2007/05/11

Abuxarda

Entrei. Fiz um esforço para cumprimentar o senhor doutor e a senhora enfermeira que, rubescente do sol de Maio, parecia uma santola. Não sei porquê, por instantes, imaginei-a a viver na Abuxarda e a passar férias em Albufeira num T2 mobilado de pinho. Despi-me. Olhei para as minhas pernas, tristes, tão tristes, as pernas mais tristes do mundo, cheias de pêlos encravados e de marcas de picadas de mosquitos. Deitei-me na marquesa. O médico apalpou-me por dentro e por fora. Tomei consciência do meu interior. Estranho, o nosso avesso. Veio-me à cabeça uma palavra inusitada: excrementício e também uns versos de um poema da Yvette Centeno que fala de crianças mordiscando romãs. Respondi-lhe por monossílabos. Sim. Não. Nunca. Às vezes. No final mandaram-me vestir. O médico atirou com as luvas de latex para dentro de um contentor. As minhas luvas juntaram-se às luvas que durante a manhã tocaram outras mulheres. Corrimentos, mucos, outros líquidos vaginais misturando-se. A minha fluidez misturando-se com a de outras mulheres. O médico lavou as mãos com um líquido azul. Um cheiro de hospital espalhou-se pelo gabinete. Depois fez as perguntas da praxe. Perguntou-me pela pílula. Se continuava a tomá-la. Disse-lhe que não. Perguntou-me porquê. Expliquei-lhe. Ele soltou um ahaaa! levemente prolongado e rematou, dizendo, entre dentes, que eu não tinha vida sexual activa. Escrevinhou isso mesmo numa folhinha verde. Anui. Quis ser outra pessoa qualquer. Explicar-lhe que não era bem assim, que a vida, quase sempre, é mais complicada do que parece. Não disse nada. Fiquei calada. À saída, a enfermeira da Abuxarda sorriu-me com complacência e tocou-me, piedosa, no ombro.