2014/04/06

Baltazar Borda d' Água

Cumpridor e reservado, fato escuro assertoado de quatro botões, camisa impecavelmente engomada, gravatas discretas, sapatos pretos pespontados, verdadeira imagem de sobriedade. Senhor gerente isto, senhor gerente aquilo, senhor gerente, estão a pedir-nos a média diária de captação de depósitos a prazo do mês de Julho, e, amanhã, não se esqueça, vem cá o sócio do presidente da junta tratar do empréstimo para o prédio que querem construir no Prior Velho. Baltazar Borda d’Água sempre correcto, ajudando cada empregado novo que chegava, paciente na arte de ensinar, realizando estornos, esclarecendo dúvidas sobre saldos e extractos, explicando planos de investimento e taxas, aconselhando prudência nos investimentos e recato nos créditos, sugerindo, sem paternalismo, mas sincera preocupação, planos de poupança às famílias de Sacavém. O primeiro a chegar e o último a sair, trinta e seis anos de serviço e nunca se soube de desvios ou enganos. Sempre declinou com educação os convites para almoços que a clientela da agência, pequenos investidores, lojistas, comerciantes por atacado, revendedores de maquinaria pesada, proprietários de stands de automóveis, construtores civis, lhe fazia. Gostava de almoçaradas, mas sabia que aqueles convites traziam água no bico, eram feitos com o propósito de tornar ligeiras as negociatas, dois ou três almoços, bem comidos, bem regados e, a seguir, chegaria o desafio para gozar a penumbra nativa nos bares polinésios da Praça do Chile e, se o atrevimento fosse muito, ir ver as raparigas do Cais do Sodré. Depois, assumida a amizade, haveriam de chegar convites para os casamentos dos filhos e baptizados dos netos. Apesar da urgente necessidade de fidelização dos clientes, Baltazar Borda d’Água sabia que, como gerente bancário, tinha de ser firme, não podia ceder perante esse assédio. Quando se desse conta, já não conseguiria avaliar com imparcialidade os pedidos de empréstimo, havia de afrouxar na negociação da taxa de juro, alijar no número de prestações; a sua liberdade negocial seria aturdida pelos camarões comidos gulosamente nos copos de água e pela lembrança das inocentes cabecinhas dos netos dos construtores civis, debruçados sobre a pia baptismal, berrando da frieza dos óleos santos, mas livres do pecado original. 
Quando Baltazar Borda d’Água se reformou os colegas da agência fizeram-lhe uma festa na Churrasqueira Brasil. Os rodízios eram novidade e os bancários de Sacavém andavam com vontade de experimentar a fartura das carnes vermelhas, o delicioso desperdício dos bufetes livres, o aparato dos empregados vestidos de gaúcho, bombachas dentro das botas caneleiras, camisa larga, faixa vermelha, espeto nas mãos com nacadas de carne escorrendo gordura. Encontraram na reforma do chefe uma boa razão para lá ir. A ementa era um luxo, picanha, maminha, cupim, coxão. Também serviram corações de galinha barrados com manteiga de alho, petisco apreciado sobretudo pelas senhoras. Uma colega nova, vinda da agência de Mem Martins, pôs-se mesmo a trincar os pequenos músculos galináceos com um gozo excessivo:
- Ai, que delícia…- dizia a mem-martinense, não se dando conta de que comer corações com tamanho prazer, ainda que seja de bicheza pequena, desconcerta, faz lembrar feitiçaria medieval, canibalismo primitivo, macumbas africanas para curar infidelidades, tanglomanglos em geral, enfim, é um gesto de gula adequado apenas às mulheres que não conseguem disfarçar um desejo voraz de prazer.
Os acompanhamentos eram à discrição, saladas variadas, arroz branco, batatas fritas e feijão guisado, à sobremesa, o que se quisesse, bavaroises aveludadas, gelatinas, pudins de coco, um pão-de-ló de alfeizerão solitário, para quebrar a brasileirice da ementa, fruta fresca, abacaxi, mamão e manga fatiados. Houve quem repetisse cinco vezes. No final, grogues da doçura inocente das caipirinhas, fivela do cinto desapertada, os subordinados gabaram a liderança e capacidade de organização de Baltazar Borda d’Água. Fizeram-se discursos emotivos, houve até quem lacrimejasse ao lembrar histórias antigas. Ofereceram-lhe uma caneta de aparo de aço e o banco mandou, como era procedimento habitual na reforma das chefias intermédias, uma placa de reconhecimento, em prata de lei, cinzelada. Trabalho fino, muito discreto.