2010/12/28

Arena

Aos domingos as famílias sentavam-se à volta da mesa da cozinha para comer uma feijoada, um cozido à portuguesa, às vezes, um frango assado. O sol entrava pelas vidraças das marquises, tornava o ambiente morno, fazia desabrochar os lírios dos azulejos. Eles chegavam sempre à mesma hora, quando o relógio se aproximava das duas, marcando o final da refeição, no momento em que as mulheres arranjavam a fruta para as crianças, descascando maçãs e peras, tirando os caroços das laranjas, quando as cafeteiras italianas já estavam em cima dos bicos dos fogões, prestes a chiar. Vinham em grupo e tocavam melodias de tempos antigos, cantiguinhas com mofo, fados amarelecidos. Cantavam mal, alto, esganiçando a voz ao limite do suportável. As crianças, mal os ouviam, levantavam-se da mesa e precipitavam-se para as janelas. Levavam a boca cheia de maçã. As mulheres, de avental, seguiam as crianças. Os maridos deixavam-se ficar sentados à mesa, a palitar os dentes, a olhar os restos nos pratos, à espera da chávena de café. Escutavam os músicos, mas não os viam. Eram as mulheres e as crianças que não resistiam ao apelo de os ver e se punham à janela a escutá-los. Lá estavam eles. Um gordo, muito gordo, de uma gordura doente, imensa, que tocava melódica. Uma cega que trazia os olhos remendados e provocava nas crianças um arrepio. Tocava ferrinhos e tinha um rosto áspero, levemente malévolo. Havia também um mulato que mancava. Não tocava nenhum instrumento. Não cantava. Estava ali a mostrar o seu aleijão. O chefe dos músicos era desempoeirado, usava um boné, tinha a pele do rosto muito brilhante e vermelha, como se tivesse sido encerada. O bigode retorcido, grisalho, conferia-lhe um ar distinto. Era maneta. Trazia o braço deficiente preso com um lenço.

Ficavam os quatro a tocar e a cantar no meio da rua. Aquilo durava um instante. Quando se calavam, as pessoas que estavam à janela começavam a atirar moedas. O chefe, o tal que era maneta, deixava então os companheiros. Ficavam desamparados. O gordo, muito gordo, olhava para o chão e a cega de olhos remendados apoiava-se no ombro do mulato. O chefe ia de pátio em pátio apanhar as moedas que as pessoas dos apartamentos atiravam. Às vezes, uma moeda fugia para baixo de um carro, obrigando o homem a baixar-se para a apanhar. Os miúdos das janelas ficavam a vê-lo, apoiando-se apenas numa mão, agachando-se com dificuldade, esticando o corpo todo para alcançar a moeda. A sua altivez, que se percebia pela voz, pela agilidade que punha no andar, era posta de parte. Erguia-se, ajeitava a boina, olhava para cima a agradecer a moedinha. Às vezes, uma criança soltava uma gargalhada de gozo e não era contrariada. Era uma gargalhada de criança e as crianças não têm maldade, são puras, imaculadas, virginais.

Também eu e a minha irmã corríamos à janela a ver os músicos. A minha mãe dava-nos sempre uma moeda, a tia Dé, generosa, engordava a esmola. Todos os domingos, pedia à minha mãe para nos deixar atirar as moedas pela janela da cozinha. Todos os domingos, a minha mãe enrijecia a voz perante o meu pedido. Se queríamos dar a moeda tínhamos de descer à rua e depositá-la numa das caixinhas de esmolas que os músicos traziam ao pescoço. Que aprendêssemos de uma vez por todas: não se atiram coisas às pessoas como se fossem animais. A explicação da minha mãe era tão simples, correcta, sensata. Não tinha argumentos para a contrariar. Não podia confessar-lhe que o que mais queria era atirar a moeda pela janela, fazer pontaria a ver se deslizava para baixo de um carro, ver o maneta esforçar-se para a agarrar. Não podia explicar-lhe que queria vê-lo gritar-nos um obrigado perante a plateia de vizinhos. Todos os domingos, descia no elevador, contrariada, com as moedas fechadas no punho. Queria tanto fazer parte da casta dos atiradores de moedas e a minha mãe não deixava. A minha mãe não percebia que a sua proibição tinha consequências devastadoras. Mal saia do prédio, batendo a porta pesada de vidros e alumínio, sentia-me observada. Também eu passava a fazer parte do espectáculo dos aleijadinhos. Deixava de estar nos camarotes confortáveis dos prédios, na plateia dos remediados misericordiosos, descia à arena dos proscritos, dos desgraçados, mil olhos postos em mim, a diferença muito próxima, a miséria podendo contagiar-me.


(A minha mãe alentejana está na Índia há dois meses. O meu pai goês também. Fazem-me muita falta.)