2008/05/15

Pretérito Imperfeito

Quando as tardes de domingo se punham de breu, chuvosas, pingando lágrimas grossas sobre o bairro, corríamos para a cozinha. A minha mãe fazia churros madrilenos, fritava rodelas de batata-doce, amassava biscoitos de laranja. A minha tia fazia o bolo pic-nic, fritava argolinhas de massa lêveda e sonhos de abóbora. Arredavam-se os pequenos electrodomésticos da bancada de mármore, recolhia-se a fruteira e os naperões de linha grossa matizada. A bancada era limpa com um pano húmido. Imaculada, acolhia as massas que se estendiam, os bolos que se batiam. Eu e a minha irmã observávamos os gestos das nossas mães. Ríamos quando a massa dos churros se enchia de grumos e a minha mãe, bufando, jurava a pés juntos que nunca mais na vida faria tal receita. Competia-nos pôr a mesa para o lanche e polvilhar de açúcar e canela o que houvesse a polvilhar. Quando tudo estava pronto, a toalha de ramagens azuis estendida, as chávenas viradas de borco, as travessas lançando espirais de mornidão que embaciavam os azulejos de flores castanhas, a minha mãe mandava chamar o meu pai que passava a tarde enfiado no escritório, lendo, de fio a pavio, os jornais semanais. Chegava sempre embrulhado no roupão de flanela azul. Raramente sorria. Um homem no meio de tantas mulheres: duas filhas, uma esposa, uma cunhada, uma sogra vestida de negro. Sentava-se no topo da mesa e, em silêncio, comia. Nunca o ouvi gabar os lanches da minha mãe, esses lanches maravilhosos, de doçuras mornas, que tornavam ensolaradas as nossas tardes de chuva. Lembro-me, isso sim, de o ouvir ralhar por o chá já não estar suficientemente quente. Cada vez que o ouvia, a beiçola estendida, a dura masculinidade da sua voz, a incapacidade de ser gentil para a mulher que amava, ficava com vontade lhe enterrar uma faca no peito.

(o meu pai tem um modo estranho de amar.)