Associo o passeio de ontem, por precipícios de betão, a uma memória antiga. De tão distante e inicial, não sei se é sonho ou realidade. Tenho quatro anos. Estou numa cozinha. Abro a porta do frigorífico, da geleira, como se dizia no país das planícies infinitas, dos bichos, grandes e pequenos, das cidades cor-de-rosa batidas pelo mar, das lagartas leitosas crescendo por baixo da minha pele. Procuro o boião azul celeste onde a minha mãe guarda o leite condensado. Está numa das prateleiras da porta. Abro a embalagem. Enfio o dedo no líquido fresco, de consistência grossa, a fazer lembrar um caramelo branco. Meto-o na boca. É um instante de prazer que se esgota rapidamente. O prazer, seja ele qual for, tem mesmo que ser efémero. Volto a guardar a embalagem no frio. Reparo então que, ali ao lado, em cima de uma mesa, está uma travessa com caril. Não é caril de frango. Nem de peixe. Nem sequer de vegetais. É caril de caranguejo. Por isso, passados tantos anos, o recordo. A estranheza que me causa tal caril resulta de os caranguejos cozinhados serem muito pequenos, daqueles que encontramos imóveis nas rochas da praia e se esgueiram, velozes, por grutas e fendas mal pressentem um movimento ou uma sombra. O que há de comum entre os telhados tristes de ontem, o leite condensado e os caranguejos anões de Lourenço Marques? Não sei. Calhando nesse dia distante, em que olhei os caranguejos pequeninos do caril da minha mãe, o tempo também estava assim. Um calor pesado, a fazer curvar os corpos, a empurrar-nos os olhos para o chão. Um céu, cinzento, ameaçando com trovões e relâmpagos.