Do outro lado do mundo o meu pai pede as minhas medidas para comprar o sari branco que lhe pedi. Digo-lhe que tire as medidas pela Caetaninha, que, mais coisa, menos coisa, tem o meu corpo. Ele concorda. A esta hora, deve andar de volta dela a tirar-lhe as medidas do peito e do ventre. A Caetaninha é a empregada do meu pai. Lava, varre, cozinha, limpa. É silenciosa, e bonita, como uma sombra. Tem exactamente a minha idade. Aos quinze anos casou com um homem vinte anos mais velho. Teve dois filhos. Dizem as pessoas da aldeia que não é feliz. O marido bebe muito. No último dia pedi-lhe para tirar uma fotografia comigo. Ela acedeu e ajeitou a saia de ramagens verdes que trazia. No exacto momento em que o meu pai carregou no botão olhou para baixo. Perguntei-lhe por que não olhava de frente para a máquina. Respondeu-me, sem sorrir, com um ar grave de quem cumprira um dever, que as pessoas da sua casta olham sempre para o chão.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/02/28
Yoga (3)
Às três da manhã acordei para tomar um comprimido para as dores. Enfiei na boca o primeiro analgésico que achei. Desperta, fui fumar um cigarro para perto do aquário. Fechei os olhos e as imagens sonhadas apareceram-me, nítidas, diante dos olhos: Alcântara feita de escombros e ruínas; uma igreja com telhados inclinados onde suínos anafados descansam; a escuridão num parque de estacionamento; um edifício antigo no meio de um arvoredo escuro, a tinta, cor de café, estalada, o estuque amarelecido pelo tempo, as janelas de carepa. Deitei-me. Voltei a sonhar. Sonhei que ateava, num dia limpo e quente, com um produto qualquer guardado num frasco lilás, um incêndio num apartamento contíguo ao meu. Tenho o assumido propósito de matar a mulher que lá mora. É a primeira vez que me sonho homicida. Não deixa de ser estranho que me sonhe homicida no dia em que experimentei o bem-estar de pechisbeque do yoga. Naturalmente, nunca mais lá ponho os pés. Corro o risco de me tornar numa onírica serial killer.
2007/02/27
Yoga (2)
Desconfio que desloquei um braço. E parece-me que tenho a mão direita ligeiramente inchada. Dói. Com tantos alongamentos e estiramentos (escrevo “estiramento” e, vá-se lá saber porquê, vem-me à cabeça a palavra “esquentamento”) devo ter feito uma luxação. Os disparates que uma pessoa faz….
Yoga (1)
A minha metade oriental quis experimental uma aula de ioga. A minha metade ocidental aquiesceu. Fez um esforço para não rir enquanto a metade oriental se alongava e equilibrava em posições patéticas. Mas, quando, no relaxamento, depois de pernas, braços, mãos, dedos, sei lá que mais, o professor pediu para relaxar o couro cabeludo, a minha parte ocidental não aguentou. Deu duas gargalhadas que pareciam petardos. Vociferou vernaculamente para dentro. A minha metade oriental encolheu-se, sorriu e saiu.
Tamarindeiro
Uma tarde, no balcão, com as crianças brincando aos nossos pés, a tia Maria disse que parecia que eu sempre vivera em Goa. O tapete amarelo de areca secava junto do portão e, ao longe, o tamarindeiro assomava com a sua copa de folhas pequeninas. Fingi que a não ouvi. A tia Maria - a preferida de Salazar, como lhe chamavam na escola -é uma dessas pessoas que tem a rara capacidade de dizer sempre o que os outros querem ouvir. Continuei a olhar para as crianças. As palavras da minha tia resvalaram na minha indiferença, ganharam asas e, como pássaros pequenos, fugiram para longe. Para a copa do tamarindeiro. É lá que se escondem todas as palavras-pássaro que saem da boca da minha tia. A verdade, porém, é que em Goa nunca me senti estranha. Nada me causou repulsa ou nojo ou agonia ou comiseração. Nem o clima, os mosquitos, a pobreza, a sujidade que muita gente, torcendo o nariz, em jeito de aviso, me assegurou grassar por toda a parte. Goa entrou dentro do meu corpo. Derramou-se em cores, com todos os seus excessos e encantos, na minha vida. Como se fosse uma pessoa.
2007/02/26
Murcon (2)
Hoje, falam sobre fetichismo ou, melhor dizendo, sobre feitiçismo. Homens que têm fixação, obsessão por determinadas partes do corpo ou por determinados objectos: luvas, sapatos, botas. Falam de parafilias, um palavrão totalmente desconhecido para mim. Falam de liberdade, ou melhor, da ausência de liberdade que ocorre nestas situações. Comentam o caso daquele homem que tinha uma fixação por mulheres amputadas. Daquele outro, filósofo de renome, que apenas atingia o clímax com mulheres vesgas (o Descartes, coitado!). Falam também do caso de um homem velho que, depois de ter atingido o melhor orgasmo da sua vida, enquanto se masturbava a mexer nas calcinhas sujas de uma sobrinha jovem, quase imberbe, nunca mais procurou a sua legítima mulher, velha como ele, provavelmente com carnes flácidas, varizes, rugas, pés-de-galinha, papada, as unhas dos pés amareladas, os cabelos do púbis ralos, raros e grisalhos. Deixo-me ficar a ouvi-los. Gosto de ouvir falar de orgasmos, infidelidades, calcinhas, erecção, vaginas, pénis, relações, masturbação, coitos, obsessões, estímulos sexuais e toda essa panóplia de gestos e actos que fazem o sexo, enquanto tricoto o cachecol verde da minha filha.
