2006/09/04

Valquíria (3)

Só um cão vadio que por ali andava se apercebeu daquele corpo pequeno vindo das alturas. E isso era estranho. Até para um cão que não conhece as subtilezas da vida e da morte. No ar voam pássaros, insectos, sacos de plástico, papéis velhos. Não senhoras velhas e pequenas. Ladrou o cão. Ladrou muito. Como nunca ladrara. Um ladrar furioso. Ao mesmo tempo assustado. Chamadas por aquele ladrar as pessoas começaram a sair das lojas e dos cafés. Também os transeuntes que regressavam a casa, os apressados e os muito apressados, pararam, levemente irritados com a interrupção que, por força daquele ladrar, se atravessava na sua rotina. Pouco tempo depois estava formada uma multidão pequenina perto daquele cão que perto daquele carro ladrava sem parar. Ninguém percebia a razão pela qual o bicho não se calava. Até que um homem furou a multidão. Era um homem jovem. Vestia um fato escuro e uma gravata clássica. Tinha ar de director de qualquer coisa. Devia trabalhar num dos edifícios de escritório que ficavam nas proximidades. Olhou para o cão. Apagou com a biqueira do sapato um cigarro que atirou para o chão. “O que é que esta senhora está a fazer sentada no meu carro?”. As pessoas entreolharam-se, depois olharam para o carro. Só agora davam conta de que naquele carro estava sentada uma mulher velha. Parecia dormir. O cão calou-se. Tinha cumprido a sua missão. Furou a multidão e continuou a andar pelo passeio.