Ontem, não sei se por causa do calor e da chusma de insectos que o verão sempre traz à cidade, só consegui respirar no telhado do prédio dos meus pais. Não sei como lá fui dar. E, no entanto, foram as minhas mãos que, no elevador, marcaram o décimo andar. Foram os meus pés que subiram as escadas de sol ladeadas pelos vasos da D. Fernanda. Foram os meus braços que empurraram a porta que separa o interior do exterior. Foram os meus olhos que observaram as placas de zinco que cobrem os telhados e também o cinzento do céu a anunciar trovões e relâmpagos. Foram os meus ouvidos que escutaram os ruídos distantes vindos do mundo lá em baixo. Os carros e o resto. Os gritos das famílias ciganas nos prédios do bairro social. Foram as minhas pernas que treparam os muros e me levaram para perto das chaminés e das antenas parabólicas. Grandes como cogumelos venenosos gigantes. Com letras cor de laranja desenhadas. Mauser TV. (Muitas vezes, sinto as veias estranguladas, entupidas de lixo. Há moscas varejeiras que vivem dentro de mim, alimentando-se da impudicícia que por cá há. Voam até acima e falam-me ao ouvido. Dizem-me sempre o mesmo.)