(cada vez que o oiço na antena 1, lembro este texto escrito, há tempo, noutro berloque.)
Murcon (1)
Enquanto tricoto o cachecol da M., vejo um dos poucos programas de televisão que procuro ver todas as semanas: “Estes Difíceis Amores”, com a Gabriela Moita e o Júlio Machado Vaz. Gosto mais dela do que dele. Primeiro porque é mulher e, nestas coisas do sexo, como noutras coisas, sou assumidamente preconceituosa. Desconfio sempre dos homens. Não lhes reconheço competência para determinados assuntos. Acho impossível que um homem, ainda que psicólogo, psiquiatra, sexólogo, compreenda os sentimentos das mulheres. Nunca na minha vida consultaria um psicólogo ou um psiquiatra homem. Muito menos, um sexólogo homem. Depois, irrita-me a maneira como ele, Júlio Machado Vaz, fala. Não é que o que ele tem para dizer não me interesse. O que eu não gosto é a forma como o homem se expressa. Gosto do conteúdo, não da forma. O corpo enterrado no sofá, os olhos semi-cerrados, as pálpebras a fecharem-se lentamente, sempre a fazer citações, a chamar à colação autores, escritores, cantores, pintores e o diabo a quatro. Não tolero aquele registo aparentemente despreocupado. O cabelinho grisalho, meio comprido, provoca-me arrepios. Um homem deve usar o cabelo curto e limpo. Sempre. E o pulover sem mangas da Lacoste? Não há pachorra para o invólucro daquilo que ele é. Deve ter um ego do tamanho do mundo. Nem o facto de ser um fã incondicional e assumido do Sérgio Godinho o salva.
2007/02/25
2007/02/23
Homem
O homem voltou ao solar do amigo
O homem queimou um cigarro na testa
O homem voltou calculando o destino
Andou mais um passo e não viu
Matava ele o tempo numa outra azinhaga
E a voz era fraca ninguém o ouvia
A larva estendia e o sol abrasava
A marcha do tempo parou.
Havia uma vala na rua comprida
E a porta travava ninguém o espera
O homem cavava uma cova na vida
Ali nem o céu se calou
Trazia uma ruga na cara comprida
Nao vinha pra nada nao vinha por nada?
E a rua era larga e a rua era fria
Andou mais um passo e tombou.
Havia uma hora que havia uma vida
Que o homem andava que o homem corria
E a porta travava e um tiro partia
A marcha do tempo parou
O homem voltou ao solar do amigo
E a casa era escura e a porta batia
O homem queimou um cigarro na testa
Andou mais um passo e tombou.
Na volta era a noite
Chupava-se a vida
Que há tempo e medida
Chupava-se a vida
O homem precisa é dum'outra cantiga
Agora que o frio voltou.
José Afonso
(o mais importante são as palavras.)
O homem queimou um cigarro na testa
O homem voltou calculando o destino
Andou mais um passo e não viu
Matava ele o tempo numa outra azinhaga
E a voz era fraca ninguém o ouvia
A larva estendia e o sol abrasava
A marcha do tempo parou.
Havia uma vala na rua comprida
E a porta travava ninguém o espera
O homem cavava uma cova na vida
Ali nem o céu se calou
Trazia uma ruga na cara comprida
Nao vinha pra nada nao vinha por nada?
E a rua era larga e a rua era fria
Andou mais um passo e tombou.
Havia uma hora que havia uma vida
Que o homem andava que o homem corria
E a porta travava e um tiro partia
A marcha do tempo parou
O homem voltou ao solar do amigo
E a casa era escura e a porta batia
O homem queimou um cigarro na testa
Andou mais um passo e tombou.
Na volta era a noite
Chupava-se a vida
Que há tempo e medida
Chupava-se a vida
O homem precisa é dum'outra cantiga
Agora que o frio voltou.
José Afonso
(o mais importante são as palavras.)
Zita
Ela: Desculpa lá, mas o José Sócrates é muito giro!
Eu: Gosto mais do Rui Rio ou do Pacheco Pereira.
Ela: Quem te viu e quem te vê!
Eu: É a vida.
Ela: Estás uma burguesa!
Eu: Pois estou.
(silêncio)
Ela: Já viste que te tornaste numa espécie de Zita Seabra?
Eu: Só que sou muito mais gira do que a Zita Seabra.
Eu: Gosto mais do Rui Rio ou do Pacheco Pereira.
Ela: Quem te viu e quem te vê!
Eu: É a vida.
Ela: Estás uma burguesa!
Eu: Pois estou.
