2008/10/03

Mário

Acordei com uma sensação estranha de confinamento. Como se estivesse a sufocar devagar. Cada vez que respirei fundo - sentado na cama, ainda estremunhado, fi-lo várias vezes - senti que o ar que entrou no meu corpo ficou a meio caminho. Não atingiu os seus objectivos: chegar ao final do aparelho respiratório, aos alvéolos pulmonares. Perdeu-se nos brônquios ou nos bronquíolos. Levantei-me e na penumbra do quarto, com freixos de luz entrando pelas frinchas dos estores, lembrei-me da minha professora da quarta classe. Chamava-se Vitória. Entre outras coisas, ensinou-me o aparelho respiratório. Boca, nariz, faringe, laringe, traqueia, pulmões, brônquios, bronquíolos, alvéolos pulmonares. Era militante comunista e foi a primeira paixão da minha vida. No verão usava decotes ousados e camisolas justas. Quando levantava os braços para apagar o quadro mostrava uma penugem que me fazia estremecer. Gozava com a bandeira e o hino. Odiava o Salazar. Nas aulas obrigava-nos a ouvir canções do José Afonso e lia-nos, com uma voz doce, poemas sobre a revolução. Eu amava-a em silêncio. Um dia, porém, ao chegar à escola, encontrei-a perto do portão. Beijava um homem com paixão. Era um preto. Um desses pretos retintos que, com esforço, tentam disfarçar o cheiro a catinga e os traços simiescos. Nesse dia o meu amor pela professora Vitória, tão grande e assolapado, acabou. Passei a odiá-la com igual intensidade. Não sei por que me lembro dela precisamente no dia em que vai ser lida a sentença.

(O líder do grupo de extrema-direita Hammerskins em Portugal, Mário Machado, foi hoje condenado a 4 anos e 10 meses de prisão efectiva. Continua a achar-se um preso político. Para além de feio, é- como dizê-lo? - uma besta delirante.)