2010/05/05

Fortunato

Lavei os dentes até me sangrarem as gengivas, fiz o seretaide, inalei uma poeira branca que atravessou a traqueia e se espalhou pela minha floresta brônquica, apliquei no rosto um creme novo, opalino, quase amarelo, de consistência leitosa, que me suscitou dúvidas e incertezas. Sempre ouvi dizer, talvez sem fundamento, que o esperma tem qualidades milagrosas na área da cosmética feminina. Como a baba do caracol. Espalhei o creme e, por momentos, deixei-me ficar a olhar para o espelho. Dei conta das minhas imperfeições: os pêlos do buço, as sobrancelhas hirsutas, os poros dilatados na testa e no nariz, a pele cansada do sol, envelhecida, o canino inferior do lado direito torto e pontilhado de manchas de tártaro, as narinas dilatadas.

Depois de uma hesitação muito pequena, uma coisa de nada, foram dois ou três segundos, abri a caixa dos comprimidos que está na gaveta do armário. Levei um sanax à boca. Senti-me vencida pela vida. Não tarda nada, sei-o, volto a fumar, a beber, a encharcar-me de comprimidos. Volto a aborrecer-me com o recato da vida doméstica, a nausear-me com a sobriedade dos dias iguais. Não tarda nada, é um instantinho, volto a não tolerar viver apenas para o cumprimento das tarefas maternais. Amo os meus filhos. Com fúria, certo desespero. Quero-lhes bem. Mas não me basta o que têm para me oferecer. Deitei-me com a certeza de que é a concupiscência que dá cabo de mim. Não fora o desejo e a insatisfação e seria uma mulher moderadamente feliz. Li durante duas horas. Consolei-me. Adormeci no preciso instante em que um carro atravessou a rotunda e o clarão dos faróis entrou pelas frinchas dos estores. Dormi como não dormia há muito tempo. Não acordei uma única vez. Não senti o corpo abandonado e vencido que dorme ao meu lado. Não ouvi o assobio longínquo que vem do sistema de ventilação da casa de banho e que, não sei porquê, me lembra desfiladeiros e desertos de terra vermelha.

Não escutei o meu filho, no quarto ao lado, pedindo o biberão, soluçando a sua solidão até voltar a adormecer, cansado e suado. Não me levantei para percorrer, na penumbra, os corredores do apartamento até à cozinha. Tropeçar num triciclo, apalpar paredes, ligar o interruptor, uma luz de velório cobre a noite, sentir o frio dos mosaicos, abrir a porta do frigorífico, meter à boca dois morangos, um quadrado de chocolate, duas fatias de presunto, um cornichon. Dormi como não dormia há muito tempo. E voltei a sonhar. Sonhei com um camionista de rosto flácido. Chamava-se Fortunato e tinha um camião encarnado.