2007/05/08

Concertina

Há decerto em mim o deleite prolongado de olhar o rio, imenso e cinzento, prestes a chegar à foz, os troncos boiando nas águas como cadáveres de mendigos que ninguém reclama ou chora, os cardumes de tainhas roçagando as margens, alimentando-se de lixo e de limos com as suas bocas de ventosa. Há a outra margem, lugar da fuga, que a minha fuga há-de sempre rumar ao sul. Assomam-se do outro lado, entre as gruas, casas feias que nascem como flores de pedra nos campos amargos de papoilas e macelas. Numa dessas casas, sei-o, um homem velho toca concertina para uma mulher que, deitada há muito numa cama, espera que o rio morra no mar.