Estava ali no largo D. Estefânia, trincando uma madalena da Tarantela e lembrando os entardeceres da minha infância. Ao fim do dia, vasculhava a mala da tia Dé. A mala reflectia a tristeza e a solidão da vida que levava. O conteúdo estava sempre impecavelmente organizado. Reduzia-se a meia dúzia de objectos. Uma carteira de fole, plastificada, para guardar os documentos. Um porta-moedas. Uma caixa de guardar comprimidos, muito pequenina, incrustada com uns cristaizinhos coloridos. Uma escova de cabelo. Um corta unhas. Pouco mais. Revirava a mala da minha tia e não encontrava papéis soltos ou caixas de chicletes vazias. Não havia lenços de papel amarrotados, nem batons velhos. Nem sequer o passe social ali se perdia. Estava sempre enfiado na bolsinha lateral, seguro pelo fecho eclair. O espaço daquela mala pequena, em função da organização, do cuidado meticuloso, era imenso e sobrava para qualquer coisa que não chegava. Espreitava a mala da minha tia e não me dava conta do vazio da sua vida. A insistência com que falava do Dr. Lucas, o cirurgião de São José, que tinha um filho deficiente, não me mostrava o amor que lhe tinha. Esse amor que não chegava. Nunca se cumpriu. Mais triste do que amar um homem que não nos quer é amar um cobarde que nos quer, mas não luta para nos ter. Porém, naqueles tempos, pouco me importava a angústia e o amor não cumprido da minha tia. Revirava-lhe a mala com um propósito definido. Muito concreto e interesseiro. Ela trazia, quase sempre, qualquer coisa que comprava no caminho do hospital: tabletes da regina, sombrinhas de chocolate, bolos de arroz, palmiers e madalenas. Eram os bolos e os chocolates que eu procurava na sua mala.
Estava ali no largo, tão feliz, comendo uma madalena da Tarantela, lembrando tudo isto, confortada com o amor que tenho à minha tia, quando encontrei uma amiga que não via há muito tempo. Deixei de lhe falar. Já não sei porquê. Perguntou-me pelos filhos. Respondi-lhe evasivamente. Trocámos meia dúzia de palavras. Esforcei-me para lhe sorrir. Foi então, assim do nada, de uma forma extraordinária e directa, que ela disse que me achava egoísta. E sorriu, com um misto de desdém e piedade. És profundamente egoísta, disse-me. No preciso instante em que as palavras lhe saíram da boca, um pardal, que dava saltinhos, na balaustrada de uma varanda, estremeceu. Ficou tão aflito que largou um piar manso de pássaro pequenino. O rapaz da banca de jornais, que não tinha dentes, espreitou por cima das revistas da vida social a ver se aquela conversa descambava numa discussão decente que lhe alegrasse o dia mortiço. Por breves momentos, pensei esbofetear a minha amiga. Ou afogá-la na água esverdeada do lago que fica no meio do largo. Ou esfregar-lhe a madalena no rosto. Não fiz nada. Percebi que não me aborrecia o facto de me chamar egoísta – sou - mas apenas o atrevimento e a coragem de o fazer.