2014/08/24

Laura

Meto conversa com uma mulher jovem que está sentada junto de uma janela aberta. Está sozinha e abana-se com um vistoso leque vermelho de sevilhana. Não usa sutiã, percebe-se pelo leve balouçar das mamas, e cheira um pouco a suor. Os seus olhos escuros, expressivos, revelam tranquilidade. Pergunto-lhe pelo nome. Diz-me que se chama Laura e, sem que lho pergunte, explica estar a tirar um doutoramento em teologia feminista. “Em Estocolmo”, acrescenta e a boca abre-se num sorriso lento. Fico impressionada com a resposta, intimamente volto a lamentar o curso que escolhi. Peço-lhe que me explique o que é isso da teologia feminista, mas a chegada de uma mulher mais velha ao salão parece suscitar toda a atenção de Laura. A mulher vem cansada de subir a grande escadaria de pedra que dá acesso ao salão. Encosta-se a uma coluna, apoiada numa bengala, a retomar a respiração. Tem um ar sisudo, contrariado, os cantos da boca caídos. Traz pela trela uma cadelinha irritante que larga uns ginchos de rato e é muito apaparicada por um homem baixo que parece ter algum protagonismo na reunião. Pouco depois, dá-se início ao lançamento da obra. O homem baixinho faz a apresentação da colectânea. Fala de coisas interessantes, sim, claro que fala, mas não sou capaz de reter uma  única ideia do seu discurso. Aplausos, aplausos, aplausos e, de seguida, explica que irão ser lidos alguns poemas. O Ricardo atravessa o salão e pede-me que leia o meu texto (não é um poema, explicou-me, é prosa poética). Digo-lhe que não, mas, logo a seguir, olhando a rapariga que estuda teologia feminista, talvez querendo impressioná-la, digo que sim. Gosto de ler em voz alta, leio bem, a minha voz é naturalmente projectada, clara, segura. Enquanto leio reparo que a luz faz brilhar o soalho escuro. Volto a sentar-me ao lado de Laura que elogia o meu texto e a minha leitura. Fico à espera que os poetas a sério leiam os seus poemas. A matrona da cadelinha é a primeira. Levanta-se e com lentidão paquidérmica arrasta-se até ao palco.  Pergunto a Laura “Quem é esta senhora?” e ela explica "É a Maria da Conceição Caleiro, crítica literária e grande poeta”. Percebo, pelo tom da sua voz, que lhe merece admiração. A grande poeta senta-se de pernas levemente abertas, deixando antever umas coxas marmóreas e flácidas, e, com insuportável sobranceria, olha em volta. Começa então a ler o seu poema. A voz arrasta-se, dolorosa, é uma voz calcificada, moribunda. Declama como se tivesse a boca cheia de feridas. Laura bebe cada palavra, os olhos tremem-lhe de emoção.