2007/07/09

IC 19

Um homem novo conhece um homem mais velho. Tem um corpo seco e esguio. As suas mãos e os seus braços são grandes. Tão grandes que parecem poder estrangular o mundo. Tornam-se amantes. A primeira vez que dormem juntos, o homem mais velho confessa que é casado, pai de três rapazes adolescentes. Também conta que vive, com a mulher e os filhos, longe da cidade, numa moradia, em Sintra. Tenho uma piscina grande e dois setter irlandeses, diz com satisfação. Fala pausadamente. Afirma que nunca deixará a sua mulher. Explica que a ama, que a quer, que ainda a deseja. Mente. O homem mais velho sabe que a mentira é eficaz para se criar uma verdade. O homem novo não responde. Pede apenas que o abrace. Quer sentir os braços de gigante à volta do corpo. Continuam a encontrar-se, sempre ao entardecer, quando os seus corpos deixam de ter sombra. O homem novo decide vender a sua casa no centro da cidade. Uma casa feita de luz que acolhe os ruídos dos pássaros e os murmúrios do rio. Para estar perto do homem mais velho, compra um apartamento em Queluz. Um quarto estreito. Uma cozinha pequena de azulejos azuis com electrodomésticos Bosch.Uma sala com uma janela rectangular que dá para uma rua triste, inclinada, que desemboca numa rotunda. Ao fundo, vê-se a IC 19. Agora, todos os dias, o homem mais velho, antes de voltar à sua moradia, à sua mulher, aos seus três rapazes, aos seus setter irlandeses, passa por aquela rua. Nela estaciona o seu Audi cinzento. Sobe até ao 4º direito e, por breves momentos, com brusquidão, entra naquele outro homem que, por uma migalha do seu amor, prescindiu de viver.