2006/09/28

Amália (2)

Sempre ouvi dizer que sou parecida com a tia Amália. Fisicamente, mas não só. Desconfio que o génio também deve ser parecido. Quando se zanga com o marido, a tia Amália pega na pequena acelera de fabrico indiano, uma máquina potentíssima, percorre o caminho de Pondá a Maina, praguejando sempre contra o pobre Xavier, e vai descansar uns dias à casa materna, entre papaieiras e cajueiros. Só volta quando o marido mete o rabinho entre as pernas e lhe pede para voltar. Quero conhecê-la. Mergulhar-lhe nos olhos, nos silêncios e nos gestos. Quero que me ensine a usar um sari, a pintar os olhos com côle, a apanhar devidamente o cabelo (uma mulher deve ter o cabelo comprido, mas usá-lo sempre preso, é o que o meu pai diz). Quero pisar a terra vermelha dos caminhos da aldeia que viu crescer os cinco irmãos. Amália, Manuel Maria, Inácio Caetano, Rosário, Rosu, a mais velha, muito velha, sem idade, bruxa, feiticeira, louca, que fuma charutos, encolhida numa enxerga suja, a poalha da cinza a cair em cima do sari branco. Diz a minha mãe que, quando a tia Amália me olha nas fotografias, ao reparar nos olhos escuros, no cabelo preto e comprido, na pele, me acha mais indiana do que europeia. Serei? Apesar de nunca a ter conhecido, de nunca lhe ter ouvido a voz ou sentido o cheiro, de nunca a ter abraçado, sinto esta tia, que é uma ausência que não se quer, como minha.