2007/07/05

Lobo Mau

Enquanto pedia à D. Beatriz, que é baixa, gorda, de cabelos cor de cenoura e olhos verdes, muito pintados, a fazer-me lembrar guerreiros neozelandeses, um maço de cigarros e o jornal, uma rajada de vento enfunou-me a saia de pregas, despenteou-me o cabelo, levantando-o no ar, como se fosse um corpo único, e fez abanar, com indelicada brusquidão, a estrutura do quiosque. Estremeci. Não gosto de vento. Nada mesmo. Ao ouvir os tremores das placas, para esconder o pavor que tenho a ventanias, disse-lhe "Ó D. Beatriz, qualquer dia isto ainda lhe cai tudo em cima!". Ela olhou-me e não me respondeu. Estranhei. Guardei o troco devagar, à espera da resposta. Ela nada. Olhos muito parados. Vítreos. Um olhar imbecil a traçar-lhe o rosto. Como se tivesse fumado uma ganza ou estivesse na fase terminal de uma bebedeira. Não me disse nada. Vim-me embora. Deixei-a no seu pagode chinês, de olhos parados, entre jornais, revistas, isqueiros, fascículos, lenços de papel, pastilhas e meias. Muda. Calada. Com o tal olhar imbecil colado ao rosto. Atravessei a rua e lembrei-me, sei lá porquê, de uma certa noite num certo parque de campismo, perdido no norte de Espanha. Ventava furiosamente. Ao ponto de dobrar a estrutura da tenda, trazendo junto de mim, deitada, imóvel, petrificada, os fustigadores tecidos oleados. Senti pânico. O medo a entrar-me pelos orifícios todos do corpo, tomando conta das pernas, dos braços, do tronco, da cabeça, de tudo o que há lá dentro. Passei a noite em claro. Exausta. Sem conseguir dormir. Ao meu lado, o meu marido, que nessa altura ainda não era meu marido, ressonou a noite toda. Ruidosamente. Fazendo um coro sinistro com os assobios furiosos do vento. Odiei-os. A ambos. Ao vento, pela fúria, pelo medo que me provocava. Ao meu então namorado pela indiferença que tinha ao meu medo. Mas isso já foi há muito tempo. Há muitos anos. A verdade é que continuo a ter medo do vento. É um medo infantil de se ter. Porventura, digo eu, terá a ver com as histórias que ouvi em miúda. Porquinho, porquinho, deixa-me entrar! Pelas barbichas do meu focinho que não hei-de deixar! Então, o lobo mau soprou, bufou, gritou. E a casa foi pelos ares.