de outros.