2016/04/22

Futuro radioso

Encontro o meu pai já de pijama, sentado em frente da televisão. Beijo-lhe o cabelo, sinto o aroma da loção capilar que usa há muitos anos e sento-me no sofá. O que estás a ver?, pergunto. Não responde. Olha a televisão como se o aparelho fosse uma feiticeira capaz de encantamentos e canções mágicas. O meu pai está hipnotizado. Olho à procura da razão de tal pasmo. Imagens de abandono e desolação. Uma piscina coberta, um tanque profundo, vazio, descarnado, o fundo de ladrilhos soltos. Blocos habitacionais, ruas e ruas, alamedas, avenidas, de blocos de apartamentos, todos iguais, casas que parecem clones, umas atrás de outras, numa arquitectura assexuada, traçada em linhas paralelas e perpendiculares. Ninguém caminha por aquelas ruas. Ninguém habita aqueles apartamentos. Uma floresta rompe os espaços abertos, as raízes grossas tomam conta dos passeios, das estradas e dos cruzamentos. Árvores frondosas, de folhagem brilhante e frutos envernizados, impedem as ruas de receber luz. A cidade é azul e sombria. Centáureas gigantes, carnívoras, mostram os seus cardos roxos. A câmara passa depois para o interior dos apartamentos dos blocos habitacionais. Paredes de tinta estalada, objectos esquecidos. Um cadeirão de braços forrado a napa vermelha, uma cadeira de espaldar tombada. Posters gigantes: Brejnev, Chernenko, Gorbatchov. No parapeito de uma janela estão dois peixinhos de borracha amarela. Pelo chão desses apartamentos, em nichos de lixo e entulho, há bonecas de corpo rijo, pose estática, pernas abertas. Dormem de olhos abertos um sono eterno. Um parque de diversões. A roda gigante tem cabines folheadas de chapa amarela. Campânulas solitárias balouçando ao vento. Há também um carrossel de cavalos que sorriem, mostrando a beleza da sua dentadura equídea. Percebo tratar-se de uma cidade abandonada, uma pompeia soviética. Que cidade é esta, cristalizada no tempo e no espaço, que mostra a beleza do silêncio e do vazio? 

Uma voz explica, por fim, a história daquele lugar. Trata-se de Pripyat, situada a 30 quilómetros de Chernobyl, cidade planeada para acolher cientistas, engenheiros, operários. Tinha um cinema, um teatro com uma grandiosa escada de caracol, várias piscinas, um hotel, muitas escolas e hospitais, possuía todas as infra-estruturas que o regime soviético considerava necessárias para o bem-estar do povo. Habitada por quem trabalhava na central nuclear, a média de idade dos cerca de quarenta mil habitantes da cidade rondava apenas os 26 anos. Para o regime todas as cidades deviam ser como Pripyat, planeadas, organizadas, assépticas, sem espontaneidade ou liberdade, regras claras de distribuição dos habitantes, edifícios para casados, edifícios para solteiros, procedimentos claros sobre a utilização dos espaços públicos. Só se é feliz com regras. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro se cumpria no presente.

No dia a seguir ao acidente, a cidade despertou na sua rotina, ignorando a dimensão da tragédia. Um homem pediu à mulher que lhe preparasse um borsch com natas azedas para o jantar; uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino escuro; dois amigos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto de um bosque de abetos, onde nadavam as trutas mais gordas; uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a tristeza dos espaços vazios. Nessa manhã, a vida continuou como se nada fosse, porém, o bicho invisível já se havia espalhado por toda a cidade, entrara nas casas, gotejara pelos algerozes, penetrara nos solos, espreitara pelas frinchas, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar. A catástrofe chegou à tarde: foram afixados em todos os blocos, em todas as portas, em cada espaço público, avisos de evacuação. Explicavam que a cidade teria de ser evacuada. Era uma evacuação temporária, os habitantes deveriam levar pouca coisa, elementos de identificação, qualquer coisa para comer, deixassem tudo como estava, trancassem os seus apartamentos, voltariam em breve. Depois, chegaram autocarros, mais de mil, vindos de toda a república. Os habitantes de Pripyat nunca voltaram. Ficou a cidade deserta, quieta, envelhecendo. A floresta boreal avançou e cobras radioactivas treparam pelas paredes, aninhando-se dentro do corpo das bonecas que as meninas não puderam levar. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro radioso nunca se cumpriu.

O documentário está quase a terminar, o meu pai já tem o comando na mão, prepara-se para mudar de canal. A última imagem que vejo é a de um homem jovem que fala num inglês truncado, próprio dos eslavos. Entra num apartamento, era ali que morava numa perpendicular à Avenida Igor Kurchatov. Aos domingos, explica, entrando num quarto, a minha irmã ia com a minha mãe ao Hotel Polissia preparar o desfile do 1º de Maio, eu ia com o meu pai à piscina e passava horas a nadar. Caminha pelas divisões em silêncio. Fui feliz em Pripyat, diz, por fim. Levanto-me. Volto a beijar o cabelo do meu pai, também ele forçado a abandonar uma cidade e uma vida.