2016/03/01

Olho negro

Decorei o poema de manhã, no refeitório, enquanto tomava o pequeno-almoço. Durante o dia, repeti-o para mim mesma como se fosse um mantra, uma oração, a minha salvação. Repeti-o depois de cada parágrafo que escrevi, perto da máquina de cafés, na rua, ao observar os sapatos feios de uma mulher que passou e deixou o seu perfume no ar, quando escutei a voz do outro lado da linha, no regresso para casa, em estranho assombro, ao dar-me conta de como a luz do final do dia é caprichosa: ilumina apenas as fachadas do prédios mais altos, suas varandas, suas janelas, velhos que se debruçam para espreitar a rua, paredes de tinta estalada, ficam os prédios mais baixos adormecidos em triste sombra. De tão presa ao poema, decidi que o diria a cada um dos meus filhos assim que os visse. Disse-o ao Joaquim quando o vi chegar. Sussurrei-lhe as palavras ao ouvido, no corredor da escola, junto do placar com as composições dos meninos do terceiro ano. Disse-o à Madalena quando, chegada do treino, se despiu e revelou o seu corpo nu. Disse-o ao João já na cama, meio adormecido, depois de o aconchegar e lhe beijar o olho negro. Equimoses de adolescente, dores de adolescente, bebedeiras de adolescente, curam-se com beijos, abraços, gestos simples. Os meus filhos escutaram-me em silêncio. Quando me calei perguntaram: “O que é isso, mãe?”. A cada um, sentindo por cada um amor infinito, belo, redentor, único, respondi: “É um poema”.