Vou para a casa de banho dos meus filhos. Abro a torneira. Dispo-me. Em cima da bancada, um copo amarelo com as escovas de dentes do Whinny e do Mogli, um quadro que pintei para o quarto do João, mas que nunca pendurei, mil e um cremes, Klorane, Lâncome, Mustela, uma caixa de toalhetes. Olho-me novamente no espelho. Aquela que ali está, do outro lado, sou eu. Preferia que não fosse, mas sou. Um metro e meio de altura. Cinquenta quilos de carne, ossos, pele, cartilagens, órgãos, músculos, vísceras, líquidos. Cabelo preto, comprido, liso, à força de tanto o esticar. Alguns cabelos brancos, que não vejo. Olhos escuros. Um nariz grande, redondo. Uma pele de merda, cheia de poros abertos, pontos negros, vermelhidões. Umas mamas cada vez mais pequenas, cada vez mais caídas, como se fossem flores murchas dentro de uma jarra. Olho para a mancha castanha enorme na coxa esquerda, uma mancha estranha, irregular, que tem o recorte do mapa da Inglaterra. Onde ficará a Cornualha no mapa que tenho delineado no corpo? Sempre quis conhecer a Cornualha, as praias verdes e cinzentas, ventosas, o mar furioso, agreste, escuro. Só a minha irmã é capaz de perceber este desejo de conhecer a Cornualha. Tenho as pernas cobertas de cicatrizes. Estico os braços, vejo as minhas mãos pequenas, rodo-as para cima, em direcção do tecto. Vejo, no meu pulso direito, as marcas, quase invisíveis, de dois cortes. Ninguém dá por elas, ninguém as vê, é como se não existissem. Mas eu sei que estão lá e nunca as esqueço. Nunca as esqueço. É este o meu corpo. Tomai-o em nome de Deus. Às vezes, tenho vontade de o abandonar para sempre.