2010/01/11

Mãe

Lembro-me da folha larga que, todos os meses, ela trazia para casa dentro de uma mica plastificada. Sentada à mesa da cozinha, a minha mãe começava por olhar atentamente a lista das enfermeiras que trabalhavam consigo no hospital. Depois, com uma esferográfica multicor, começava a preencher a folha larga com a escala mensal do serviço que chefiava. Acautelava os melhores horários para as enfermeiras que tinham a vida mais complicada: muitos filhos, maridos ausentes, transportes públicos para apanhar logo de manhã. Para as solteiras sobravam sempre os horários mais cansativos, com velas, poucas folgas seguidas, muitas horas extraordinárias. Havia, eu percebia que havia, uma linha que separava as enfermeiras casadas das que permaneciam solteiras. As solteiras não mereciam o cuidado da minha mãe. Eram mulheres que não se cumpriam, sem homem, sem filhos, sem lar. Restava-lhes o consolo da vida do hospital, encarada como uma espécie de sacerdócio a que se votavam para esquecer a solidão de noites demasiado longas.

Nos dias em que a minha mãe se ocupava do preenchimento da escala, eu deixava-me ficar sentada ao seu lado. Não tinha especial interesse pelas tarefas administrativas da sua profissão. Se, nessas tardes de azáfama burocrática, eu me esquecia dos meus afazeres e me colava à minha mãe era por uma razão concreta. Aguardava, com ânsia e expectativa, que ela ditasse a sua própria sorte e escolhesse o seu horário mensal. Para gerir a tristeza e angústia, precisava de saber, com antecipação, o horário da minha mãe: quais os fins-de-semana em que estaria sem ela, em que dias ocorreria o desperdício das folgas que calhavam durante a semana, e, sobretudo, qual a noite da ronda nocturna. Nada me custava mais do que passar uma noite sem a minha mãe. Era a casa que, de um momento para o outro, escurecia e se tornava num catre, num túmulo. Ficava num desconsolo, imaginando a minha mãe-sombra, a minha mãe-noite, percorrendo os claustros do hospital envolta na sua capa azul, como se fosse um bicho nocturno, irrepreensível na sua farda cintada, o chapéu engomado, os sapatos de atacadores brancos, o relógio de bolso com o seu nome gravado.

Muitas vezes, quando a ronda calhava numa noite de sábado ou num domingo, dormíamos a sesta juntas. Eu dormia o sono no tempo certo. A minha mãe antecipava o sono da noite para a tarde. Deitadas na cama do seu quarto, o cristo de pau preto atormentando-me com o seu rosto triste, prendia-lhe as mãos e fazia-a prometer-me que nunca me morreria, nunca me abandonaria, nunca me deixaria sozinha. Ela ficava tonta com tanto amor e, ali mesmo, sem medir as consequências das suas palavras, prometia o impossível. Nunca te morrerei. Nunca te abandonarei. Nunca mais te deixarei sozinha. Vou telefonar para o hospital a dizer que estou doente. Invento qualquer coisa. Depois, vou dormir a tarde toda contigo, aqui no quentinho dos lençóis de flanela que comprei nos armazéns de Moscavide. Deixava-me adormecer. Acordava sozinha na cama dos meus pais, a minha tia consolando a minha tristeza. Vinha-me então uma dor muito grande e a certeza de que, um dia, a minha mãe me morreria.

(Uma da manhã. A minha vizinha de baixo, a dentista venezuelana, demora que se farta a atingir um orgasmo. Já não posso ouvir a mulher gemer. Uma pessoa quer escrever um texto lacrimoso sobre sua mãe e não consegue concentrar-se. Puta da venezuelana.)