2014/09/26

Prócida

O João vai ser pai. Contou-me no dia em que fui ter com ele à Biblioteca Nacional, no preciso instante em que me entregou “A ilha de Arturo”.  Dei-lhe os parabéns, tive vontade de o abraçar longamente e meti o livro no cacifo. À noite, já no meu quarto, tirei o livro da mala. Olhei-o, passei as mãos pela capa, e, lembrando-me que as mãos do João o tinham tocado, levei-o aos lábios. Depois, já sentada na pequena secretária de pau-preto que herdei da minha avó Aninhas, abri o livro, senti a leve rugosidade do papel e, como sempre faço, escrevi o meu nome e a data na primeira página. A caligrafia saiu ligeiramente inclinada para a direita. Continuei a olhar para a primeira página e, não sei porquê, senti que o meu nome e a data eram insuficientes para marcar aquele livro. Alguns livros precisam de ser marcados. Peguei novamente no marcador preto e, numa caligrafia diferente da que usei para assinar, escrevi “Almocei hoje com o João Pedro na Biblioteca Nacional, contou-me que vai ser pai; em Novembro nascerá a sua segunda filha, uma menina muito desejada que se chamará E. Fiquei verdadeiramente feliz por ele e novamente lhe confessei o meu amor. “. Reli a frase, uma, duas, três vezes, de forma mecânica, à espera de sentir qualquer coisa.  Não senti nada. Deixei o livro pousado na secretária, junto dos papéis da segurança social. Durante alguns dias esqueci-o.  Porém, quando finalmente lhe peguei para o ler senti um leve frémito interior, formiguinhas passeando pelo meu avesso, uma sensação vaga de perigo. Temi que a leitura de tal livro pudesse fazer desaparecer a minha serenidade.  “A ilha de Arturo” é um dos livros que o João mais gostou de ler nos últimos tempos, por diversas veze me falou da ilha de Prócida, sobretudo, da ilha de Prócida. Temi que a leitura de tal livro reacendesse a angústia que senti quando o perdi. Amo o João por várias razões, uma delas é por o considerar um leitor excepcional. Por breves instantes, passou-me pela cabeça não voltar a tocar no livro, mas, depois de pensar no assunto, recordando a nossa conversa no refeitório da Biblioteca Nacional, percebi que o meu receio não tem qualquer fundamento.  O meu amor é tranquilo, paciente, sossega-me, faz-me feliz, é um amor que nada exige, que nada quer. De tão puro talvez o amor que sinto não chegue a ser amor ou talvez seja a sua forma mais sublime. Um amor assim não magoa. Peguei no livro, voltei a levá-lo aos lábios e entrei na ilha de Prócida.