2012/02/02

Laidinha

Chamava-se Maria Adelaide. Fora sempre uma criança enfezada. Nascera com uma fenda leporina no maxilar superior. A mãe, uma doméstica muito crente, casada com um construtor civil de Fátima, chorou-lhe o nascimento como se do ventre lhe tivesse escorrido o ser mais infame à face da Terra. Aos dois anos foi operada para fechar a fissura que causava tanto embaraço nos passeios domingueiros. Ficou-lhe uma cicatriz grossa e vermelha, aos gomos, que parecia ter sido suturada por uma costureira inexperiente, com fio de estopa, a sangue frio, sem cuidado ou gentileza. Feiinha, de uma feiura quase comovente por causa da cicatriz que lhe ficara no rosto, sentia-se sempre posta de lado nas festas familiares. A mãe bem podia enfeitá-la de laçarotes e vesti-la de folhos que as primas Arlete e Gorete, as gémeas que viviam na Bobadela, robustas e sadias, sempre lhe mostravam que a beleza era requisito imprescindível para uma mulher ser feliz. Faziam questão de lhe mexer na cicatriz porque, como explicavam, parecia um bichinho de seda morto. Chegavam tios e tias, primos e primas para a celebração dos domingos pascais e para a ceia de natal. A vivenda que o pai mandara construir em Sacavém, mesmo à beira da estrada nacional, revestida de azulejos cor de caramelo, rebentava nesses dias de festa. Os homens sentavam-se nas poltronas de cabedal do salão a mastigar rodelas de chouriço assado e quadrados de queijo flamengo. As mulheres enfiavam-se na cozinha a admirar os novos conjuntos de taparuéres que a mãe adquiria compulsivamente. As crianças corriam para o quarto de Maria Adelaide onde havia uma estante só para as bonecas compradas em Badajoz. Em cima da colcha de renda branca, de pernas abertas, muito esticadas, uma sevilhana vestida de folhos vermelhos, travessa e mantilha, olhava-se, altiva, no espelho oval do pechiché. Maria Adelaide seguia o bando e metia a sevilhana a salvo, em cima do roupeiro, não fosse algum dos primos parti-la e a mãe apanhar um desgosto profundo. Um dia descobriram que Laidinha, era assim que a família a tratava, gostava do primo Renato, rapaz de uma beleza óbvia e ordinária. As primas fizeram uma algazarra. Correram a contar-lhe. O primo olhou-a de cima a baixo e deu uma gargalhada escarninha que ficou, para sempre, presa nas paredes do quarto. Foi a primeira vez que Maria Adelaide sentiu que Deus a gozava. Não voltou a brincar com os primos nas festas de família. Ficava sentada no salão, entre os homens, mordiscando azeitonas.