2014/05/29

Peppermint extra-forte

- Ah, aquilo é muito bonito...
Abriu a mala e procurou uma pastilha que a livrasse do sabor da meia-desfeita de bacalhau comida num restaurante ali perto; o prato fumegando, cabeças de alho esmagadas, cebola picada, salsa espalhada por cima. Ulla comeu e bebeu, deixou prato limpo, copo vazio, uma delícia!, disse no fim e deu um arroto de satisfação. O hálito reimoso da cebola e do alho, porém, não o aguentou. Era tradição a mais. Encontrou a embalagem de pastilhas e pôs-se a mastigar vagarosamente. Sabor peppermint extra-forte. Depois, como se não a tivesse escutado, repetiu:
- Aquilo é muito bonito. 
Não era. Era bizarro, estranho, demasiado óbvio. O apreço dela por estatuária tão grotesca, desgostou-me, senti-me até ofendida. Aborreci-me, detestei-a, mas por muito pouco tempo. Ulla era bonita e tão educada. Não lhe respondi, amuada, mas a sua insistência fez-me olhar em redor. Andava o bairro muito diferente: caliça e alumínios por todo o lado, paredes pinchadas de palavrões, calçadas cheias de lixo, hordas de noctívagos passeando por ali, intelectuais, jornalistas, artistas, poetas de calças apertadas. O bairro já não conservava a mornidão das casas habitadas, era um lugar diferente, moderno, indistinto. Mas, no largo principal, como se fosse uma obra de arte, posto num altar profano, continuava aquilo, apontando, teso, muito hirto, para a janela onde viveu a professora de violino da Mafaldinha.