2008/06/11

Ana

A mulher mexe no colar de bolas vermelhas, depois fala: Eu explico. Sinto há muito tempo vontade de morrer. Adormeço todos os dias com os pulsos cortados. Noite fora, esvaio-me em sangue. Acordo com os lençóis empapados e as veias vazias. Não penso nunca em quem fica. Não penso nos meus filhos. Nem no meu marido. Nem na minha irmã. Muito menos penso nos meus pais. O meu pai chorar-me-á com desprezo e vergonha. A minha mãe com o alarido próprio das mães. Reclamará para si, até nessa altura, o protagonismo que me pertence. Quero morrer porque não sei viver. Vivo com desfaçatez e sofrimento. Passo os dias a calar gritos. Passo os dias a engolir lágrimas. Já nem lhes sinto o gosto a sal. Não sei donde me vem esta solidão e este desespero. Estou cansada. Tenho direito ao cansaço, não acha?

O homem escuta em silêncio. A voz da mulher treme de excitação: Não tenho medo da morte. Nunca tive. Desde cedo que a ideia da morte me conforta. Como um agasalho. Mas tenho medo da dor. Que é um medo menor. A dor, o medo da dor, humilha-me. Entorpeça-me os gestos. Não me atiro da janela do meu quarto porque tenho medo do momento do embate nas pedras da calçada. Aterroriza-me a ideia do meu crânio abrindo-se como uma melancia madura. Não me atiro à linha do metro porque me assusta o preciso instante em que o meu corpo será retalhado nos carris. Tenho medo da dor física. Tenho medo da dor mesmo sabendo que a sentirei apenas por breves instantes. É por isso que preciso da sua ajuda. Para morrer.

(Há pouco tempo, na televisão, a propósito de uma escritora risonha, ouvi o Eduardo Pitta falar de derrame confessional. Gostei da expressão. Não mais me esqueci dela.)