2012/02/27

Idalina, a grande

O cemitério fica longe da aldeia. Vários ciprestes guardam os mortos e lançam sobre as campas uma caruma perfumada que as mulheres, aos domingos, se apressam a varrer com vassourinhas de estopa. Atrás do portão, dois anjos baços espreitam o céu que ameaça com nuvens pardas. Um carreiro serpenteia entre campas, mausoléus e jazigos. Idalina, agachada no chão, ajeita cravos e crisântemos entre os pés de cameleira que trouxe do quintal. Depois, com uma flanela húmida, limpa a campa do meu sogro. Trabalha lá em casa há muitos anos. Planta batatas, couves, cebolas, alfaces. Cuida dos pessegueiros, das laranjeiras, das oliveiras, da vinha, das pereiras, das macieiras, das nespereiras. Esfola coelhos e degola galinhas. Passou a vida entre França e aquela aldeia perto de Ourém. É descarada e muito feia. Em cada frase, diz uma asneira. A minha sogra queixa-se. Acha-a velhaca, preguiçosa e mentirosa. Gosto dela. É uma festa quando chega. Tem sempre coisas para contar. O marido chama-se José. É um homem de sorriso manso, ar de mosquinha morta, parece uma coisinha de nada perto dela. Pois o José, esse tal José, pai das suas quatro filhas, avô de vários netos, bisavô de uma Caroline e de um Mickael, ia-lhe dando cabo da alegria. Os estragos que um homem pode fazer na vida de uma mulher. A Idalina vive com uma irmã mais nova, deficiente e muda. A pobre passa os dias a comer caramelos e a brincar com bonecas. Volta e meia, porém, amarinham-lhe uns calores pelo corpo e esquece as bonecas. Põe-se, muito oferecida, à janela a meter-se com os homens que passam na rua. Como não fala, gesticula e afaga o baixo-ventre. Às vezes, lança uns grunhidos de foca. Há coisa de dois anos, a irmã da Idalina apareceu grávida. A princípio, quando deu pela gravidez, a Idalina desconfiou de um vizinho muito bêbado, o Goela, que, quando voltava da taberna, olhava a muda como quem olha uma presa fácil. Lá estava ela, gorda, quase imóvel, silenciosa, mascando ursinhos de goma, adormecendo as bonecas na aduela da porta. Umas vezes, oferecendo-se; outras, não. O José, sempre rindo, confiando na imbecilidade da cunhada, não dava opinião sobre tão delicado assunto. Ia levando a vida como podia. Até que a muda, certo dia, fartou-se de atribuírem injustamente a paternidade ao Goela, tão feio e malcheiroso. Apontando para o bucho cheio, prestes a rebentar, terá grunhido, com a sua boca cheia de dentes podres, o nome do cunhado.

Quando a Idalina descobriu o feito do marido - já andava desconfiava dos sorrisos nervosos do parvalhão - deu-lhe uma tareia que se ouviu na aldeia inteira. Ameaçou capá-lo com uma tesoura de poda. Uivou o desgraçado. Quanto mais ele gritava, pedindo-lhe desculpa, culpando o vinho, mais vontade ela tinha de o matar. Deixou-o roxinho de dor, o corpo marcado, uma vértebra fissurada, várias peladas no couro cabeludo, os testículos muito encolhidos, prometendo para sempre recato e recolhimento. Depois, esteve trinta dias fechada em casa, mal comia, não se lavava, não via televisão, nem as telenovelas a animavam, passava os dias enfiada na cama, cozendo a dor e pensando na vida. Definhou. Dava-se conta da gravidade dos factos, da humilhação, sabia que a honra, se a tinha, lhe exigia mudança. Uma mulher passa a vida ao lado de um homem, aguenta tudo, acostuma-se ao seu cheiro, aos tabefes, aos encontrões, às suas rotinas, ao vazio que sempre deixa na cama, à arrogância do género, mas há coisas que uma mulher não pode perdoar. Durante esse tempo de recolhimento pensou em separar-se do marido; ninguém na aldeia a recriminaria por tal decisão. Tinha motivos de sobra. A mudança, porém, essa mudança que se impunha como única saída possível, exigia-lhe em demasia: assumir a pequeneza do marido, confessar a sua vergonha e fragilidade, sobretudo, tornar verdadeira uma história que, por ora, não passava de uma suposição. Idalina tomou a decisão mais difícil. Ao trigésimo primeiro dia, saiu da cama, lavou-se, vestiu-se, entrou no café da aldeia, pediu um galão escuro e um papo-seco com manteiga e chouriço. Comeu, com ávido apetite, para matar a fome de muitos dias. Sentiu nela os olhos das mulheres e dos homens da aldeia. Todos esperavam o anúncio da mudança. Idalina comeu em silêncio, deu um arroto pequenino para aliviar da gordura do conduto, depois explicou que ia para casa preparar o almoço do seu José. Acompanhou a gravidez da irmã. Tratou da criança que nasceu perfeitinha e muito bonita. Recambiou o marido para França durante alguns meses para deixar assentar a vergonha e o falatório. Agora, anda com a menina para todo o lado, mostrando, com orgulho, a sua beleza. Olha o mundo de frente. Nunca se arrependeu de não ter mudado a sua vida, largando o marido, abandonando o previsível conforto da vida conjugal. Quem trataria do pobre coitado? Ai de quem ouse fazer um comentário mais acintoso ou tratá-la como uma desgraçada. Toda a gente teme que ela faça o que fez ao marido e, por fim, dê uso à tesoura de poda. Idalina, a grande.