2011/12/02

Almoço de família

Entra o sol pelos vidros da marquise, reflecte-se nos pingos do lustre da sala. A minha irmã come com uma delicadeza forçada, uma tensão permanente que se nota no modo como manuseia os talheres, no esforço que faz para manter a boca fechada enquanto mastiga, na forma como corta os alimentos, ficam quadrados perfeitos de cabrito morrendo no molho betuminoso cor de terra. O modo como come parece mostrar o desejo, não totalmente assumido, de rejeitar uma herança. Gosto da minha irmã, tanto que, por vezes, não suporto a sua ausência, mas não gosto de a ver comer. É diferente com o meu irmão. Enche o garfo de arroz branco e chacuti e deixa-o momentaneamente imobilizado em frente da boca como se esperasse o tiro da partida. O tempo pára. Estremecem, nesse breve instante, os copos na cristaleira de pau-preto e gemem as chávenas de café que a minha mãe herdou do rapaz esquizofrénico com quem namorou antes de casar. Era um rapaz de boas famílias, costuma contar, alto e loiro, vivia num palacete cheio de balaústres em Cascais, em frente do mar, a avó do rapaz fumava boquilha e gostava muito de mim, era gente cheia de dinheiro, comiam cornucópias recheadas de creme de ovos e chá preto ao lanche, a senhora deu-me o serviço de café antigo e um conjunto de colherzinhas de prata, de cabo torcido, aquelas que estão guardadas no estojo do faqueiro que veio de Lourenço Marques; o rapaz era educado e bonito, eu gostava dele, acho que o amei, mas, volta e meia, em momentos de delírio maior, ajoelhava-se à minha frente, mãos em concha, olhar manso de penitente, punha-se a rezar ladainhas incompreensíveis, via-me como uma santa, não aguentei tamanha devoção, queria ser mulher, acabei o namoro, mas fiquei com o serviço de café e as colheres de prata.

O meu irmão desconhece a história do rapaz esquizofrénico e não se apercebe do estremecimento dos objectos frágeis da sala que acontece quando se prepara para comer. Olha a pirâmide de comida que se ergue em cima do garfo e, de repente, enfia-a na boca, mastiga vigorosamente essa primeira garfada, come com deleite, tanto prazer, fechando os olhos, assumindo a sua natureza mulata, o desejo rácico de vadiagem, gosto da minha família, dizem os seus olhos, gosto do meu apartamento espaçoso às portas da cidade, o bairro social do outro lado da estrada, as matronas ciganas, de arrecadas de ouro nas orelhas, olhando-me com superioridade, largando torpedos de palavrões quando passo em silêncio com os meus filhos quase mulatos, esses filhos que, quase brancos, são meus, tão meus, como eu nunca fui do meu pai e da minha mãe, gosto da minha mulher, das minhas irmãs e da minha sogra, que é alegre e me mima com gestos de amor verdadeiro, gosto, sobretudo, da minha televisão de última geração, comprada em dez prestações sem juros, tão bonita que ela fica em cima do móvel de cerejeira que trouxe do norte, olho a televisão e esqueço-me do resto, gosto de tudo isso, mas, se pudesse escolher, se fosse livre, voltava ao lugar onde nasci, a minha vida seria feita da lentidão africana, indolência, águas mornas, muitas mulheres redondas com o desejo à flor da pele, nádegas firmes, seios cheios, às refeições, esta comida que agora como, nesta sala de móveis de pau-preto, feita pelas mãos de uma mãe cujo ventre nunca habitei.

A minha cunhada está sentada ao lado do meu irmão. Dar-se-á conta da dor antiga que o marido cala? Não come. Vai mordiscando aqui e ali. Finge com esses gestos que é uma pessoa de pouco alimento, quer mostrar, há muito o percebi, que não tem culpa do corpo que tem, refegos, bolsas de gordura, mãos imensas, estômago dilatado, estrias, buraquinhos de celulite, a feiura de um corpo disforme, não é culpa sua. Está sempre a explicar, enquanto mordisca uma tâmara aqui, uma tosta com chutney de coentros ali, que quase não come, é assim, maior, porque faz retenção de líquidos, sofre de obstipação grave, está dias, semanas, meses sem evacuar, não há grânulos, chás, xaropes, iogurtes, cereais com fibras capazes de lhe fazer trabalhar a tripa. A minha cunhada pretende com o mordiscanço habitual e as justificações do costume enganar-nos, mas o engano e a mentira exigem certo brilhantismo; ela, a quem tanto devo por me ter feito tia e de quem gosto, não o tem. Na realidade, come imenso e, pior, come mal. Temo, por isso, a desgraça. Um dia, talvez aconteça durante um almoço de domingo, a grave obstipação de que padece cessará. Rebentará. A merda, há tantos anos acumulada nos interstícios do seu corpo, que a faz volumosa, sairá em golfadas revoltas, manchará os copos da cristaleira, as chávenas de café que a velha marquesa de Cascais ofereceu à minha mãe para se livrar do neto demente, os pingos do lustre que reflectem a luz que entra pelos vidros da marquise.