2009/11/10

Prótese

O meu pai está sentado atrás da secretária que veio de Moçambique. Fixa o monitor do computador. Olha o seu rebanho de acções como um pastor zeloso. Todos os dias, se levanta de madrugada para consultar os mercados, as cotações, os índices. Investe em derivados. Seja lá o que isso for. Arranjou um corrector goês que lhe trata dos investimentos na bolsa indiana. Telefona-lhe com frequência. Mói o desgraçado com perguntas e pormenores. Ninguém sabe ao certo quanto dinheiro tem investido, quanto ganha, quanto perde. A minha mãe só sabe que, volta e meia, ele entra na cozinha muito alegre a pedir-lhe um beijinho. É sinal que as coisas correm bem. Cheiro-lhe a cabeça como faço aos meus filhos. Abordo o assunto que me trouxe ali. Pergunto-lhe como pretende fazer a vida negra aos novos vizinhos. Ele sorri embaraçado e pisca os olhos. Mostra a dentadura nova, uma prótese fixa, que mandou fazer na última viagem. Um trabalho muito em conta, feito com todo o cuidado e saber num dentista que fica perto do mercado de Margão, mesmo ao lado de um talho que vende carne muito fresquinha. As mulheres de sari escolhem a galinha mais gorda da capoeira e, com um golpe certeiro, o magarefe trata do assunto. Imagino o meu pai de boca muito aberta no consultório enquanto o médico lhe arranca os dentes bambos. Há pedaços de algodão ensanguentados num rim de metal. As galinhas, lá fora, soltam cacarejos de pânico assim que vislumbram o cutelo.


O meu pai faz uma careta, carrega-se de azedume, lembra-se do casal que comprou o segundo andar. “Acha bem, Ana Clara, num prédio de respeito, uma pouca-vergonha destas?” Volto a cheirar-lhe a cabeça. O casal que comprou o segundo andar do prédio dos meus pais é homossexual. Dois homens jovens e discretos. Fizeram obras no apartamento e encheram-no de móveis do ikea e objectos vintage. No prédio dos meus pais já só moram viúvos e avós. Anda o prédio num corrupio. A D. Fernanda, a porteira, tem a língua seca, cheia de gretas, de tanto contar aos moradores as novidades do novo casal. Como se chamam, o que fazem, quantos anos têm, o tamanho da cama que levaram para o quarto maior do segundo direito. Mal soube dos novos vizinhos, o meu pai rosnou, entre dentes, que havia de lhes fazer a vida negra nas reuniões de condomínio. Nesse preciso instante, conta a minha mãe, a prótese feita pelo dentista em Margão ganhou vida, tornou-se assustadora, os dentes incharam-lhe na boca, muito pretos e ameaçadores, os caninos cresceram afiados, rutilantes. “Acho uma indecência. Nem sou capaz de imaginar uma indecência maior”, respondo-lhe. Beijo-o no rosto e deixo-o entregue aos seus pequenos investimentos. Há batalhas que já não merecem ser travadas.