2007/05/15

Quatro

A mulher do lábio leporino viajou hoje no comboio das 9.20. Trazia no regaço o Correio da Manhã e a Nova Gente. Mal entrei na carruagem animei-me. Ouvi a sua voz gutural, depois, vi-lhe a carranca medonha, a boca sem caninos, as lentes de fundo de garrafa, o cabelo num desalinho. Falava com as suas companheiras de viagem sobre televisão. É sempre um bom tema de conversa. Elencava a mulher do lábio leporino, de forma sintética, os programas a que assistia na televisão. Na um, dizia ela, vejo o programa do Malato e os telejornais, na dois vejo as séries e alguns documentários, na três vejo o programa do Herman, na quatro, e fez-se um silêncio embaraçoso, na quatro não vejo nada... As companheiras, vindas como ela de Castanheira do Ribatejo, baixaram os olhos, recusando-lhe qualquer tipo de cumplicidade, de conforto. A estúpida, pensaram, esta tipa feiosa, a querer passar-se pelo que não é, a querer fazer-se diferente de nós, não vê a quatro, pois se ainda ontem foi desde Sacavém até Entrecampos a falar daquela moça do concurso que já foi miss! Concordo com as companheiras. Descarada, a mulher do lábio leporino, descarada e mentirosa. A Nova Gente com os vencedores do concurso beijando-se na capa e a mulher do lábio leporino olhando por cima das lentes os prédios de papelão e as faveiras das hortas, carregadas de vagens carnudas.