2017/01/08

Capoeira

A capoeira fica junto dos currais. Para se chegar lá é preciso subir a ladeira que divide o quintal em duas metades iguais e passar pelos arbustos que dão flores vermelhas. Sentada na capoeira, escondida, vi os homens fardados inspeccionar tudo. Entraram no barracão. Espreitaram para dentro do forno velho. Riram-se da roupa estendida no estendal: duas cuecas transparentes, um sutiã preto com rendas amarelas, outro sutiã encarnado. Mexeram no lixo amontoado perto da porta da cozinha: roupas velhas, revistas, embalagens de sumo, papelões, garrafas e alguidares. O homem mais velho começou a subir a ladeira. Quando chegou ao cimo do quintal, deu com a capoeira. Chamou o mais novo com um grito que assustou a Branquinha. Apontou na minha direcção. Ficaram os dois a olhar-me em silêncio, como se eu fosse um bicho, um animal feio, um monstro do circo. Encolhi-me ainda mais na palha.

Os homens fardados tiraram-me da capoeira. Levei o ovo da Branquinha nas mãos. Perguntaram-me o nome. Não pude responder. Na minha boca vive apenas o silêncio. Às vezes, mexo os lábios, sacudo o corpo, a ver se as palavras que vivem dentro de mim se soltam. Elas teimam em não sair. Se soubesse falar, se conseguisse soltar as palavras que tenho presas cá dentro, teria explicado aos homens das fardas que me chamo Alice como a madrinha que mora em Leiria. A madrinha visitou-nos uma vez, num dia de calor. Trazia as unhas pintadas de vermelho, um vestido com um decote redondo, os pés gordos enfiados numas sandálias de verniz. Olhou-me com desconfiança. Com um toalhete perfumado limpou-me o fio de baba. Deu-me então um beijinho, sem me tocar no rosto. O beijinho ficou pendurado no vazio e, antes que o apanhasse, fugiu para a copa das laranjeiras.

Os homens fardados perguntaram pela minha mãe, queriam saber dela, precisavam de lhe falar. Não sei se foi por magia, mas, nesse instante, ela entrou pelo portão. Vinha do supermercado e trazia batatas fritas, ursinhos de goma, caramelos de leite e bolicaos, que é o que gosto de comer. Mal me viu fora da capoeira começou a gritar. Ainda tentei mostrar-lhe o ovo que a Branquinha pôs, mas ela não ligou. Ergueu os braços. Começou a gritar. Os gritos da minha mãe parecem trovões. Assustam toda a gente. Assustam os pintos e as galinhas. Assustam o vizinho da casa ao lado que passa a vida a espreitar para dentro do nosso quintal. Assustam até a prima Nela que vem, pela tarde, tirar o leite de uma cabrinha que pôs no nosso curral.

Se soubesse falar teria explicado aos homens fardados que sei bem que capoeiras são para as galinhas e eu não sou uma galinha. Antigamente, no tempo da avó, só entrava na capoeira para levar o balde com os talos das couves e as papas de pão duro. A avó andava sempre vestida de preto e usava um lenço amarrado à cabeça. Era ela que cuidava de mim enquanto a minha mãe andava a trabalhar. Plantava batatas, cebolas, tratava dos pintos, dos coelhos, apanhava a fruta das árvores, tirava água do poço. Enquanto andava na sua vida, tratando dos bichos e da horta, eu brincava: enterrava as mãos na terra, cheirava as folhas do limoeiro e da erva-cidreira, olhava as lesmas subindo os muros cobertos de musgo, tocava gaitinhas de cana, fazia funerais aos pardais que o vento fazia cair dos ninhos. Quando a avó morreu, a minha mãe começou a trabalhar em casa.  

Chegam uns homens que se fecham com ela no quarto. Na primeira noite, tive medo que o homem a levasse. A minha mãe explicou que tinha de ficar deitada na cama e adormecer. Quando amanhecesse voltaríamos a ser só nós duas. Mas eu ouvi risos no quarto da minha mãe e pareceu-me que a voz lhe morria na garganta. Na segunda noite, entrei no quarto e vi-a deitada na cama com um homem. Deitei-me entre eles. Tira-me esta gaja daqui!, gritou o homem à minha mãe.  Na terceira noite, ela acendeu um petromax e levou-me para o barracão onde a avó costumava guardar as batatas e as cebolas. Pediu-me para ali ficar. Mal ela rodou a chave da porta dei um pontapé no candeeiro que se apagou. Na escuridão, arranquei todas as palavras que costumam estar presas dentro de mim. Fugiram-me da boca. Foi a única vez que consegui gritar. Na quarta noite, veio outro homem. Era careca e não tinha pestanas. Usava uma cruz ao peito. Foi nessa noite, na noite do homem sem pestanas, que a minha mãe me levou, pela primeira vez, para a capoeira. Tinha nascido uma ninhada nova à Branquinha e eu entretive-me a brincar com os pintos. Não gritei e a minha mãe pode trabalhar em sossego. A partir daí, sempre que ela tem trabalho ou precisa de ir a algum lado, fico na capoeira. Passo lá muito tempo. Pela rede entram lagartas das couves, caracóis, grilos e escaravelhos. Sentada na serapilheira, com a Branquinha ao colo, consigo observar tudo. Vejo as sombras do dia e da noite. Conheço as árvores do quintal e os gatos que por cá aparecem. São cinco: dois malhados, um branco, um amarelo e um preto. Passo muito tempo a olhar as nuvens e as estrelas. Os pássaros voam e desenham figuras no céu. Gosto de ver as nascer as folhas do castanheiro. Não há cor mais bonita do que o verde das primeiras folhas. É o verde das coisas que são novas, das coisas que não eram e passam a ser. No quintal, sentada na capoeira, vejo o que ninguém vê: morcegos que se soltam do poço e a avó que desce a ladeira com a sachola ao ombro. Na capoeira ninguém me limpa o rosto com toalhetes perfumados.