Há dois meses que eu e o meu pai pouco ou nada falamos. No domingo, porém, por causa do aniversário do João, há almoço de família. É a primeira vez que nos voltamos a sentar todos à volta de uma mesa. Vou fazer feijoada. É barato, saboroso e dá pouco trabalho a fazer. Os miúdos mais pequenos vão odiar a minha escolha. Ralharão comigo, farão caretas engraçadas quando lhes disser o que é a comida. O Roberto e a Lurdes vão trazer o vinho, a Susana as sobremesas. Espero que nesse dia a minha mãe não trema muito das mãos, que espante ou pelo menos finja espantar os seus próprios demónios, que os seus olhos se alegrem com as brincadeiras dos netos. Avisei a tia Dé que não se esquecesse de trazer uma travessa de peixinhos da horta e também os livros da Elena Ferrante que lhe emprestei. Ninguém faz rissóis e peixinhos da horta como a tia Dé. Acabado o almoço, na altura do café, depois de os miúdos fugirem para o pátio, colocarei um cd do Charles Aznavour. Quando se começar a escutar o “ Il faut savoir”, o Manuel Ricardo fechará os olhos, cantará baixinho a canção e lembrar-se-á da sua mãe. Sentirei então uma felicidade muito pura e autêntica por a minha irmã ter encontrado um homem assim.
O meu pai deixou de me falar por causa de um texto que aqui escrevi: um texto duro, talvez desnecessariamente duro, mas no fundo apenas um texto escrito por uma filha que, por sentir nunca ter sido amada pelo pai, deseja sê-lo. Não deixa de ser estranho que um homem de oitenta anos, bastante conservador, não se sinta incomodado quando a filha escreve sobre bebedeiras solitárias, pornografia, masturbação, orgasmos, fodas em quartos de hotel e se ofenda quando essa mesma filha decide escrever sobre o amor (ou sobre a sua ausência). No domingo, quando o meu pai chegar, rosto fechado, o desprezo habitual tão evidente no olhar, cumprimentá-lo-ei como sempre faço. Beijá-lo-ei no rosto e farei uma festa nos seus cabelos crespos e ondulados. Nesse instante, quando os nossos corpos se aproximarem, aproveitarei para sentir o seu cheiro.