2012/11/24

Luzia



Por insistência do marido - mais do que a aliviar do trabalho queria mostrar que tinha folga financeira para contratar uma empregada doméstica -, arranjou uma rapariga para ajudar na limpeza da casa e na preparação do jantar de aniversário. A princípio sentiu-se embaraçada por ter quem trabalhasse sob sua ordenança e supervisão. Nunca mandara em ninguém. Descendia de uma cadeia de antepassados assalariados, a miséria havia de vir de longe, uma genealogia de penúria, sofrimento e trabalho mal pago. Como podia quebrar essa linhagem de obediência e servilismo? Que autoridade tinha para se fazer obedecer? A estranheza foi passageira. Quando a empregada tocou à campainha pela manhã, Flandres sentiu uma alegria semelhante à de uma criança que se prepara para brincar ao faz de conta. Não podia deixar de se sentir animada! Preparava-se pela primeira vez na vida para mandar. Era excitante, essa possibilidade de submeter os outros à sua vontade, até aos seus caprichos!Não estava, porém, habituada à assertividade da linguagem das patroas. Desconhecia que, para alcançar bons resultados, uma criada deve tratar-se com frieza, ignorando sentimentos, mágoas e amuos, uma criada não é bem gente, apenas um corpo de trabalho, deve ser varada com palavras ríspidas e repreendida com a firmeza de uma chibata que estala no lombo de uma mula. Flandres era inepta no ralho, inábil na orientação. Pior, não sabia dar ordens, a cada instante, as transformava em pedidos.
- A Luzia não se importa, por favor, de começar a picar as cebolas e os alhos para o bacalhau?- e, com a sua boca bem desenhada, cheia de meiguice, largava um sorriso encantador.
Uma ordem nunca pode ser dada com a cortesia de um pedido, muito menos com a solicitude de uma súplica. Uma ordem bem dada não admite recusa ou hesitação, já os pedidos são totalmente falhos de potestade, dependem da vontade do interpelado, uma pessoa só os satisfaz se quiser. Luzia, a ajudanta daquele dia, ligeiramente anémica, cheiro de suor e detergentes entranhado nas carnes descoradas, rapidamente se deu conta da inexperiência de Flandres. Abusou da sua amabilidade, foi mesmo muito calona, deixou o salão mal limpo, bolas de cotão aos cantos, e, invocando uma repentina alergia, recusou-se limpar a casa de banho com lixívia e amoníaco. Pediu um detergente neutro que não lhe ardesse nas mãos. A princípio da tarde, depois de interpelada com tantos pedidos gentis, Luzia estava completamente liberta: não se sentia obrigada ao respeito subserviente que sempre se deve a uma patroa. Começou a dar palpites sobre a ornamentação das travessas e, vendo Flandres olhar para dois serviços de loiça, sem saber qual escolher, numa voz afectada e petulante, deu a sua opinião:
- Não gosto nada desse serviço com o cavalinho! – explicou, apontando com um gesto de desdém a loiça tradicional da fábrica de Sacavém. - a senhora use antes aquele com a cercadurinha dourada que é  mais moderno!
Flandres ouviu e acatou. Luzia era empregada, mas, de tanto ser mandada, aprendera a usar uma voz autoritária, cheia de sujeição e disciplina.