(silêncio)
Ela: Já viste que te tornaste numa espécie de Zita Seabra?
Eu: Só que sou muito mais gira do que a Zita Seabra.
Teresa Torga
No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua.
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala.
Dizem que se chama Teresa
Seu nome e Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que a diga António Capela.
Teresa Torga Teresa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha.
José Afonso
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua.
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala.
Dizem que se chama Teresa
Seu nome e Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que a diga António Capela.
Teresa Torga Teresa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha.
José Afonso
2007/02/22
Matrix
Sonhei com a guerra. Os maus eram padres, de batina preta e rosto igual ao do Salazar que dizem aparecer nos painéis de São Vicente. Andavam os maus, como é costume deles, sempre em bando. Davam gargalhadas terríveis que se assemelhavam a escarpas e fragas. Falavam como corvos. Tinham também super poderes. Dos seus dedos escapavam feixes mortíferos de luz amarela. E conseguiam voar tal e qual o Keanu Reeves no Matrix.
DN
No domingo comprei o DN. Descobri que a Marta Crowford tem agora uma coluna sobre sexo. Os leitores colocam as suas dúvidas. A Marta esclarece. A propósito de sexo oral, falava a Marta, em tom professoral, das “várias consistências e sabores do esperma”. Estranhei. Parecia que a Marta estava a falar de uma marca iogurte e não de esperma. Em muitos anos de existência só provei um esperma. E foi porque me apanharam desprevenida. De consistência duvidosa, uma espécie de ranho branco, sabendo a terra e ervas tenras esmagadas, não fiquei com vontade de voltar a experimentar. Sabe-se lá o que ando a perder. Esperma cremoso com sabor levemente mentolado. Ou então esperma adstringente com sabor ácido de frutos vermelhos. (E o DN que, não tarda nada, tem o João Marcelino à frente? As voltas que a vida dá.)
2007/02/21
Arlequim
Vou gabar um dos meus rebentos, coisa que, naturalmente, não tolero noutros progenitores: a minha filha é grande apreciadora de comedia del arte e para o ano vai aprender violino no conservatório. Coisa mais linda. (Nem todas as criancinhas têm de ser um poço de parolice. A M. tem a sua parolice - que se revela, de modo efusivo, quando entra numa loja chinesa - devidamente doseada e controlada.)
Guiomar
Guiomar abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis e espessas, as horas tardias. Nelas cabem muitos minutos e segundos. As horas tardias formam cassiopeias feias, cegas de escuridão. Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo até que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita?
Guiomar cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Eu deixei. Ficámos assim, imóveis, durante alguns segundos. O homem saiu, pouco depois, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só.
Guiomar cala-se. Continua: Uma vez foi diferente. Nem sei bem o que foi. Ou como foi. Senti qualquer coisa. Regressava a casa. O comboio estava cheio. Os passageiros comprimiam-se, formando um corpo único. Uma amálgama de gente. Um homem tocou-me na perna. Com ligeireza e propósito. Senti um frémito. Um estremecimento. Uma poeira branca de luz pairou sobre mim. Depois senti um carreiro de formigas subir pelas minhas pernas e tocar-me por dentro. O homem encostou-se. Eu deixei. Ficámos assim, imóveis, durante alguns segundos. O homem saiu, pouco depois, em Massarelos. Levou as formigas consigo. Não sei para onde foram. Fugiram. Nunca mais voltaram. O meu desejo tem corpo de insecto pequenino e vive perdido em Massarelos. Não acha engraçado? Eu acho. Acho até muito engraçado. Fiquei só.
Guiomar ri. Continua: Sabe, as horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Sabe porquê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não preciso de demonstrar afecto, nem interesse. Só tenho de estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho quase sempre os olhos enxutos.
(copy/paste)
2007/02/19
Marilyn
Estou na caixa da loja de brinquedos. Pago a peruca loira que comprei para a Tintim e o chapéu com uma grande pluma vermelha que o João, queira ou não queira, terá de usar no dia da peça de teatro. Aproxima-se uma mulher. Traz o cabelo pingado da chuva. Veste de preto para disfarçar o corpo, rubicundo. É vesga. Posso dizer, sem exagero, que é um verdadeiro estafermo. Apontando para o catálogo, pergunta à empregada “Olhe, desculpe, já não tem este fato da Marilyn?”. Espreito o catálogo que as suas mãos sapudas seguram. Ela quer aquele vestido branco, rodado, muito decotado que esvoaça quando a Marilyn passa por cima de um respiradouro. Solto para dentro, que é para onde sempre se devem soltar os palavrões, um valente foda-se. Perante a confirmação da empregada, a vesga remata com um “Que chatice!”. Eu fico a olhar para ela.
D. Arabela
A gente percebe que a nossa empregada é como se fosse da nossa família quando já não se coíbe de gritar, discutir, fazer figuras tristes à sua frente. Espero que a dona arabela, como lhe chama o João, se assuste com a minha ira matinal e não me peça aumento este ano.
2007/02/18
Auto-Retrato
Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
Natália Correia
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
Natália Correia
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